O conceito de Personalidade Autotélica, elaborado pelo psicólogo norte-americano Mihály Csíkszentmihályi, estabelece uma necessária distinção entre sucesso e realização. A realização vem de dentro, e se orienta para um fim que o próprio indivíduo se coloca. Daí a palavra autotélico, significando um fim(telos) que o próprio indivíduo se impõe. O sucesso, ao contrário, se orienta “para fora”, para aquilo que julgamos irá impressionar os outros. Essa diferenciação entre realização e sucesso torna-se relevante para entendermos a relação entre Felicidade e Autotelia, e de como estas associam-se ao conceito de personalidade.
Na visão de Mihály, o ponto focal sobre a felicidade humana encontra-se na ideia do fluxo – flow– que poderia ser definido como um estado subjetivo em que o sujeito experimenta uma entrega total a atividade desempenhada, no sentido de que a pessoa percebe que tanto os desafios numa dada situação quanto suas capacidades são elevados. Ou seja, no estado de fluxo há um envolvimento tão intenso com a tarefa que a sua realização promove grande satisfação.
As pessoas com personalidades autotélicas, então, se caracterizam por usufruírem com maior freqüência dos estados de fluxo nas mais diversas atividades da vida cotidiana. As pessoas autotélicas precisam de poucos bens materiais, pouco entretenimento, pouco conforto, poder ou fama, sendo mais autônomas e independentes porque não se sentem ameaçadas ou seduzidas por recompensas externas. Ao mesmo tempo se envolvem mais com tudo ao seu redor porque estão totalmente imersas na corrente da vida.
No entanto, curiosamente, muitos resultados de estudos sobre a felicidade indicam que pessoas autotélicas, apesar de demonstrarem usufruir mais e melhor das situações cotidianas, não reportam maior felicidade ou satisfação com a vida do que as outras pessoas. Isso pode ser explicado de muitas maneiras: uma delas é que a felicidade declarada não é boa indicadora da qualidade de vida de uma pessoa. É comum que algumas pessoas digam que estão “felizes” mesmo quando não gostam de seus empregos, quando a vida doméstica é ruim, ou quando passam o tempo todo em atividades sem significado.
Isso seria ocasionado por uma tendência humana para evitar a tristeza, levando pessoas descontentes a insistirem numa vida nem sempre satisfatória. Um outro aspecto que contribui para que as pessoas se declarem felizes, mesmo sem sê-lo, diz respeito a fatores culturais. Algumas sociedades, como as latinas, por exemplo, são alicerçadas na idéia de que “ser feliz” é um traço inerente da sua identidade cultural. Mais do que isso, nessas culturas acredita-se que a felicidade e a alegria são uma vantagem comparativa desses povos em relação aos outros que são percebidos como mais sérios e/ou “tristes”, como os escandinavos ou germânicos, por exemplo.
Nesse sentido, as pessoas autotélicas podem não ser necessariamente felizes mas estão envolvidas em atividades mais complexas e se sentem melhores consigo mesmas. Assim, ter uma vida excelente pode não ser o bastante para ser feliz. O que importa é ser capaz de perceber e de usufruir a felicidade que sentimos enquanto estamos fazendo coisas que ampliam nossas habilidades, que nos ajudam a crescer e a realizar nosso potencial.
No mais, se uma das características das pessoas com personalidade autotélica é não se sentir ameaçada ou seduzida por recompensas externas, talvez elas não se sintam compelidas a se declararem como felizes quando lhes perguntam como se sentem em relação à própria vida. Porque não lhes importa muito a imagem que os outros fazem delas, mas sim como se sentem em relação a alguma coisa/evento. Num país como o Brasil, cuja identidade cultural está assentada na crença de que o povo é “feliz/alegre”, uma pessoa de personalidade autotélica não se sentiria inibida de se declarar “não feliz” caso, realmente, não se sentisse assim.
Isso, talvez, ajuda a explicar os resultados que tenho obtido nos meus estudos sobre a felicidade com brasileiros: a auto-declaração de uma pessoa – se ela é ou não feliz – é apenas um dos dados que utilizo para avaliar o nível de bem-estar subjetivo dos sujeitos. Tenho procurado ir além da superfície e busco avaliar características de personalidade associadas com a felicidade como otimismo e resiliência, por exemplo. Me dedico a estudar as práticas da pessoa, a entender como ela usa o tempo e como se sente em relação a tudo o que faz. Também me ocupo de avaliar a maturidade psicológica do indivíduo, assim como aspectos subjetivos associados à vida afetiva, à auto-imagem, etc.
Nesse exercício de tentar estudar a felicidade, para além da simples auto-declaração, tenho encontrado muito mais pessoas felizes entre as que têm personalidade autotélica.