Em uma comemoração com refrigerante e salgadinhos, e ao som do samba “Alguém me avisou, de Ivone Lara, o neurocirurgião Ivan Santana Dório, de 74 anos, viveu seu último dia de trabalho no Centro de Ensino e Pesquisa em Neurologia do hospital Miguel Couto, na zona sul do Rio, antes acatar a aposentadoria compulsória.
Ivan, que foi o primeiro neurocirurgião negro do Rio de Janeiro e referência na área médica no país, dedicou 28 anos de sua vida ao trabalho no hospital público. Já acostumado a começar a trabalhar às 5h da manhã e encerrar o expediente por volta das 20h, na ala da neurocirurgia do hospital, ele agora precisará traçar novos planos.
“É uma sensação de vazio muito ruim. Como disse George Harrison quando os Beatles se separaram, todas as coisas têm que passar. Só que o Miguel Couto não sai assim fácil da gente”, disse ele em entrevista ao TAB, do UOL
O médico falou sobre sua origem “pobre quase miserável” no subúrbio do Rio. “Aos 15 anos, meu aniversário foi à luz de velas, porque meu pai não pagou a conta de luz. Sentado, na cozinha, com vela acesa, comendo rodelas de tomate, dois ovos fritos e uma colher de arroz, brindei com água da torneira”, lembra.
Ele conta que, enquanto seu pai lhe dizia que seu lugar era na oficina, “sujando as mãos com graxa”, a mãe, que era costureira, lhe incentivava a se dedicar aos estudos. “Foi a costura dela que me fez chegar até aqui. Ela comprou os livros de que eu precisava.”
Ainda no pré-vestibular, quando estudava de amebas a primatas, Ivan descobriu a paixão pela neurocirurgia. A partir daí, continuou estudando e passou no vestibular da UniRio após três tentativas. Mas ele ainda teria que enfrentar o peso do preconceito. Ele se lembra da primeira vez que foi vítima de racismo na medicina, ao tentar assistir a uma neurocirurgia. “Perguntei ao monitor de anatomia se podia me levar, e ele falou que ririam de mim. Fiquei em choque, pensei em desistir.”
Mesmo com o passar do tempo e com a evolução da discussão das pautas raciais no Brasil, o preconceito nunca deixou de ser uma constante na vida de Ivan. Há um ano, por volta das 6h da manhã, o médico viveu um dos episódios que mais lhe marcaram. Uma senhora que mora no Leblon chegou ao hospital contando que havia sofrido uma queda em casa, e estava com dor na lombar. Ao ver três enfermeiras negras e ele, também negro, berrou: “Aqui tá parecendo a África, só tem preto”. Ivan conta que “uma das enfermeiras ficou furibunda”. “Me apresentei como neurocirurgião e ela disse: ‘Não gosto de médico preto’. Falei: ‘É o que tem pra agora’.”
Pegou o raio-x, viu os exames, passou-lhe um analgésico injetável e a liberou. “Não deixaria de atendê-la, mesmo ela sendo racista, seria omissão de socorro. O racismo é um sofrimento diário, é um drama.”
Ivan está interrompendo a carreira ainda no auge de sua capacidade, pois em dezembro completa 75 anos, idade limite para aposentadoria compulsória para servidores públicos. Para ele, que sempre foi uma pessoa ativa, a aposentadoria representa uma freada brusca no percurso. “Nessa sociedade, é muito difícil envelhecer. O que importa para o mundo é o belo, estar bonito e jovem. Se pudesse, não tinha nada de despedida, de evento. Isso me consome. Passa um turbilhão de coisas na cabeça por tudo que vivi aqui.”
No final da tarde do seu agitado último dia de trabalho, Ivan compareceu a um lanche-surpresa na presença da subsecretária de saúde Teresa Navarro e do diretor do hospital, Cristiano Chame. Eles lhe deram uma placa de homenagem. “Ele é único, valoriza a qualificação na assistência aos pacientes, é o seu legado. Sua história fala por si”, diz Chame.
“Essa primeira semana vou ficar em posição ginecológica com períneo pro ar. Espero que faça sol. Meu plano é tostar o períneo!”, brincou. “Há dois anos me preparo pra isso, mas agora não sei o que fazer”.
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Destaques Psicologias do Brasil, com informações de Tab Uol.
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