A busca da satisfação das necessidades

Em toda a crítica de Baudrillard às teorias clássicas de entendimento do consumo, percebe-se que o autor constrói a uma variante, as concepções de cunho idealista. Em  tais raciocínios encontrar-se-á uma ligação desencadeante entre necessidades e satisfações, onde os indivíduos responderiam passivamente aos aceleradores artificiais, que propõem um elenco finito de objetos a serem consumidos. Em oposição, para o autor, “não são as necessidades o fruto da produção, mas o sistema de necessidades é que constitui o produto do sistema de produção” (1995:74). Vale ressaltar, que as necessidades como sistema não serão produzidas individualmente na correspondência de objetos específicos. O raciocínio deverá se deslocar para um quadro mais geral das forças produtivas, com suas exigências de totalidade.

Em meio a essa lógica, a tentativa de se buscar coerência no movimento ondulatório dos indicadores de tendências, acaba por naufragar. A contradição e a reversibilidade regem a moda, os conceitos de beleza, distinção ou utilidade. A ideia de satisfação última, a ser alcançada pelos indivíduos, também se inscreve como uma ilusão, sempre na dependência dessas ondulações. O que o consumo dispõe como meios realizadores desse intento, não se apresentam de maneira padrão e nem habitam um lugar fixo. Vagueiam por diferentes objetos e sempre aquém das expectativas geradas.

Dentro dessa esfera de livres associações falaciosas, encontrar-se-á aquela que correlaciona o consumo não apenas ao prazer, mas também como signo de felicidade. Neste ponto de vista, está o corpo e suas mudanças em busca do corpo ideal ainda que às custas de sacrifício e dor. Para tanto, parte-se de uma visão ingênua que se apoia na ideia de uma propensão natural e espontânea para um estado de felicidade. Algo se processa, como se a felicidade equivalesse à salvação do homem contemporâneo, tendo no consumo o seu passaporte.

Para Baudrillard, essa crença será fortalecida porque o mito da felicidade corresponderia a uma atualização do mito da igualdade, tão alardeado desde a Revolução Industrial. Observar-se-á no entanto uma especificidade nesse processo de reencarnação. Para que a felicidade assuma semelhante significado e função concernentes à igualdade, deverá fazê-lo de forma visível e quantificada. Não basta então vivenciar a felicidade como destino. Esta ainda terá que ser mensurada por objetos e signos de bem-estar, tendo portanto que dar provas. A felicidade é medida pelos objetos que me são oferecidos como complementares à minha felicidade, através de plásticas constantes, manipulação genética, o ser humano quer controlar o envelhecimento natural em busca da eterna juventude.

A felicidade embora se proponha como uma exigência igualitária, se funda nos princípios individualistas.

“O princípio democrático acha-se então transferido de uma igualdade real, das capacidades, responsabilidades sociais, da felicidade (no sentido pleno da palavra) para a igualdade dos objetos e outros signos evidentes do êxito social e da felicidade. É a democracia do “standing”, a democracia da TV, do automóvel e da instalação estereofônica, democracia aparentemente concreta, mas também inteiramente formal, correspondendo para lá das contradições e desigualdades sociais à democracia formal inscrita na constituição”(1995: 48).

Percebe-se então, que a democracia do consumo, positivada por alguns autores, se traduz como mais uma quimera em Baudrillard. O repertório de escolhas, possibilidades, gostos e valores não se destinam a democratizar a sociedade, mas sim a torná-la cativa da cristalização e manutenção de posições. Outra construção ligada a isso, e da mesma forma enganosa, se refere à propagação do consumo como um valor universal quando se almeja a satisfação pessoal, “trata-se de uma instituição, de uma moral e de um elemento da estratégia de poder. A sociedade é aqui, na maior parte das vezes, ingênua e cúmplice: toma a ideologia de consumo pelo próprio consumo” (Baudrillard, 1972, :55).

O caráter ilimitado do consumo, deve ser destacado como fundamental para o entendimento da expansão e da consagração do consumo como um novo espaço mítico, que se expressa por uma linguagem metafísica do diálogo e da relação de proximidade, e que no entanto, se legitima como processo de diferenciação estatutária. Parte-se do princípio de que “nunca se consome o objeto em si (no seu valor de uso) – os objetos (no sentido lato) manipulam-se sempre como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no próprio grupo tomado como referência ideal quer demarcando-o do respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior“(1995: 60). Verifica-se que o processo de inserção social se faz na dependência desses signos distintivos, sendo que os indivíduos vivenciam essas condutas de diferenciação como “liberdade e como aspiração, como escolha, e não como condicionamento de diferenciação e de obediência a um código”(1995 :60). É um código e as pessoas obedecem a estes padrões de beleza como escravos de seu desejo. Busca-se no exterior a felicidade porque é o preço exigido pela sociedade para pertencer aos grupos sociais.

A ânsia pelo novo, pela posse e outros signos de distinção, que move os indivíduos em direção ao consumo, resulta numa estratificação ainda mais acirrada, do que aquela da qual se tentava escapar. Os objetos que são buscados como ampliação dos alcances, acabam por fixar os limites das possibilidades dos sujeitos, marcando inapelavelmente os seus lugares na escala social.

A partir do momento que se  diferencia, o indivíduo está sedimentando  a ordem total das diferenças, não há ultrapassamento. Pelo contrário condena-se a inscrever-se nessa ordem, apenas de modo parcial, de modo a reforçar o caráter ilimitado do consumo. “Cada indivíduo vive os próprios lucros sociais diferenciais como lucros absolutos e não o constrangimento estrutural que está na origem da permuta das posições e da permanência da ordem das diferenças”. (1995 : 60)

Dentro do panorama de ausência de limites na intrincada dinâmica dos objetos e das necessidades, Baudrillard, no plano psicológico,  compara essa dinâmica  ao mecanismo de formação de sintomas da conversão histérica ou psicossomática que estão presentes nos transtornos alimentares. Tudo que é peculiar na construção do corpo perfeito e belo é deslize, transferência, convertibilidade ilimitada e aparentemente arbitrária. Eu posso ser mais belo que o outro e para isso sacrifico meus dias em prol da minha aparência. Da mesma forma que o sintoma perambula sobre uma cadeia de significantes somáticos, o desejo ou a lógica social inconsciente – e não a necessidade, pois esta se encontra sempre associada à finalidade racional do objeto – vagueia sobre o encadeamento de objetos/signos. Guardando as semelhanças possíveis, uma “terapêutica” pautada na identificação e satisfação de uma necessidade específica, pela equivalência da obtenção de um objeto determinado, incorrerá num erro idêntico ao da profilaxia tradicional, sobre o órgão do qual emana o sintoma. Nada impedirá que o sintoma migre para qualquer outro órgão. Baudrillard concebe o nosso mundo, dentro de uma histeria generalizada.

“Da mesma maneira que todos os órgãos e todas as funções do corpo se tornam na conversão um gigantesco paradigma em que se declina outra linguagem e outra fala. Poder-se-ia dizer que semelhante evanescência e contínua mobilidade é de tal sorte que se torna impossível definir uma especificidade objetiva da necessidade, como também é impossível definir na histeria a especificidade objetiva do mal, pela simples razão de não existir” (1995 : 77).

Para o autor, o deslizamento de um significante para outro, expressa o conteúdo manifesto, que encobre a realidade de um desejo para sempre insaciável, fundado numa carência latente e  insolúvel. Fato esse que justificaria a tentativa de significar-se nos objetos e nas necessidades sucessivas.

Outro aspecto que se correlaciona à dinâmica ilimitada do consumo, levando os sujeitos ao rompimento do impensável e à crença no impossível, refere-se a uma “mentalidade sensível ao miraculoso”. Para Baudrillard, o consumo seria governado pelo pensamento mágico, que se presentifica na dependência de todo um elenco de objetos simulacros e de sinais característicos de felicidade. Estes sinais, como numa promessa, atuam como um compasso de espera, até que a verdadeira felicidade seja alcançada. O autor a compara à mentalidade primitiva, quando caracterizada pela onipotência dos pensamentos, e nesse caso, refere-se a mentalidade contemporânea marcada pela onipotência também, só que dos signos. Algo se processa como se o prazer e a felicidade provenientes dos objetos, funcionassem como o prenúncio ou um reflexo antecipado de “uma Grande Satisfação virtual, da Opulência total, da Jubilação derradeira dos miraculados definitivos, cuja esperança louca alimenta a banalidade da vida cotidiana”. (1995 : 22) Essa confiança mágica, faz com que a economia psíquica na vida cotidiana, funcione num eterno reprocessar, numa sequência de repetições, o que equivale dizer que se algo não se passou como  esperado, foi porque algum procedimento não foi observado a contento.

De todo o espectro de alcance, que essa nova ordem do consumo atinge e reformula, o corpo humano se oferece como um objeto rico a ser analisado. A especial atenção, que aqui lhe será destinada, justifica-se pela convergência ao corpo de todo um sistema de signos que vão lhe conferir o status de objeto de culto e de redenção. Na sociedade contemporânea o corpo, dentre outras formas de malabarismos, será duplicado em seus signos, como fonte de inspiração para Baudrillard tecer a sua crítica.

O convite permanentemente veiculado pelos meios de comunicação, para que o sujeito venha habitar, se responsabilizar, controlar e prever o seu próprio corpo, denota uma ruptura entre o corpo e aquele que o possui, além de uma duplicação entre o sujeito e o corpo enquanto posse. Esse antagonismo entre possuidor e o corpo como objeto possuído será denominado por Baudrillard, como o “terrorismo do corpo” e constituirá um novo paradoxo: “o corpo enquanto instância ameaçadora é um território a colonizar; enquanto propriedade privada é objeto-fetiche, prestando-se a um narcisismo dirigido que se configura como a quintessência das técnicas de domesticação da privacidade.“(Melo 1988 :173). Dessa maneira, encontrar-se-á  no contemporâneo, o corpo inapelavelmente obrigado a significar. Baudrillard irá considerar isso uma alienação ainda mais profunda que a sua liberação para ser explorado como força de trabalho.

Essa ditadura do padrão de beleza imposto pela sociedade contemporânea proporciona uma homogeneização corporal, o que permite uma diversidade de corpos, entretanto, a maioria das mulheres almeja alcançar este padrão e assim, se constrói no processo de intervenção, invasivo ou não.

Expressões dessa alienação, são apresentadas pela eliminação das diferenças entre os sujeitos. Em substituição a um elenco de singularidades surge uma forma diferencial hodierna de se personalizar, industrializável e comercializável como signo distintivo. O que Rolnik (1997, pag20) convencionou chamar de “kits de perfis-padrões”, que se destinam ao consumo de acordo com a órbita de mercado, independentemente de especificidades culturais, geográficas ou funcionais. A adoção de um desses modelos específicos e socialmente aceitos, pelos sujeitos, além da renúncia a toda a diferença real, viabiliza por decorrência, o apaziguamento das tensões e das contradições que uma relação concreta com o mundo e com os outros, possa acarretar.  Importante salientar que semelhante investimento é vivenciado sob a mística de liberação e de realização e ao mesmo tempo, consagrado como investimento de tipo eficaz, concorrencial e econômico.

“O corpo assim “reapropriado” torna-se função de objetivos “capitalistas”: quer dizer, se se investe é para o levar  a frutificar. O corpo não se reapropria segundo as finalidades autônomas do sujeito, mas de acordo com o princípio normativo do prazer e da rentabilidade hedonista, segundo a coação de instrumentalidade diretamente indexada pelo código e pelas normas da sociedade de produção e de consumo dirigido”. (Baudrillard, 1981 :160)

A alienação do corpo, também poderá ser traduzida pela sua erotização funcional, onde uma sexualidade “pret-port” será imposta como imperativo e como invólucro da sexualidade verdadeira, segundo Baudrillard. Observa ainda, que não apenas a sexualidade, mas toda a civilização, repousa sobre a orientação da funcionalidade, antes determinada pela produção e hoje pelo consumo. O corpo se vê condenado a erotizar-se para funcionar como elemento de troca nas relações pessoais e como engrenagem de um erotismo geral que sustenta o mercado e o consumo. Para esse intento os objetos e os corpos vêem-se, indistintamente integrados num processo de reciclagem contínua, como única resposta possível a um projeto de obsolescência programada.

Para o autor a lógica de mercado, adotada como finalidade última da civilização contemporânea, formata sua visão histórica, alterando a sua concepção de mundo. Denuncia-se com isso o caráter opressor da idolatria ao objeto, que nada tem de harmônico, mas sim de conflitual, uma vez que alija o indivíduo da sua condição de sujeito. Apoiados no entendimento da dimensão ideológica da fetichização do consumo, desenvolvida por Baudrillard, somos levados ao questionamento das abordagens clássicas,  impregnadas de cientificismo idealista, sob as quais a natureza humana, livre de ações externas, estaria sempre prestes a cumprir um programa de harmonia e equilíbrio. Essa lógica é desmascarada por ele, na medida em que o consumo, na sua opinião não se correlaciona à uma lógica individual do desejo, mas é consubstanciado na lógica do tributo e da distinção social. Essa distinção leva, sem dúvida à discriminação dos feios e gordos, por exemplo.

Portanto, para Baudrillard, o culto ao corpo é consequência da sociedade de consumo, em que se está inserido, levando vantagem sobre outros objetos de consumo. A sua presença nos meios de comunicação é constante e pesada, fazendo com que, sobretudo as mulheres queiram adquirir o padrão de beleza imposto pelas revistas, internet e spas que trazem a pílula da felicidade embalada em um corpo construído pela própria mídia consumista e ditatorial.






Fernanda Luiza Kruse Villas Bôas nasceu em Recife, Pernambuco, no Brasil. Aos cinco anos veio morar no Rio de Janeiro com sua família, partindo para Washington D.C com a família por quatro anos durante sua adolescência. Lá terminou o ensino médio e cursou um ano na Georgetown University. Fernanda tem uma rica vida acadêmica. Professora de Inglês, Português e Literaturas, pela UFRJ, Mestre em Literatura King´s College, University of London. É Mestre em Comunicação pela UFRJ e Psicóloga pela Faculdade de Psicologia na Universidade Santa Úrsula, com especialidade. Em Carl Gustav Jung em 1998. É escritora e psicóloga junguiana e com esta escolha tornou-se uma amante profunda da arte literária e da alma, psique humana. Fernanda Villas Bôas tem vários livros publicados, tais como: No Limiar da Liberdade; Luz Própria; Análise Poética do Discurso de Orfeu; Agora eu era o Herói – Estudo dos Arquétipos junguianos no discurso simbólico de Chico Buarque e A Fração Inatingivel; é um fantasma de sua própria pessoa, buscando sempre suprir o desejo de ser presente diante do sofrimento humano e às almas que a procuram. A literatura e a psicologia analítica, caminham juntas. Preenchendo os espaços abertos da ficção, Fernanda faz o caminho da mente universal e daí reconstrói o caminho de volta, servindo e desenvolvendo à sociedade o reflexo de suas próprias projeções.