Ativado ainda na infância, o complexo da Cinderela desencadeia um terrível sofrimento psíquico em mulheres cujo sonho maior é aguardar pela chegada de um príncipe encantado que, do alto de sua realeza poderosa, esteja disposto a salvá-las das adversidades da vida e protegê-las de todos os perigos.
Perdoem-me os admiradores da obra escrita pelo francês Charles Perrault, em 1697, mas Cinderela parece ser o exemplo mais fidedigno da mulher que nega a si para ajustar-se ao seu salvador. Branca de Neve e a Bela Adormecida também seguem na mesma direção do apequenamento da mulher e do engrandecimento do homem.
É a triste metáfora da heroína romântica que luta para caber dentro de sonhos alheios, pensando erroneamente que são seus. Em vez de desenvolverem as potencialidades próprias do feminino acabam cedendo ao esvaziamento de si, buscando-se em outras metades. O sapato de cristal não é um símbolo qualquer. Na verdade, ele está a dizer que as mulheres são tão frágeis que só poderão ser salvas se recorrerem à relação com um homem.
Já não há mais igualdade de gênero, muito menos cumplicidade entre os parceiros, mas, sobretudo, a subserviência que domina e reprime a natureza feminina, desde a sua vontade até a sua corporeidade. Aqui, os tratamentos estéticos, se buscados conforme os ideais da princesa perfeita, também são uma forma de opressão psíquica, pois visam convencionar o corpóreo à irrealidade da formosura perfeccionista.
Inconscientemente, as Cinderelas se permitem ser meros objetos de seus príncipes encantados. Isso ocorre porque elas idealizam os companheiros, revestindo-os com suas projeções infantes, dando-lhes o lugar de sujeitos exclusivos da relação, prontos a tutelarem, legitimarem e se apoderarem delas tais como se fazem com as coisas. Desse contexto entre dominante e dominado surge a cultura da violência, sob a forma do nefasto machismo.
O macho violento vive do sangue violentado do outro. Sua virilidade moral é castradora. A história permanece no lugar de testemunha ocular da perseguição sofrida por mulheres, a partir da transição do matriarcado para o patriarcado. Antes disso, nossas ancestrais mulheres eram chefes de clãs, caçadoras, curandeiras e sagradas por gestarem a vida. A quem interessa hoje silenciá-las?
Por último, um conselho: mães, por favor, ensinem suas filhas a serem fortes. Jamais as eduquem para se comportarem exclusivamente belas e recatadas. Cama e mesa, roupa e banho, forno e fogão não têm absolutamente nada a dizer sobre a feminilidade.
Permita que, de livre escolha, elas possam escolher por essas funções, se sentido fizerem às suas existências. E, mulheres, parem de se digladiarem. Cessem de falar maldosamente dos seus pares. Interrompam o discurso de que uma possui inveja das demais. Aprendam a proteger umas as outras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MINAYO, M. C. S. Laços perigosos entre o machismo e a violência. In: Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 18-34, 2005.
SCHOBER, J. A trajetória de discriminação das mulheres. In: Ciência e Cultura. São Paulo, v. 55, n. 4, p. 53, out./dez., 2003.
Beauvoir, S. Le deuxième sexe. Paris: Gallimard, 1949, p. 16 e 516.