COMPORTAMENTO

A arte de perguntar

‘Problematizar’ virou um jargão em educação. E, como todo jargão, tem se tornado uma palavra enfraquecida, cujo significado vem se perdendo. Fala-se em ‘problematizar’, mas, além de não se ter clareza sobre o que é, não se sabe muito bem como fazê-lo. Outro dia mesmo, visitando uma página de perguntas e respostas na internet, percebi claramente esse fato. Uma estudante colocava a seguinte questão: “O que é problematização? Tenho que ler um texto e a professora mandou a gente problematizar, mas eu não entendi nada.”

A ‘fala’ acima está adaptada, porque a pontuação e as abreviaturas contidas no original não tornariam o seu sentido tão fácil de compreender. Mas não é isso que interessa aqui. Na realidade, o mais curioso é o termo ‘problematização’ já ter chegado às salas de aula como tarefa para os alunos sem, no entanto, ser explicado ou ensinado na prática. Isso é típico de um jargão – pressupõe-se que o outro saiba do que se trata. Também é típico do nosso sistema de ensino – pressupõe-se que se saiba o que é para fazer. Tão interessante quanto a pergunta apresentada, no entanto, são as respostas formuladas.

Há uma mais ‘técnica’, que trata do fato de a problematização no ensino estar relacionada à busca da contextualização, da visão interdisciplinar, do resgate dos conhecimentos prévios, da atribuição de significado ao que é apresentado e do convite à reflexão.
Nessa resposta, chama a atenção a informação: “Perguntas bem colocadas, sem dúvida, promovem o interesse do aluno, que se sente desafiado a mobilizar seus conhecimentos para resolvê-las e, mais importante, estimulado a aprender mais a respeito a fim de construir explicações satisfatórias. No processo todo [de problematização], o estudante provavelmente irá abandonar, complementar ou reformular suas hipóteses iniciais, substituindo-as por outras mais adequadas.”

A outra resposta, mais ‘didática’, destaca outros aspectos da problematização – a polêmica, a participação e a discussão que ela deve envolver – e recomenda: “Se [a professora] deu um texto, ela quer que você, a partir desse texto, descubra algo que possa ‘saltar’ aos olhos das pessoas e do qual todos queiram participar.”

Como recurso a autora dessa resposta dá um exemplo e, indiretamente, indica à estudante que formule a questão importante do texto, concordando ou não “com sua pergunta”. Uma pergunta – dá a entender a autora com o exemplo que cita – “mexe com pessoas”. O que se apresenta como comum nessas respostas é, portanto, o fato de que ‘problematizar’ é simplesmente fazer boas perguntas. Mas, faltou dizer, no entanto, que isso não é tarefa simples; que problematizar envolve técnica e aprendizado, sem os quais continuará a ser apenas mais um jargão pedagógico. Mais uma tarefa sem sentido, para nós e nossos alunos.

Chega de prato feito
Como afirmam María del Puy Pérez Echeverría e Juan Ignacio Pozo, pesquisadores da Universidade Autônoma de Madri (Espanha) e dois dos principais teóricos do chamado ‘ensino por resolução de problemas’, problematizar não é ensinar os alunos a resolver problemas (propostos por outros) ou a buscar soluções (também obtidas por outros). Isso, de fato, já é o estabelecido – o ‘prato feito’ a que nos acostumamos na educação tradicional.
O desejável é uma educação em que a proposição de questões e a busca de soluções sejam, de fato, considerados conteúdos e habilidades a serem ensinados/aprendidos
O desejável agora é uma educação em que a proposição de questões e a busca de soluções sejam, de fato, considerados conteúdos e habilidades a serem ensinados/aprendidos. Ou, como dizem Pozo e Echeverría, uma educação que priorize o ensinar e o ajudar a criar o hábito e a atitude de propor problemas para si mesmo e de transformar a própria realidade em um problema que mereça ser questionado e estudado.
Em outras palavras, retornamos à questão que já discutimos em postagem anterior. É preciso começar a lidar melhor com a dúvida e a incerteza e, junto com nossos alunos, formular mais e melhores perguntas, buscando respostas diferentes e inovadoras para elas.
Além disso, é necessário, fundamentalmente, reconhecer que o processo de pensar sobre o mundo é tão ou mais importante do que obter informações sobre ele, o que, por sua vez, requer uma mudança radical de postura para quem, como nós, foi formado no padrão tradicional e está acostumado a dar ‘respostas prontas’ e a transmitir o mais rápido possível informações aos alunos.

Bombardeio de indagações
Acrescentei a expressão ‘o mais rápido possível’ na frase anterior como uma homenagem à pesquisadora Mary Budd Rowe (1925-1996), considerada uma pioneira e ‘revolucionária’ nas décadas de 1950 e 1960, quando esteve em debate a necessidade de renovar (e inovar) o ensino de ciências nos Estados Unidos.
Pouco conhecida entre nós, Rowe realizou importantes pesquisas, mas uma delas, em especial, merece destaque aqui. Trata-se daquela em que a pesquisadora demonstrou que os professores ‘bombardeavam’ indiscriminadamente seus alunos com perguntas, sem perceberem que o próprio tempo de espera que davam a eles era insuficiente para que se iniciasse o processo de reflexão e o pensamento necessário para a formulação de uma resposta, mesmo que insatisfatória.
Bons professores preocupam-se menos com respostas prontas e mais em formular boas e desafiantes perguntas, estimulando a curiosidade de seus alunos e ajudando-os na busca por respostas criativas. (foto: Troy Sherk/ Sxc.hu)
Em sua pesquisa, ela também demonstrou que, se o tempo de espera pela resposta fosse aumentado em apenas alguns segundos, haveria uma melhora notável na linguagem e na lógica dos alunos, com ganhos também na autoconfiança, no envolvimento e na interação do grupo. Nesse caso, como gostava de dizer Mary Budd Rowe, diminuir o ritmo pode ser uma maneira de acelerar.
É admirável pensar que atitudes simples, como dar mais tempo de espera por uma resposta, podem favorecer o processo de pensamento, a motivação e o envolvimento dos alunos.
Mas, ainda mais admirável (e inacreditável para a época que estamos vivendo) é pensar por que conhecimentos tão simples e significativos para o processo de ensino-aprendizagem possam ainda ser tão pouco divulgados e discutidos entre nós ou demorar tanto a ser aplicados em nossas aulas. A pesquisa de Rowe, por exemplo, data da década de 1960, ou seja, encontra-se disponível há 50 anos. Mas poucos de nós, professores, temos conhecimento dela.

Explorar é divertido
Sobre Mary Budd Rowe cabe, ainda, uma última informação interessante. Sabe como ela se interessou por ciência e educação? Graças a uma aula de improviso que Albert Einstein lhe deu, quando a encontrou, ainda adolescente, olhando para uma fonte no campus da Universidade de Princeton (Estados Unidos).
Segundo ela conta em um artigo dedicado a estimular os pais a ensinarem ciências a seus filhos (Teach your child to wonder), Einstein lhe perguntou se achava possível parar a água que jorrava da fonte o suficiente para ver as gotas individuais, e lhe deu tempo para pensar na questão. Em seguida, mostrou-lhe como mover as mãos até que pudesse criar um efeito que parecia diminuir o fluxo de gotas individuais.

Antes de ir embora, também lhe fez uma recomendação: nunca esquecer de que a ciência é exploração e divertimento.
Conclusão de Rowe: “Passei uma carreira inteira tentando transmitir as palavras de Einstein para adultos e crianças em todo o mundo – a ciência está em explorar, e explorar é divertido.”
Bons professores fazem isso: como Einstein e Rowe, preocupam-se menos com as respostas prontas e já estabelecidas e mais em formular boas (e desafiantes) perguntas, ajudando seus alunos na busca por respostas criativas.

TEXTO ORIGINAL DE CIÊNCIA HOJE

Psicologias do Brasil

Informações e dicas sobre Psicologia nos seus vários campos de atuação.

Recent Posts

Série “proibidona” na Netflix é perfeita para quem só quer relaxar em frente à TV

Um thriller instigante e explicitamente sensual na Netflix para maratonar quando a correria do dia…

1 dia ago

Adolescente recebe diagóstico devastador após médicos confundirem seus sintomas com “dores do crescimento”

“Os médicos nos garantiram que eram apenas dores de crescimento, então acreditamos neles.", disse o…

1 dia ago

Veja esta série na Netflix e ela não sairá mais da sua mente

Esta série que acumula mais de 30 indicações em premiações como Emmy e Globo de…

3 dias ago

Filme premiado em Cannes que fez público deixar as salas de cinema aos prantos estreia na Netflix

Vencedor do Grande Prêmio na Semana da Crítica do Festival de Cannes 2024 e um…

3 dias ago

Série ousada e provocante da Netflix vai te viciar um pouco mais a cada episódio

É impossível resistir aos encantos dessa série quentíssima que não pára de atrair novos espectadores…

4 dias ago

Influenciadora com doença rara que se tornou símbolo de resistência falece aos 19 anos

A influenciadora digital Beandri Booysen, conhecida por sua coragem e dedicação à conscientização sobre a…

5 dias ago