Se o ser humano fosse um livro aberto de fato, o cinema dificilmente teria tanta e tão rica matéria-prima para seus enredos.
Desde sua criação, em 1895, entre outros propósitos, o cinema tenta ilustrar, decifrar ou compreender a mente humana, as relações entre as pessoas e as diversas maneiras de o sujeito estar no mundo. Os filmes colocavam na tela o equivalente dos sonhos: enigmas, metáforas e um sem-número de sentidos.
Quantas vezes nos identificamos com uma personagem e dela extraímos uma lição para algo particular nosso? Ao articular o imaginário, o cinema possibilita compreender eventos da nossa vida, até mesmo quando achamos que nosso dia a dia não vale um filme de sessão da tarde. Mas os filmes nem sempre são apaziguadores. Eles são capazes de despertar em nós o que há de mais agudo e essencial, problematizando a realidade e nos convidando a encarar nossas próprias fraquezas e contradições.
Se entretenimento ou não, o fato é que os filmes nos mobilizam. Entre ficções e documentários, reunimos 14 filmes disponíveis na Netflix para quem gosta de pensar a complexidade da mente humana, os desafios do cotidiano e as diversas formas de sofrimento que aparecem ao longo dos anos (transtornos mentais incluídos).
Vale para quem se interessa por psicanálise, psicologia, psiquiatria ou neurociências e também para todos que quiserem conhecer um pouco mais das nuances do ser humano, que apesar de pretender ser uma máquina programável, está cada vez mais longe da obviedade.
Gosta de Cisne Negro, Um Estranho no Ninho, O Lado Bom da Vida, Amnésia, Um Método Perigoso e Tempo de Despertar? Então são grandes as chances de você gostar de algum dos títulos abaixo:
Atom Egoyan – Canadá, 2014
O diretor egípcio naturalizado canadense Atom Egoyan é bastante interessado nos mistérios humanos. Em O Doce Amanhã (1997), ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, ele mostra os efeitos de futuro comprometido de uma comunidade quando crianças morrem em um ônibus escolar. À Procura também vai falar da infância, mas de uma infância subtraída. A filha de Matthew (Ryan Reynolds) e Tina (a fantástica Mireille Enos, da série The Killing) desaparece. Mais tarde, descobrimos que ela foi sequestrada por uma rede de pedofilia online. Sabemos quem é a vítima e sabemos quem são os criminosos. O perturbador deste filme é a tortura mental que um dos sequestradores (Kevin Durand, em uma atuação assustadora) faz nos pais e na vítima. Egoyan usa esta narrativa para discutir nossa relação com o voyeurismo e com a internet.
Keith Maitland – EUA, 2016
Tiroteios em massa têm uma alarmante recorrência nos EUA, e o massacre de Columbine, em 1999, costuma ser usado como referência para tragédias assim. O impressionante documentário Tower dá um salto no passado para contextualizar um presente de muita perplexidade. Em 1966, um atirador na Universidade do Texas matou 16 pessoas e feriu 33. Para recriar os depoimentos coletados com mais de cem testemunhas, o diretor Keith Maitland usa a animação como linguagem. Sem apelo ao sensacionalismo, o filme foca nas vítimas e evita a armadilha de exaltar o atirador. A emoção vem de se falar sobre o assunto – para alguns dos sobreviventes, o reencontro com a situação traumatizante por meio do documentário foi fundamental para se reconhecer a dor do momento e expressá-la, mesmo depois de algumas décadas.
Roberto Berliner – Brasil, 2016
A fronteira entre loucos e sãos permanece embaralhada, com contornos trazidos de acordo com a conveniência, principalmente se o objetivo for a exclusão de alguém que é diferente. A psiquiatra alagoana Nise da Silveira foi pioneira e revolucionária ao propor um tratamento humanizado de pacientes psiquiátricos, trazendo novas perspectivas a partir da arte. Faltava um filme que levasse a dimensão do seu trabalho ao conhecimento de mais pessoas, e Nise de fato consegue essa divulgação de forma bastante sensível, com Gloria Pires interpretando a alagoana. “Ninguém suporta pessoas que dão respostas inadequadas para as solicitações da vida. Queremos elas o mais longe possível”, lamentou o diretor, Roberto Berliner, em entrevista ao HuffPost Brasil durante o lançamento do filme. Durante as quase duas horas da cinebiografia de Nise, a loucura deixa de ocupar seu lugar marginal.
Este belo filme mostra como o suicídio pode levar à redescoberta do desejo de viver. Craig é um adolescente com depressão que não encontra saída para seu sofrimento e resolve buscar ajuda em um hospital psiquiátrico. Como os EUA tanto gostam, essa é uma comovente história de segunda chance, mas sem as pieguices costumeiras. Viola Davis e Lauren Graham (a eterna Lorelai, de Gilmore Girls) têm atuações pequenas, mas bastante notáveis. Além disso, há uma maravilhosa cena ao som do clássico Under Pressure. O filme é baseado no livro homônimo de Ned Vizzini, que passou por uma internação psiquiátrica para tratar da depressão. Lançada em 2006, a publicação foi bastante elogiada por público e crítica.
Philipp Eichholtz – Alemanha, 2017
Neste filme bastante despretensioso, acompanhamos alguns dias da vida de Luca, uma jovem que está superando uma depressão que a abalou por anos. A moça traz humor, apatia e melancolia em medidas variadas, com uma interpretação graciosa de Martina Schöne-Radunski. É um filme sobre superação, mas sem os fogos de artifício e a superficialidade que comumente eclipsam o doloroso e particular processo de lidar com o sofrimento.
Jennifer Siebel Newsom – EUA, 2015
Que preconceitos, repressões e crueldades se escondem por trás das palavras de ordem “seja um homem”? Este documentário aborda frontalmente os prejuízos de uma cultura que não permite que os homens lidem com suas fraquezas e vulnerabilidades em nome de uma “assegurada masculinidade”. Depoimentos de crianças, adolescentes, atletas e detentos dialogam com reflexões propostas por diferentes profissionais, de técnicos de times a psicólogos. O filme se propõe a criticar a sociedade norte-americana, mas sabemos que a análise serve bem aos brasileiros. É um pungente retrato sobre emoções represadas e as dolorosas consequências disso.
Juan José Campanella – Argentina, 2009
Neste belíssimo drama policial estrelado por Ricardo Darín, acompanhamos os diferentes rumos tomados em nome do amor. A investigação de um crime brutal aos poucos vai se revelando como uma investigação das relações humanas e da complexidade dos sujeitos. Não há qualquer tipo de previsibilidade na trama. O filme venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010.
Drake Doremus – EUA, 2015
Nesta distopia, as pessoas convivem pacificamente e supostamente não têm necessidades em um mundo completamente igualitário. As emoções são banidas e consideradas uma doença sem cura. Mas esse arranjo visivelmente purista fica completamente abalado quando Nia (Kristen Stewart) e Silas (Nicholas Hoult) descobrem o amor. O amor proibido é um tema super-explorado no cinema, mas as sutilezas neste filme o diferenciam e se encarregam de nos dar uma experiência tão amarga quanto bonita.
Roger Ross Williams – EUA, 2016
Somos seres da linguagem e, por meio dela, pudemos ser criativos nas mais impossíveis situações ao longo da hHistória. Quando a linguagem encontra mais percalços do que comunicação, como ocorre nos casos de transtorno do espectro autista, é grande a angústia. Mas isso não significa que deva ser definitiva. Aí entra a poderosa reinvenção dos seres humanos. Este documentário traz a comovente história de Owen Susking, que aos três anos parou de falar e recebeu o diagnóstico de autismo. Muitos especialistas se debruçaram sobre sua condição, mas foram os filmes da Disney que ressignificaram a relação de Owen com o mundo, retirando sua existência do silêncio. Diferentemente dos moralismos existentes nesses filmes, o documentário mostra as dificuldades reais na vida de Owen, o que deixa a narrativa ainda mais afetuosa.
Estella Renner – Brasil, 2016
Este delicado documentário vai às origens da vida para mostrar como nossa sociedade atual repercute os primeiros meses de cada ser humano que aqui habita. A diversidade de maneiras com que podemos existir no mundo reflete os cuidados (ou a ausência deles) que recebemos naquele período de total dependência. Os depoimentos vêm de ângulos diferentes, como pais, educadores, profissionais psi, ativistas e pesquisadores, o que enriquece a discussão.
James Vanderbilt – EUA, 2015
Nada como o poder para revelar os limites – e a ausência deles – nos seres humanos. Baseado em fatos reais, o filme conta os bastidores de uma denúncia jornalística contra o ex-presidente George W. Bush durante a campanha de reeleição, em 2004. Assim que a reportagem é divulgada, opositores começam a questionar sua veracidade. Em tempos de pós-verdade, a credibilidade nas informações é praticamente um verbete nostálgico. Há uma fala de Mary Mapes (brilhantemente interpretada por Cate Blanchett) que define bastante os humores atuais: quando a verdade se revela insuportável e sem sentido, preferimos a ficção.
Rob Burnett – EUA, 2016
Paul Rudd é cuidador de um garoto com deficiência que percebe que o trabalho pouco tem a ver com empatia gratuita. O convívio entre os dois deixa dúvidas quanto a quem precisa de cuidados, e aí você já sabe que o cinema independente americano vai retomar uma de suas narrativas favoritas, a da segunda chance. Um ponto alto é que o filme é comovente sem pieguice ou condescendência.
Richard Kelly – EUA, 2001
Este filme independente se tornou um cult dos anos 2000. O fim do mundo está próximo e é anunciado por um homem fantasiado de coelho a Donnie (Jake Gyllenhaal, em começo de carreira), um adolescente tido como problemático. Aos pais, o psiquiatra diz que o garoto apresenta sintomas de esquizofrenia. Donnie passa a se questionar sobre suas visões, enquanto eventos misteriosos começam a acontecer em sua cidade.
Charlie McDowell – EUA/Reino Unido, 2017
A ficção científica sempre teve bastante apelo por antecipar a constatação de comportamentos inquietantes, deixando um certo tom assustador ao percebermos que não estamos falando do futuro, mas sim, do presente. Black Mirror é um exímio representante deste talento. Em The Discovery, a ameaça à vida é a existência de uma vida após a morte, e não os derivados de nossa existência, como guerras ou a violência urbana. A partir dessa constatação, feita por um cientista, viver deixa de ter um valor absoluto, o que pode ser insuportável para alguns.
ESTE É UM TEXTO ESCRITO POR AMANDA MONT’ALVÃO VELOSO PARA O BRASILPOST
Nota da página: o catálogo da Netflix varia e alguns filmes podem não estar mais disponíveis.
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