SAÚDE MENTAL

Afinal, o que é flexibilidade psicológica?

As terapias contextuais têm se difundido de maneira cada vez mais expressiva, seja no Brasil, seja em outras partes do mundo, como Estados Unidos e Europa. A Terapia de Aceitação e Compromisso tem lugar especial, na medida em que sua proposta tem sido cada vez mais conhecida, inclusive por pessoas de outras áreas. Não é mais tão incomum sermos expostos a mensagens que costumavam ser bastante contra intuitivas, como a de que não se deve procurar evitar o sofrimento a qualquer custo.

Um problema de toda essa propagação, porém, é que muitas vezes a mensagem pode chegar incompleta. Muitos autores que trabalharam com a ACT desde o princípio se propuseram a divulga-la de maneira que fosse compreensível e permitisse diálogo entre pessoas de diferentes áreas e mesmo com o público consumidor de serviços psicológicos. Para isso, muitas vezes esses autores recorreram aos chamados “termos de nível médio” (middle-level terms), que são termos não-técnicos de utilidade clínica, mas que não foram gerados através de pesquisa básica (McEntaggart, Barnes-Holmes, Hussey & Barnes-Holmes, 2014). Esses termos tiveram grande importância para que a ACT fosse difundida e aceita fora dos limites da Análise Experimental do Comportamento, mas, uma vez que isso tenha acontecido, nos resta o problema de, enquanto clínicos, resistir à tendência de parar nossa análise por aí.

Para que a pesquisa e o próprio trabalho clínico analítico-comportamental sejam desenvolvidos é importante que tenhamos e entendamos as definições técnicas de termos centrais, e é sobre isso que venho falar hoje. Nos últimos anos, alguns pesquisadores da ACT se propuseram a investir em definições e discussões que pudessem fortalecer um programa de pesquisa clínica. Alguns dos resultados dessas discussões são bem recentes e bem importantes. Minha proposta hoje é de voltarmos às bases. Qual é o objetivo da ACT e como ela se propõe a alcançá-lo na clínica? Como falar disso de modo a trazer os termos de nível médio para uma discussão técnica analítico-comportamental?

Trabalhos recentes propõem que o objetivo da ACT é promover a flexibilidade psicológica. Törneke, Luciano, Barnes-Holmes e Bond (2016) definem flexibilidade psicológica como a habilidade de um indivíduo de responder à sua própria resposta enquanto participando de uma moldura de hierarquia com o “eu” dêitico. Esse tipo de resposta é geralmente acompanhado de uma redução do controle de estímulos exercido pela resposta em questão, permitindo que ocorram respostas relacionais que especifiquem funções apetitivas de augmental, assim como outros comportamentos que participem de molduras de coordenação com esse responder relacional.

A definição trazida é inteiramente técnica e requer alguma reflexão para que seja totalmente compreendida. Em outras palavras, pode-se dizer que flexibilidade psicológica é a habilidade de perceber e reagir ao seu próprio comportamento de maneira que seja possível agir em direção a fins importantes. É a possibilidade de não precisar fugir de eventos privados aversivos, sendo possível que o sujeito observe o que está sentindo e pensando e escolha o curso de ação que o aproximará do que é importante para ele.

Para promover a flexibilidade psicológica, Törneke, Luciano, Barnes-Holmes e Bond (2016) propõem três estratégias centrais, cuja discussão pode servir para que possamos entender melhor onde um terapeuta ACT pretende chegar:

Ajudar o cliente a discriminar1 a relação entre classes funcionais de respostas atuais e as consequências problemáticas produzidas por essas respostas.

Aqui estamos falando do papel central da análise funcional. É importante que possamos ensinar o cliente a discriminar a tríplice contingência, isto é, identificar o contexto em que se comporta e as variáveis e controle de seus comportamentos. Aqui procuramos entender – e clarificar – como funcionam os padrões que geram sofrimento na vida do cliente.

Ajudar o cliente a discriminar suas respostas de forma a vê-las enquanto participando de uma moldura relacional de hierarquia com o “eu” dêitico e treinar esse repertório como uma classe funcional alternativa.

Nesse ponto procuramos trabalhar de forma a minar a tendência natural que temos de evitar o sofrimento a qualquer custo. Procuraremos exercitar com o cliente respostas alternativas diante de pensamentos e sentimentos que em razão de uma história de vida específica se estabeleceram como aversivos condicionados, de forma que ele não precise necessariamente evitá-los (aceitação). “Participar de uma moldura relacional de hierarquia com o ‘eu dêitico’” significa dizer discriminar a noção de “eu” enquanto maior que os pensamentos e sentimentos, de maneira que os últimos não se confundam com o primeiro. Aqui entram as metáforas de desfusão – papo para outra coluna! – que tanto gostamos de usar na clínica: os passageiros no ônibus, o tabuleiro de xadrez, as nuvens no céu, entre outros.

Ajudar o cliente a desenvolver esse repertório alternativo de forma a especificar funções específicas de augmental para comportamentos futuros.

Finalmente chegamos à noção de valores. Discriminando padrões problemáticos e sendo capaz de encarar os próprios sentimentos e pensamentos sem precisar fugir deles, é importante que possamos ajudar o cliente a entender o que importa para ele, em que direção ele gostaria que sua vida fosse. Fortalecendo essa noção, ajudaremos a estabelecer e potencializar reforçadores. Uma vez que consigamos ajudar um cliente a discriminar que ser um bom filho é algo importante, por exemplo, é possível tornar comportamentos que vão nessa direção (estar presente em um almoço de família ou fazer uma surpresa de dia das mães, por exemplo) mais reforçadores e dessa forma aumentar a sua probabilidade, ainda que se engajar nesses comportamentos possa envolver entrar em contato com emoções desagradáveis (se envolver em um desentendimento ou constatar que a surpresa não saiu como planejada, por exemplo).

Apesar de serem apresentadas em tópicos, essas estratégias não são propostas enquanto sequência. Na prática, muitas vezes lidamos com uma mistura de estratégias enfocando os diversos aspectos discutidos e vamos e voltamos na medida em que sentimos ser benéfico para o cliente. Porém, essa estrutura nos ajuda a identificar o caminho que nos propomos a percorrer na clínica, a partir de uma visão da Terapia de Aceitação e Compromisso.

Concepções técnicas como essa, porém, não são de aceitação unânime e ainda existe discussão sobre a utilidade de tais definições, uma vez que alguns autores defendem o uso de termos de nível médio, sob o argumento que definições muito técnicas poderiam afastar as pessoas e dificultar o entendimento. Por outro lado, é somente a partir de definições técnicas precisas que podemos avançar em termos de pesquisa e solidificar o conhecimento, permitindo que os clínicos sejam capazes de desenvolver e avaliar sua própria prática com maior segurança. Cabe a nós então, na humilde opinião desta que vos fala, estabelecer a ponte entre discussão técnica e tradução acessível para que mantenhamos nosso foco acadêmico sem afastar o público e às pessoas que tentamos tanto alcançar: nossos clientes.

1 Existem divergências quanto à aplicabilidade do termo “discriminar” nesse contexto, porém, uma vez que faz parte da terminologia utilizada pelos autores citados, houve a preferência por preservá-lo aqui.

Bibliografia:

McEnteggart, C., Barnes-Holmes, Y., Hussey, I., & Barnes-Holmes, D. (2015). The ties between a basic science of language and cognition and clinical applications. Current Opinion in Psychology, 2, 56-59.

Törneke, N., Luciano, C., Barnes-Holmes, Y., & Bond, F. (2016). RFT for clinical practice: Three core strategies in understanding and treating human suffering. The Wiley handbook of contextual behavioral science, 254-273.

Imagem de capa: Shutterstock/Viktor Gladkov

TEXTO ORIGINAL DE COMPORTE-SE

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