Chamamos de Luta Antimanicomial o movimento correspondente às mudanças nos parâmetros éticos e técnicos no atendimento aos portadores de sofrimento emocional grave, nos serviços públicos no campo da Saúde Mental. Esse processo, também conhecido como “Reforma Psiquiátrica”, iniciou-se no final da década de 80, na cidade de Santos, em São Paulo, com o fechamento do Hospital Anchieta seguido da sua substituição pelos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS). Essas unidades, distribuídas regionalmente em Santos, passaram a realizar o cuidado para com os portadores de sofrimento psíquico, e valorizavam não apenas o aspecto psicofarmacológico do tratamento, mas também a participação da família, os atendimentos em grupo, as oficinas terapêuticas e as demais dimensões psicossociais do cuidado em saúde mental a partir de então.
Tive a oportunidade de participar desta etapa fundamental na história da psiquiatria e da saúde pública nacional e posso dizer que quando falamos em Luta Antimanicomial nos referimos não somente ao descentramento dos Manicômios como uma instância preferencial no atendimento ao portador de sofrimento emocional grave, mas à revolução ética em todos os âmbitos do cuidado em Saúde Pública. Isso ultrapassa os limites da assistência, especificamente psiquiátrica, e modifica todo entendimento do cuidado em saúde em nosso país, no sentido da humanização do tratamento, que vai dos postos de saúde até os hospitais, da desconstrução de preconceitos até uma nova visão de assistência, na qual a inclusão e o respeito das singularidades encontrassem lugar para fincar raízes.
Passados quase 30 anos, observo que atualmente o chamado “funcionamento manicomial” da assistência em Saúde Mental sofisticou-se bastante, de tal modo que ainda é justificada a Luta Antimanicomial. Se antes os modelos de segregação e medicalização do sofrimento humano podiam ser observados claramente na rotina dos grandes hospitais psiquiátricos, com os longos afastamentos do indivíduo da sua família e da sua comunidade, a destruição das possibilidades de enunciação subjetiva a partir da supermedicação e da resultante incapacitação para o trabalho e para o amor dos “doentes mentais”, hoje encontramos “micro manicômios” fora dos hospitais, dentro das suas próprias casas.
Quando realizo visitas domiciliares, junto às equipes de Saúde da Família, muitas vezes encontro pacientes completamente apáticos, isolados, sentados em cantos, reproduzindo, portanto, em escala muito mais sutil e muito mais virulenta o funcionamento dos antigos hospitais psiquiátricos. O uso excessivo de psicofármacos, a falta de envolvimento dos familiares com o tratamento, as deficiências técnicas e de recursos nas equipes de saúde contribuem para a manutenção deste cenário desolador.
Os desafios para os trabalhadores da Saúde Mental continuam aí, atualizados pelas novas formas da desigualdade social, catalisadas pela globalização, pelos funcionamentos predatórios do supercapitalismo e pela generalização da violência. Neste 18 de maio, olhemos para as conquistas inegáveis da Reforma Psiquiátrica, mas com olhos críticos e não contemplativos, procurando na História instrumentos para enfrentar as práticas contemporâneas de exclusão e de “assassinatos de almas” (como diria o presidente Schreber* ao se referir ao tratamento psiquiátrico), que se dá em escala internacional e não apenas nacional.
* O presidente Schreber é uma personagem importante na História, por ser um juiz de direito, esquizofrênico, internado, que conseguiu defender seu direito de ser desinternado e escutado. Seus escritos autobiográficos foram publicados em seu livro “Memórias de um doente dos nervos”. Tudo isso em meados do século 19!
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