Embora cada momento histórico possua suas particularidades e, portanto, a história não tenha como se repetir tal qual já foi, a sua vigília é extremamente importante para que situações trágicas do passado não reapareçam, com características próprias a novos tempos, no presente. Sem o desenvolvimento de uma consciência histórica precisa, há uma grande chance de haver remodelagens obscuras da memória e leituras equivocadas da história, de tal maneira a permitir que as farsas assumam o lugar do real.
Partindo da ideia de que a ficção permite o acesso à realidade histórica a partir de outras chaves, que as teorias científicas nem sempre promovem, uma obra seminal para o entendimento do mundo atual é o livro “1984” de George Orwell.
Produzida em um meio hostil à condição humana e captando o horror oriundo da Segunda Guerra, a obra apresenta uma modernidade desencantada e desumanizada, em que o totalitarismo, por meio de diversos elementos, controla totalmente a sociedade.
E, parece-me, bastante lúcido perceber as aproximações entre a ficção de Orwell e a nossa sociedade. Desse modo, alguns dos elementos que garantem o funcionamento do Estado totalitário no livro seguem descritos nas próximas linhas. O caminho entre fantasia e realidade deve ficar turvo daqui pra frente.
Ministério da Verdade (O controle da História)
Uma das características de 1984 é a ambiguidade entre o que as palavras significam e o modo como são apropriadas. Nesse sentido, o Ministério da Verdade, onde o protagonista da estória trabalha, representa o lugar onde a história é torcida e retorcida de acordo com as vontades do “Partido” (regime totalitário que controla o mundo do livro).
Não há nenhum dado que possibilite a leitura objetiva da realidade, pois tudo é constantemente reelaborado, a fim de que caiba no discurso oficial, hegemonizado pelo Partido. Uma das máximas presentes no livro, inclusive, é a de que “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. A história é, portanto, totalmente controlada e distorcida pelo Partido de acordo com os seus interesses e anseios, o que significa dizer que o Ministério da Verdade nada mais é do que uma fábrica de mentiras.
Novilíngua ou Novafala (O controle da Linguagem)
No mundo criado por Orwell, há o desenvolvimento de uma nova língua que pretende substituir o idioma usual. A nova língua é baseada no estudo sistemático do Partido, a fim de se construir um idioma em que a comunicação aconteça de forma rápida e direta, sem expressões “desnecessárias”. Para tanto, a nova língua contaria com o corte de inúmeras palavras do idioma usual, tornando determinadas expressões sem significado.
Na prática, a limitação de palavras da nova língua promoveria uma diminuição de signos a ser utilizados para a análise e compreensão da sociedade e, consequentemente, da realidade histórica. Isto é, discussões acerca de determinados assuntos seriam impossíveis no novo idioma, já que a linguagem é parte inseparável do desenvolvimento do pensamento.
Duplipensar (O controle do Conhecimento)
“Duplipensar”, na linguagem de 1984, significa acreditar em duas coisas contraditórias ao mesmo tempo. Ou seja, é a crença de que uma pessoa pode estar viva e morta simultaneamente, por exemplo. Esse artifício é utilizado pelo Partido para promover a confusão entre os indivíduos e impedi-los de perceber a realidade a que estão submetidos. É o elemento limitador do conhecimento e desencadeador da ignorância, haja vista a naturalização do paradoxo na mente das pessoas. Os próprios nomes dos ministérios e as suas funções são exemplos do duplipensar e da espécie de “mal-estável” que ele promove.
Episódio marcante do livro, os “dois minutos de ódio” representam o momento de homogeneização do grupo promovida pelo Partido, em que através de um instante diário de catarse, por meio da violência, os indivíduos sentem-se pertencentes a uma comunidade e possuidores de uma identidade, já que todos possuem um inimigo comum: Emmanuel Goldstein.
É interessante notar que para que o ódio seja utilizado como instrumento de controle social, o Partido cria a imagem de um inimigo externo, comum a todos os “cidadãos” da Oceania (região controlada pelo Partido). Sem esse artifício, dificilmente, os dois minutos de ódio serviriam como elemento de coesão e controle social, inebriando todos aqueles que viam o espetáculo diário do horror.
Apesar de haver inúmeros instrumentos de exercício do poder e, portanto, controle sobre a mente dos homens e a realidade histórica, às vezes, alguns sujeitos mais indisciplinados fugiam às rédeas do “Grande Irmão”. Para os subversivos, regimes totalitários não veem outro caminho senão a tortura (física e psicológica).
Com o Partido não era diferente, e até que todo subversivo concordasse que 2 e 2 são 5, não havia limites para a tortura, pois se esta é pouco eficaz para se arrancar “verdades” dos torturados, é muitíssima eficaz para difundir o medo, inclusive, de se rebelar e dizer, contrariando o Grande Irmão, que 2 e 2, na verdade, são 4.
Outros elementos também aparecem na obra, mas esses cinco, a meu ver, representam os pilares do totalitarismo do Partido no mundo descrito por Orwell. No entanto, retomando a ideia das aproximações entre ficção e realidade, não é difícil enxergar governos com verniz democrático praticando a cartilha de 1984.
Afinal, as malversações sobre o holocausto e as ditaduras civis-militares na América Latina; a tentativa de impor limites a determinadas palavras e suas significações, como gênero e sexualidade; e o apregoamento do ódio a determinados grupos, historicamente marginalizados pela sociedade ocidental, como negros, indígenas, mulheres, judeus, muçulmanos, LGBT’S, etc., representam o que senão o bordão de um regime totalitário?
Dentre esses e tantos outros motivos, 1984 é uma obra fundamental em tempos de cegueira coletiva e guerra inexorável contra a memória, o desejo e a linguagem enquanto veículos do pensamento. O livro representa também uma reflexão fundamental sobre a possibilidade de a vida continuar a despeito da desumanização por completo do homem. E, acima de tudo, faz-nos um alerta sobre os caminhos totalitários que sociedades modernas, industriais e “democráticas” podem ter. Embora para que o aleta funcione, seja necessário rebelar-se e dizer que 2 e 2 são 4.
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