Por Amanda Mont’Alvão Veloso
Lembra quando era normal nós, seres humanos, viajarmos na maionese durante a aula, ficarmos inquietos, desligarmos do mundo, fecharmos a cara e rirmos menos de um minuto depois?
Afundarmos na fossa, entrarmos em crise existencial, comermos loucamente, termos dor de cotovelo, sofrermos as dores de existir, nos angustiar, explodirmos de raiva e chorar até dormir?
Sofrer, errar, mudar de ideia e ficar vulnerável sem que isso tudo fosse encarado como um transtorno mental ou como uma anormalidade no nosso bem-estar? Quando o bem-estar necessariamente incluía a existência do mal-estar?
Bons tempos, esses. “Transtorno de pânico, TOC, bipolaridade, transtornos alimentares, autismo, déficit de atenção… nos últimos anos e de maneira crescente, estes e inúmeros outros termos da linguagem técnica da psiquiatria passaram a fazer parte das falas cotidianas das pessoas em geral”, afirma programação do Café Filosófico destinada a discutir transtornos mentais.
“O diagnóstico psiquiátrico virou a nossa maneira contemporânea de subjetivar as nossas vivências emocionais. Cada vez mais a gente tem a tendência de conceber os nossos sofrimentos, as nossas paixões, as nossas dificuldades em termos médicos e de organizar a nossa mentalidade sobre essas questões a partir de uma perspectiva médica”, constata o psiquiatra e psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira durante a palestra O que é transtorno mental?, no Café Filosófico.
É como se as dores da vida, tão conectadas às nossas emoções e sentimentos, fossem avaliadas como “normal” ou “anormal” pela ciência. Como se a depressão de uma pessoa fosse apenas uma questão de genes e neurotransmissores, e não tivesse qualquer relação com a história dela, com seus conflitos e com a cultura em que ela vive.
Almejar uma vida dentro da normalidade – e completamente destituída da loucura que nos é essencial – parece ser o anseio de uma sociedade bastante inclinada a tomar pílulas que façam desaparecer as dificuldades da vida.
“A busca desenfreada por medicamentos contra transtornos mentais tem como pano de fundo a procura por uma normalidade pouco questionada. Afinal, o que é ser normal hoje em dia? Quem define a ordem à qual devemos nos adaptar? Não seria essa busca cega pela adaptação à ordem justamente a razão, e não a solução, de tanto sofrimento? A quem interessa a normalização nos dias atuais?”, questiona o texto que traz a programação da palestra.
Pensando em conceito, essa tal normalidade de que tanto falamos não é uma só: Ela possui diversas definições, criadas a partir de visões filosóficas, ideológicas e pragmáticas, afirma o filósofo e médico francês Georges Canguilhem no livro “O Normal e o Patológico”.
Uma dessas noções é a ausência de doença, pela qual a ausência de sintomas, sinais ou doenças é sinônimo de saúde.
Outra noção existente coloca a normalidade como bem-estar. A partir de 1946, A Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu a saúde como um estado de bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doença.
Nosso mal-estar cotidiano, portanto, poderia ser encarado como anormalidade. E no lugar de comportamentos e sentimentos, transtornos. Somos doentes ou estamos simplesmente vivendo as dores da existência?
Como lembra Pereira, transtorno mental é a tradução de mental disorder, o que supõe que falta uma order (ordem) para se deixar a anormalidade.
Estatísticas dizem que a falta de normalidade anda nos rondando bastante: um em cada 5 americanos adultos possui algum transtorno mental diagnosticável, segundo o Instituto de Saúde Mental dos EUA.
Entre crianças e adolescentes de 13 a 18 anos, estima-se que 20% delas possuam ou tenham tido algum transtorno mental sério.
Porém, é fundamental que esses números sejam lidos tendo em vista que cada vez mais comportamentos humanos têm sido categorizados como transtorno mental ou patologias. “Precisamos voltar a nos espantar com estatísticas tão maciças dos transtornos mentais”, recomenda Pereira em sua palestra.
Para se ter uma ideia, o Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM), documento que define e descreve os transtornos mentais e orienta o trabalho dos psiquiatras, praticamente triplicou a quantidade de diagnósticos existentes desde sua primeira edição, em 1962.
Na época, o manual apontava 106 diagnósticos. Na segunda edição, de 1968, o número subiu para 182. O terceiro volume trazia 265 transtornos. A revisão dele, de 1987, fez com que o catálogo subisse para 292.
A quarta edição, de 1994, categorizava 297 diagnósticos. A quinta edição, lançada em 2013, trouxe mais de 300 categorias. E com um detalhe: mais de 70% dos profissionais envolvidos na mais recente edição tinham algum vínculo com a indústria farmacêutica.
A julgar por esse aumento no número de diagnósticos, estamos ficando mais doentes e anormais. Será?
Sabemos que a experiência de se perder alguém que se ama é de grande sofrimento. Mas pelo DSM-5, se a tristeza do luto durar mais de duas semanas, passa a ser considerada um sintoma da depressão. Faz sentido usarmos uma régua universal e diagnóstica para se mensurar e delimitar os efeitos de uma perda tão significativa e singular para cada um de nós?
“É absurdo. Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais”, afirma ao El País o psiquiatra americano Allen Frances. Ele dirigiu a equipe que redigiu o DSM IV e é autor do livro Saving Normal (inédito no Brasil), no qual faz uma autocrítica e questiona a influência do manual na crescente medicalização da vida.
“Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução. O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano, especialmente na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e patologias no DSM V vai transformar a atual inflação diagnóstica em hiperinflação.”
As crianças têm sido alvo frequente do hábito de se diagnosticar a vida. Mais grave ainda é perceber que muitos dos diagnósticos, como o de transtorno de déficit de atenção, passam a definir a criança. “’Doutor, meu filho é TDAH’, diz uma mãe no consultório. Ela não diz que o filho tem diagnóstico TDAH”, observa Pereira.
Uma vez diagnosticada, a criança é tratada com Ritalina. Mais e mais diagnósticos semelhantes aparecem. Porém, permanece a dúvida: a infância que tivemos, antes de se criar o diagnóstico, foi repleta de bagunças, travessuras, inquietação e foco disperso, ou deixamos de reconhecer e tratar um transtorno mental?
“Temos de aceitar que há diferenças entre as crianças e que nem todas cabem em um molde de normalidade que tornamos cada vez mais estreito. É muito importante que os pais protejam seus filhos, mas do excesso de medicação”, enfatiza Frances.
Pereira destaca que a vida dessa criança deve ser observada, bem como as questões que estão em jogo na escola e na família.
“Uma criança que não se adapta à escola pode se beneficiar muito de um tratamento medicamentoso, desde que a gente não a resuma a uma alteração neurobiológica.”
Ou seja: o “filho que é TDAH” tem nome, sobrenome, sonhos, conflitos com a família, tretas na escola, desejos a serem realizados e dificuldades na vida. Ele é um sujeito, e não um diagnóstico. E muito possivelmente sua dispersão e hiperatividade, em vez de um desequilíbrio químico, são sua maneira de se colocar no mundo – ou de expressar uma questão que o esteja incomodando.
Discurso de normalidade
Não é só na infância que o discurso da normalidade é opressor. Ele oprime também nas amizades e no mercado de trabalho. Quantas vezes nos deparamos com uma pressão para que sempre tenhamos estrutura em nossos relacionamentos pessoais, e possamos ser funcionais no mercado de trabalho?
Qual o prejuízo causado por um funcionário improdutivo por uma questão emocional? Não à toa, todos os dias aparecem alguma receita ou passo a passo para sermos sujeitos perfeitos e preparados para qualquer desafio. Essa “normalidade” é benéfica para quem? Para nós mesmos ou para um mundo que nos chama de loucos?
“Ninguém suporta pessoas que dão respostas inadequadas para as solicitações da vida. Queremos elas o mais longe possível. As aprisionamos em lugares distantes (hospícios) e sonhamos com a ideia de que talvez elas tenham um defeito qualquer (uma impureza qualquer) que possa ser tratado por uma tecnologia rápida e eficaz: elétrica (choque) ou química (remédios) que higienize o paciente e o traga de volta ao nosso mundo normal. Enquanto essa tecnologia eficaz não chega, o louco fica esquecido em insanos asilos até perder a sua humanidade”, critica o cineasta Roberto Berliner, que lançou neste ano um filme sobre a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999).
A psiquiatra alagoana Nise da Silveira
Nise revolucionou o tratamento da loucura no Brasil ao humanizar a relação e os cuidados com seus pacientes – ela os chamava de clientes. Depois de questionar as práticas do Hospital Pedro II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional, no Rio de Janeiro, e de confrontar seus próprios colegas, a psiquiatra melhorou a qualidade de vida dos clientes e estimulou a arte como canal de expressão para pessoas cuja voz a sociedade da sanidade não suporta.
A psiquiatra permanece como referência atual e urgente para a luta antimanicomial que se trava no Brasil, uma vez que demonstrou os efeitos significativos da terapia ocupacional e apontou possibilidades de se reabilitar os “loucos” fora de instituições, em oposição ao conveniente aprisionamento e isolamento deles. Em 1956, Nise fundou a Casa das Palmeiras, a primeira instituição de acolhimento a desenvolver um projeto de desinstitucionalização dos manicômios no Brasil.
Transtorno mental desconectado da sociedade
Na medida em que comportamentos humanos são categorizados como transtornos mentais derivados de um desequilíbrio químico, o indivíduo passa a não ter relação com a própria condição de saúde. Receber um diagnóstico acaba sendo tranquilizador: o sujeito passa a ser vítima de algo sobre o qual não tem controle, e a sociedade é isentada de qualquer responsabilidade.
“A imensa proliferação atual de ‘transtornos mentais’ como a insônia, o alcoolismo, a drogadicção, a ansiedade, os transtornos alimentares, a falta de atenção e mesmo a depressão não deveria por si só interrogar de maneira radical tanto a sociedade atual, tanto quanto os sujeitos que dela participam?”, questiona a programação do Café Filosófico.
A doutora em ciências sociais e mestre em antropologia social Érica Renata de Souza, em artigo publicado na Revista Mente & Cérebro, sustenta que não há como pensar a loucura das pessoas sem a sociedade em que elas vivem.
“A sociedade que produz e é produzida por regras e indivíduos que devem se conformar a elas é a mesma sociedade que cria e é criada pelos indivíduos que as transgridem. Essas pessoas – bem como as consequências de suas atitudes – parecem ser alocadas na fronteira borrada entre lucidez e loucura, altruísmos e egoísmo, numa tênue separação entre o eu e o outro. E, se esses indivíduos são produzidos pela mesma sociedade que os condena, suas ações têm, também caráter social, pois fora daquele contexto cultural dificilmente conseguiriam reproduzir os mesmo atos.”
Em meio a tantos transtornos que nomeiam a ausência de normalidade, portanto, de bem-estar, é esperado que as pessoas busquem tratamento. Mas qual resultado estamos buscando quando falamos de tratamento? Deixarmos de ser anormais e obter da sociedade o reconhecimento da nossa normalidade?
“Os sistemas de diagnóstico de hoje definem o que é disorder, mas em nenhum momento explicitam qual é a order a restabelecer”, observa Pereira.
Em paralelo a essa situação, diagnosticar o sofrimento e dar a ele um nome de transtorno ou doença é uma maneira de dizer que o paciente “merece tratamento”, afirma à Vice o psicanalista Christian Dunker. Mas esse incentivo ao tratamento não é gratuito, ele critica.
“A indústria do sofrimento é uma poderosa força econômica. Você tem que produzir sofrimento, tem que dizer para as pessoas que aquilo é um problema, tem que produzir uma epidemia de depressão e aí você diz ‘agora eu tenho a cura’.”
Em sua palestra no Café Filosófico, o psiquiatra e psicanalista Pereira afirma que é imprescindível que se escute o paciente e sua história para entender seus sintomas.
“Eu não sou contra indústria farmacêutica ou medicação. Eu sou contra você reduzir esse problema a algo que se trata com um diagnóstico, remédio e readaptação”.
A saúde mental permanece um grande tabu em nossa sociedade. Em onde há tabu, existe a possibilidade de se desinformar, estigmatizar e de lucrar com isso. É, no mínimo, curioso que diariamente sejamos cobrados para nos mostrar normais, saudáveis e funcionais, ao mesmo tempo em que questões bastante particulares de nosso sofrimento ganham rótulos de transtorno e de doença mental.
Se não conseguimos ser felizes em tempo integral é porque necessariamente somos depressivos. Não existe nada entre o 8 ou 80. Apenas saúde ou doença, lúcido ou louco. Essa simplificação é alarmante, porque sabemos o quanto somos diferentes e singulares, e o quanto nossas emoções nos colocam em zonas borradas, que fogem de qualquer explicação racional.
A banalização das questões de saúde mental acaba nos prejudicando de maneira generalizada: primeiro porque institui uma cobrança por normalidade que angustia profundamente, transmite a ideia de que tudo pode ser controlado e não dá espaço para nossas contradições e erros. É uma grande exigência para que sejamos super-humanos perfeitos.
Segundo, e de maneira mais grave, porque prejudica as pessoas que realmente precisam de acolhimento e cuidados emergenciais, seja porque não possuem condições emocionais ou financeiras para procurar ajuda, ou porque estão em situação de risco.
Allen Frances destaca que, como seres humanos, temos uma enorme capacidade de confrontar adversidades. Viver uma cultura que recorre aos comprimidos para buscar o bem-estar reduz nossa segurança em nós mesmos e enfraquece nossa capacidade de resolver problemas.
TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST
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