I. A SUPERAÇÃO COMO CURA
O inconsciente coloca-se aquém da consciência, portanto aquém do conhecimento. Será um algo que existe efetivamente? É possível. Será apenas uma quimera que denota (representa) o que não sei de mim? É possível. De toda sorte seu reconhecimento e sua “racionalização” são uma construção da mente, uma construção no plano do real. Nesse plano definimos como objeto – portanto passível de ser conhecido e “manipulado” – aquele algo posto aquém do conhecimento.
Talvez o inconsciente seja, apenas, o conjunto de minhas insuficiências, ou de um algo indefinível que tomo como sendo minhas insuficiências. Ao tornar este algo objetivo, ao transportar para o plano real um algo que se coloca aquém do conhecimento, torno este algo racionalizável e, portanto, passível de ser “manipulado” (dirigido, domado) por mim.
Não importa qual seja a racionalização, não importa o caráter do “complexo” (da insuficiência efetiva ou presumida), o que importa (o que importa para minha “cura”) é a possibilidade de superar a insuficiência. E talvez o que importe efetivamente seja a mera efetivação da superação. Ao superar (considerar que superei) um algo, reconheço-me como capaz; e poder reconhecer-me como capaz representa superar-me. Aí está a cura: sentir que sou capaz de superar-me; por saber-me capaz de superar-me, eu efetivamente me supero, gerando um novo quadro vivencial e redefinindo-me perante mim e ante o mundo (os outros). Ao “achar” que me superei, eu efetivamente me supero, criando, assim, uma nova realidade. Da mesma sorte, ao me sentir incapaz de superação, torno-me incapaz, gerando uma situação na qual estou (por minha fraqueza) condenado (condeno-me) a grande sofrimento.
II. A ESTRATÉGIA DE CURA
A psicanálise parece-me algo muito particular no que tange à sua ação como processo curativo. Isto porque, efetivamente, oferece a possibilidade de enfrentamento e superação de um conjunto (que não conheço, mas cuja existência admito) de limitações psíquicas. E isto com base no que se poderia chamar processo de autor reconhecimento assistido, o qual, por seu turno, dá-se exclusivamente no plano do pensamento com base na interação paciente/terapeuta. De certa forma o “conhecimento” de um “algo” leva o paciente à superação de sua limitação. E este processo de superação dá-se mediante a elaboração de um constructo mais ou menos sofisticado que representa a “criação” (geração) da “doença” (que expressa no plano do consciente a limitação em questão) dando-se, correlatamente, o desenvolvimento (criação, geração) de um processo curativo que leva à superação daquela limitação (admitida, sempre, como efetiva, pois não importa se ela é, como se diria em termos do senso comum, “verdadeira ou não” uma vez que, sempre, será “verdadeira”). Assim, ao mesmo tempo em que se dá a “construção” da “doença”, desenvolve-se, justamente porque a doença assim gerada é reconhecida e conhecida conscientemente, o processo curativo.
O mecanismo de cura se passa como se houvesse uma “disfunção limitativa” inalcançável (inconsciente) que é elaborada como “doença” reconhecível (detectável) pela consciência (como se houvesse uma galeria de “capuzes” a serem adotados pelo paciente), tornando-se, portanto, “manipulável” (trabalhável, domesticável). À medida, pois, que se dá a “construção” deste algo (“doença”) manipulável, ocorre o processo curativo (processo de domesticação) do qual resulta a “cura” (superação) da doença criada e, por estar esta última associada àquela “disfunção limitativa”, a superação de tal disfunção. A cura não é, pois, imediata, o desconhecido (disfunção limitativa) vê-se mediado pela consciência que elabora (constrói) a “doença” e, correlatamente, constrói (elabora, desenvolve) o processo de cura de tal doença (manipulável por ser conscientemente reconhecida). Ao “curar-se” de tal “doença criada”, chega o paciente à superação da limitação que fugia (escapava) à consciência por colocar-se aquém dela.
“PROCESSO CURATIVO”
Trata-se, pois, de uma estratégia de cura; de um sofisticado e efetivo procedimento terapêutico de auto-ajuda assistida, pois, durante todo o processo de “cura”, exige-se a presença do terapeuta que, juntamente com o paciente, orientará o processo de construção/superação acima descrito.
* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo
TEXTO ORIGINAL DE PRAVDA
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