Por Larissa Roso
Quebra-cabeças, bonecas, miniaturas de super-heróis, jogos de memória e de montar, ursos de pelúcia – o quarto está lotado de brinquedos.
– Escolhe – pede o adulto.
Diante de uma oferta numerosa de opções, a criança não consegue decidir. Responde, entediada:
– Tanto faz.
Se a proposta não for explícita, permitindo que ela especifique o que quer fazer ou que improvise no tempo livre, é comum que não saiba como agir.
É típico da criança desejar, sonhar, criar, fantasiar, mas características dos tempos atuais parecem estar colocando em risco essas habilidades e permitindo situações como a que acaba de ser descrita. Se em outras épocas as crianças já foram mais reprimidas e pouco ouvidas, hoje, em muitas famílias, a educação dos filhos parece mirar o outro extremo: excessivamente atendidas em suas vontades, imersas em uma agenda repleta de compromissos e cercadas por uma abundância de objetos que nem conseguem dar conta de retirar das caixas e aproveitar, meninos e meninas, alertam especialistas, podem estar se tornando melancólicos.
Comumente interpretada como tristeza, a melancolia é mais do que isso. Trata-se de um estado de indiferença, desinteresse, suspensão do desejo. Aos olhos desses pequenos, tudo se equivale, nada tem graça ou parece valer o investimento. São crianças que não toleram a falta e se frustram com facilidade. Conduzidas de um lado a outro sem ter um momento para exercitar a criatividade e pensar no que gostariam de fazer, elas são tomadas por apatia.
Some-se a isso o esforço dos pais em poupar os filhos das perdas e dos aborrecimentos inerentes à esfera familiar e ao mundo que os cerca, inventando justificativas para mascarar a verdade ou blindando-os contra as cenas mais amargas – a morte de um animal de estimação, a separação do casal, a mudança de bairro ou escola por conta dos altos custos, a visão do pedinte maltrapilho na sinaleira. O resultado é que as crianças acabam por habitar um mundo irreal, estéril, pobre em experiências e sensações, onde não é possível testar as ferramentas psíquicas fundamentais para que possam amadurecer e enfrentar os reveses da existência.
A tentativa de reorientar essas práticas depende de uma ampla reflexão. Para começar, Julieta Jerusalinsky, psicanalista membro do Centro Lydia Coriat e da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), propõe a desconstrução de uma imagem forte e arraigada: a da infância que se resume a um período de felicidade plena e constante, imune a dissabores. Trata-se de idealização, ilusão, aponta ela. Como em qualquer outra fase, os primeiros anos reservam suas parcelas de bons e maus momentos. Há de se abrir espaço para tristezas, perdas, frustrações. Os percalços não podem ser ignorados, “pulados”, como se não fossem vistos, sendo encobertos rapidamente por uma distração ou um presente. Atrair a atenção da criança para outro lado não faz com que a dor desapareça.
– Elaborar uma tristeza é o que permite que a gente não se melancolize. Se não encontramos no outro os recursos para isso, vamos ficando anestesiados e mortificados. Esse é o paradoxo: justamente ao tentar evitar toda e qualquer tristeza é que se pode acabar empurrando alguém para a melancolia – explica Julieta.
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“Em vez de representar a falta e elaborar a dimensão da perda, quando entramos com a criança na via de restituição do objeto, ou na via de esquivar o acontecimento doloroso, nós a empurramos para uma situação muito pior, porque não compartilhamos com ela os recursos que permitem elaborar as perdas e as faltas, e isso cria uma fragilidade psíquica muito maior.”
Julieta Jerusalinsky
Psicanalista
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A psicanalista ressalta que não se trata de exaltar o passado e demonizar os padrões vigentes. Cada tempo tem suas peculiaridades – e o atual, acelerado, cobra o seu preço. Ainda que sem se dar conta, os adultos estão repassando o modelo de comportamento e valores a que estão submetidos. Ao cumprir rotinas em que os períodos de trabalho e descanso estão cada vez mais fundidos, quase uma mistura indistinta, e quando nenhuma atividade parece ser importante o suficiente para impedir que o toque do celular a interrompa, eles impõem aos filhos o mesmo ritmo. Sobrecarregadas, as crianças são alvo permanente de uma série de estímulos. Além do turno regular na escola e dos deveres de casa, elas frequentam aulas de idiomas, dança e esportes, comparecem a festinhas de aniversário, acompanham os pais ao supermercado, à pet shop, ao salão de beleza e muitas vezes até o escritório. No final de semana, é hora de aproveitar bem o tempo livre – a ânsia é tamanha que a folga se transforma em um rol infindável de afazeres. Sábado e domingo viram um check-list de divertimentos. Dias tão abarrotados se esvaziam de significação porque faltam horas livres para dar conta de questões essenciais.
Julieta reflete:
– Vivemos uma época em que todos estão muito assaltados pela apreensão imediata do acontecimento, mas na vida é preciso também ter tempo e espaço para elaborar o que nos acontece: os acontecimentos tristes que nos afligem e também aquilo que é prazeroso. Não basta ver um filme, preciso ver um filme e poder conversar com o outro sobre o que nesse filme nos afetou. Não basta fazer uma viagem e tirar uma quantidade infindável de selfies, é preciso poder falar do que a gente gostou, do que não gostou. A vida implica uma elaboração das vivências para que elas se tornem experiências, e isso passa pela alegria e pela tristeza. Não é fazer uma apologia da tristeza, mas é elaborando certos acontecimentos tristes que podemos dar lugar à complexidade do que é viver e, assim, tornar os acontecimentos da vida transformadores.
Os pais, muitas vezes sentindo-se culpados por estarem ausentes, na tentativa de poupar e compensar os filhos escorregam para o excesso de satisfações. Apelam, com frequência, a dois recursos: a mentira e a pronta reposição. Tome-se o exemplo da morte de um animal doméstico. Em vez de contar que o mascote não resistiu aos ferimentos causados por um atropelamento, dizem que “ele quis ir embora”. Na cabeça da criança, essa versão pode dar impulso a uma série de questionamentos: “Foi embora por quê? Ele não gostava de viver aqui? Não se sentia cuidado por nossa família?”. No caso de um carrinho que caiu no chão e quebrou, pode parecer mais fácil – e mais eficiente para cessar a choradeira – descartar o item avariado e comprar um novo.
– Em vez de representar a falta e elaborar a dimensão da perda, quando entramos com a criança na via de restituição do objeto, ou na via de esquivar o acontecimento doloroso, nós a empurramos para uma situação muito pior, porque não compartilhamos com ela os recursos que permitem elaborar as perdas e as faltas, e isso cria uma fragilidade psíquica muito maior – comenta Julieta.
A psicóloga Aidê Knijnik Wainberg, especialista no atendimento a crianças, adolescentes, adultos e famílias, destaca que também é frequente a substituição em outros níveis: em vez de escutar e acolher, os adultos compram algo que possa representar um alívio.
– Não é por mal nem por descaso, mas compensar a tristeza é um dos maiores erros que os pais cometem. A menina chega em casa e diz “briguei com a fulana”. A mãe: “Não fica mal, nós vamos lá no shopping comprar uma boneca”. É uma troca que não ajuda a criança. Ela precisa da presença da mãe e do pai, precisa deles disponíveis, precisa que compreendam o que está acontecendo com ela, que tenham empatia com o sentimento dela, que ajudem a nomear e a entender o que está sentindo. “Olha, eu imagino o quanto você está triste, quando eu era criança também acontecia isso, conta para mim, me abraça, dá um beijo” – diz Aidê. – Os pais muitas vezes se assustam porque não lidaram ou não sabem lidar com as suas tristezas. Sempre é difícil abordar a dificuldade com o filho, em qualquer etapa – reconhece.
TEXTO ORIGINAL DE ZERO HORA
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