A psicanálise Winnicotiana compreendeu o que seria o transtorno de personalidade Borderline bem como suas origens, prognósticos e tratamento: Cito como exemplo o livro Holding e Interpretação, onde podemos vislumbrar como se dão as dificuldades de manejo; em especial aquelas concernentes ao holding permeadas pela difícil tarefa de sustentar o Setting -Trabalho este que pode levar décadas- até possibilitar alguma interpretação suportável ao paciente. É preciso reconhecer a compreensão Winniccottiana em seu esforço para conceber um aparato teórico flexível, verdadeiramente afinado com os fatos clínicos situado nas “fronteiras” da categorização tradicional.

Este ensaio se esforça para discutir como o borderline se posiciona em relação ao conhecimento, tendo em vista mais precisamente discorrer sobre o impulso para o conhecimento e suas implicações éticas. Seria um erro discorrer sobre essa personalidade como se ela correspondesse a uma “quarta estrutura clínica”, ou como se fosse uma espécie de “subcategoria”. Ao contrário, para fins dessa discussão é possível forçar uma aproximação desses casos fronteiriços com a clínica da histeria da seguinte forma: O Borderline é uma histérica sem o discurso do mestre.  

Quem é o mestre? Qualquer pessoa investida por alguma flamula, alguma metáfora em alusão à ordem: As constelações superiores e inalcançáveis (Saber e Gozo no Discurso do Mestre); Alguém de carne e osso que profere o discurso da ordem fazendo o papel do mestre – e que a histérica possa tentar degrada-lo, testa-lo, reduzindo-o ao seu drama pessoal, (tentando) subordina-lo à sua subjetividade, ou seja, implicado ao inconsciente como aquilo que é recalcado.

Agora é notável e cada vez mais comum tendências do tipo Borderline adotarem certos “discursos” provenientes de consultores especialistas, aqui a sedução opera com a possibilidade da “felicidade” e de “sucesso” fácil, rápido e gratuito! “Basta seguir apenas três passos e cinco dicas”. Aqui o Borderline não está “diante da Lei”, ele está Fora-da-Lei (do pai) por isso o conhecimento dado por associações, estabelecimento de metáforas (transferência) e disposições desejosas é substituído por passos e ações que se repetidas prometem uma espécie de “preenchimento total”. É preocupante o fato de que cada vez mais se concebe o “ensino” reduzido ao “aprendizado” fácil e gratuito, ao que me parece favorecer formas de laço social referenciado agora por ordenações de consultores especialistas que seduzem estruturas psíquicas com tendências Borderline.

Com isso, salta aos olhos que a personalidade Borderline se “apropria” de um conhecimento muito rapidamente e com baixo nível de empenho, sabe-se que são utilizados aí mecanismos de emulação, isto é, identificações que reproduzem mimeticamente comportamentos até formarem núcleos de personalidade organizados. Assim os mecanismos de emulação do borderline adaptam-no bem ao seu entorno, pois ao retraírem-se os seus sentimentos (retração afetiva) também as dificuldades (resistências) diante do que ele quer conhecer diminuem quase que na mesma medida; Resta-lhe apenas o mero exercício de memorização. O “conhecimento” que se mostra a partir disso não possui lastro na realidade, uma vez que a própria definição da realidade é ontologicamente – o conjunto daquilo que resiste à vontade e ao impulso -. É o exato oposto da histeria, que vive “esquecendo” do que quer e não quer conhecer.

Isso significa dizer que nesses casos e em certo sentido o individuo perde o contato com a realidade que o circunscreve, ao mesmo tempo ficando como que invadido por ela e reduzido a conjuntos de injunções mais ou menos como um robô programado. As implicações éticas aqui abrem outro campo de discussão, uma vez que inconscientemente o Borderline é réu da maior acusação de “apropriação indébita” que se possa fazer, e talvez aqui se possa pensar em uma estrutura como o superego. Implico.  Sendo o recalque deficitário nessas personalidades Borderline, mais precisamente pelo fato de que a retração afetiva retira o caráter obsceno da cena incestuosa, enfim, não havendo recalque não há neurose de transferência, e, não havendo neurose de transferência não há troca subjetiva e envolvimento criativo/real com o outro. Então o que ocorre no mecanismo de emulação de fato provém do trabalho de recalque dos outros – como uma espécie de roubo psíquico-. Porque todas as formas de cifração da linguagem inconsciente (inclusive o sonho) dependem do trabalho do recalque de alguém.

Não há nada de novo aqui, não existe “almoço grátis”, muito menos em psicanálise e o preço do conhecimento e do enriquecimento do repertório produzido em sessão precisa ser cobrado e explicitado. Mais ainda a disponibilidade de acesso gratuito a materiais como textos, vídeos, terapias e serviços não poderiam jamais dar a entender a gratuidade desses supostos “conhecimentos”, por fim e não menos óbvio: É preciso desconfiar de qualquer coisa oferecida “de graça”, sob o risco de se por em risco nossas disposições desejosas que só são possíveis quando alguma coisa é perdida em detrimento de algo que se ganha. Mais do que isso: É a falta de algo, em suas várias configurações, que possibilitam o desejo e o impulso autentico e criativo em direção ao conhecimento.

Veja, a personalidade Histérica apresenta uma dissociação da consciência, isto é, recalcamento de “núcleos perversos”, leia-se suas propensões à transgressão dissociadas da consciência. O Borderline participando de uma organização esquizoide dissocia a consciência de seu Self verdadeiro; resta-lhe apenas viver aprisionados nos sonhos que não lhe são próprios, que não são advindos do afrouxamento do seu recalque e do seu trabalho de sonho, resta apenas uma intrusão inautêntica do outro – Do consultor que agora é o guardião da “lei” e cuja lei obriga ao gozo-: Seja feliz, divirta-se, viva uma vida mais leve etc etc. A grande questão é que existem neuróticos que gozam com o fato de serem roubados exatamente dessa forma, mas isso é outro assunto para outro ensaio.

Carlos Bengio

Psicólogo. CRP 117690. Mestrando pela PUC em psicologia Clínica - Método psicanalítico e formação da cultura - Clínica Particular: São Paulo, (SP). Psicólogo clínico, interessado em psicanálise cultura e sociedade, especialmente cultura e sociedade brasileira. Contato: (11) 9 7578-1485(Tim).

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