Para pensarmos no que seria uma casa com alma é fundamental, antes de tudo, tentarmos entender o significado da palavra “Alma“. “Ânima” é o termo do latim que dá origem à palavra portuguesa “alma”, e refere-se ao princípio que dá movimento ao que é vivo. Logo, “Alma” é aquilo que é animado, ou o que confere movimento, que faz mover.
Dito isso, entendo que uma casa com alma se caracteriza pelo fato de que nela os moradores sentem que podem se mover livremente. Não falo apenas do movimento físico, mas também da fluidez de emoções e pensamentos. Uma casa com alma, portanto, é o espaço no qual os moradores exercem sem restrições os movimentos que lhes são confortáveis, no qual se sentem confortáveis para expressar suas características mais íntimas e particulares. A casa com alma é feita da mesma substância da qual são feitos seus habitantes, ela não somente reflete a personalidade dos moradores, mas nutre o universo mental deles. A casa com alma abriga e oportuniza momentos que fortalecem a identidade de quem nela vive. Como uma caixa de som, ela reverbera as ideias, os sentimentos e as ações dos moradores. Como um espelho, ela reproduz os movimentos dos habitantes. Como um jardim, a casa com alma oferece um solo fértil para germinar e florescer o que faz seus habitantes felizes. Como um diário, ela registra as alternâncias vividas pelos moradores em todas as áreas da vida… Ela se ilumina, se abre ou se fecha no ritmo das vivências dos habitantes. A casa com alma é uma casa viva.
Se a casa com alma é uma casa viva, como isso pode ser realizado efetivamente?
Uma casa habitada por pessoas que gostam de cinema, por exemplo, pode oferecer condições para que seus habitantes possam assistir filmes confortavelmente, para que se sintam à vontade para vivenciar no lar essa experiência que para eles é tão importante. Assim, talvez, para o cinéfilo a casa com um home theater, com sofás aconchegantes e iluminação adequada, ofereça mais vida do que uma com churrasqueira. Mesmo que a grana seja curta e que não dê para montar o espaço ideal para a cinefilia, criar oportunidades para ver filmes em casa, na companhia de pessoas queridas, é o suficiente para animar (dar alma) a casa. O morador que adora cozinhar, que ama receber os amigos para comer, alimentará a alma da casa exercitando seus interesses, ou seja, cozinhando e recebendo. Se for possível ter uma maravilhosa cozinha gourmet, é quase como se um templo fosse erigido à alma da casa. Mas, de novo, há templos de todos os tamanhos e valores e, ainda assim, todos servem igualmente para celebrar a vida. Um amante da culinária que em sua habitação exercite o seu amor nutrirá a alma da casa, não importa se o ambiente no qual cozinha tem a simplicidade de uma choupana de roça ou a ostentação de uma mansão árabe.
Assim, a alma de uma casa é cultivada pelo uso que os moradores fazem dos ambientes nos quais habitam. Se ao usarem a casa os moradores fazem o que gostam, da forma que desejam e no tempo que lhes é necessário, a casa estará em movimento, será animada, terá alma. Se o uso cotidiano da casa, contudo, é destituído do envolvimento afetivo e cognitivo de seus moradores o espaço doméstico não terá vida, será um corpo sem alma.
Atualmente, muitas casas tornaram-se meros dormitórios, espaços nos quais as pessoas apenas dormem e fazem sua higiene pessoal. Para os habitantes dessas casas, o lazer, a alegria, a diversão, o prazer, a busca de conhecimento, as relações pessoais, os sonhos, o relaxamento, tudo é vivido fora da casa. Até mesmo a tristeza, a dor, o sofrimento, a solidão, são expressos em outros espaços que não o doméstico. Para essas pessoas, a vivência de tudo o que nos faz humanos, emoções, pensamentos e sentimentos, sejam positivos ou negativos, é priorizada fora da casa em que se habita. Há pessoas que quando estão alegres saem de casa para encontrar os amigos e celebrar, e quando estão tristes vão para casa, tomam um sonífero e dormem. Há pessoas que quando adoecem levemente, uma febre passageira ou um mal estar digestivo, buscam a casa de outros, seja a da mãe ou a de um amigo, porque na própria não se sentem acolhidos. Há aqueles que passam dias, semanas, sem ir a um determinado cômodo, sem sentar-se numa cadeira ou sofá, sem ir à varanda, sem fazer uma refeição sequer na casa que habitam. Há os que nunca compartilham o ambiente doméstico com outros de quem apreciam a companhia, que nunca param em casa para ler um livro, ouvir música, fazer uma refeição ou simplesmente olhar o tempo passar. Há casas com crianças nas quais não se vê um único brinquedo ou desenho alterando displicentemente a ordem do mundo adulto, outras em que habita um cão ou gato e na qual nunca se ouve latido ou miado. Nessas casas imóveis quase nunca é possível ouvir-se o barulho agitado das ações vivazes das crianças ou dos bichos. Há casas que nunca se abrem para o mundo, que em nome da limpeza nunca escancaram as janelas, impedindo que o vento, os barulhos da rua, a luz solar ou a da lua lhe dê novas cores e sonoridades. Há casas em que o receio dos custos, ou a sovinice, impede seus moradores de acenderem as luzes devidas para tornar o ambiente visível e plenamente desfrutável, ou o ar condicionado para torná-lo agradável. Há casas feitas para as visitas, nas quais a mobília, o design e cada detalhe funcionam como uma vitrine onde o morador exibe sua prosperidade, mas nas quais os habitantes não sabem se mover sem poses ensaiadas ou uma persistente sensação de deslocamento e inadequação.
Todas essas casas são hospedarias, mas não lares. As casas que apenas hospedam seus moradores são ambientes sem alma e, mesmo que não percebam, ao deixar de utilizá-las como lares seus moradores perdem uma grande chance de fortalecer a própria identidade, de repor as energias gastas com as obrigações sociais diárias e de delimitar seu território físico e imaginário no mundo. Com isso, essas pessoas restringem os limites do próprio movimento como indivíduos, deixando-se amalgamar com as demandas da vida coletiva que despersonalizam a especificidade de cada um de nós. Se a organização de uma casa sacrifica a autenticidade e a espontaneidade de quem nela habita, ela será uma casa sem alma. Uma casa não terá alma se a relação dos moradores com o espaço doméstico for mecânica, utilitarista, vazia de conteúdos afetivos e cognitivos. A alma de uma casa será perdida se o uso do espaço doméstico for restritivo, não viabilizando a expressão dos interesses, gostos e desejos dos moradores. Uma casa sem alma, enfim, é aquela na qual os moradores não se sentem consistentes com a própria natureza. Para que a casa tenha alma, seus habitantes precisam poder e querer mover-se por ela em acordo com o que sentem e pensam. A vida de uma casa, sua alma, portanto, é criada e cultivada pelas ações daqueles que a habitam.
Não posso deixar de agradecer à jornalista Carol Scolforo por este post. Foi a Carol que me provocou com a pergunta, “O que é uma casa com alma, Angelita?”, ao me entrevistar para uma matéria da Revista Casa e Jardim, cujo tema era “Casa Com Alma”, o mesmo do seminário promovido pela revista em 2011. Foi tentando responder à indagação da Carol que eu escrevi este texto.