Por Carlos São Paulo
Meu pé de laranja lima mostra a fantasia de uma criança para, de alguma forma, tentar superar as dificuldades impostas pela vida
Imagine que você possa experimentar o mundo através dos olhos de uma criança de cinco anos de idade nos anos sessenta. E que ela tenha nascido no seio de uma família pobre, com mãe que trabalhava muito e ganhava pouco. Enquanto o pai, desempregado, se refugiava no álcool para aplacar seu desespero. Essa é a viagem que José Mauro de Vasconcelos nos convida a fazer em sua autobiografia: Meu pé de laranja lima.
Ele abre uma janela mágica e mística de sua própria condição humana profunda, quando na necessidade de se adaptar ao mundo social ao seu redor. Uma janela de natureza melancólica, através da qual assistimos ao sofrimento vivido pela personagem Zezé, que, com muita pureza e inocência, sacode o leitor em suas infâncias ou emoções esquecidas e alimentam a alma dos anos mágicos da vida.
A fantasia é o presente da condição humana para se viver a vida e enfrentar a miséria em que se vive. O pai de Zezé perdeu, como muitos adultos, o encantamento com a existência. Em seu desespero e insensatez, misturava a ideia de educar o menino com o sofrimento produzido por uma visão de mundo muito concreta e sem espaço para ternura. Quando se é criança, ao viver situações tão conflitantes, entra o recurso natural do brincar para aprender a elaborar e resolver as situações dentro do mundo mágico da imaginação.
Foi assim que uma pequena árvore em seu quintal, um pé de laranja lima, se tornou seu melhor amigo e confidente, capaz de compreendê-lo e fazê-lo viver a ternura. Por meio dela, Zezé elaborava seu sofrimento ao tentar entender os motivos de os adultos o surrarem. Os junguianos chamam tal processo de imaginação ativa. Ele fazia perguntas e essa árvore as respondia. O galho pendente se transformou em um cavalinho capaz de percorrer todo um mundo fantástico do imaginário humano, que, nessa idade, está solto das amarras do concreto que freia a nossa feliz alucinação.
A imaginação ativa é uma técnica em que o cliente conversa com as figuras de sua imaginação e submete esse diálogo para análise. Uma das formas de praticar é o Jogo de areia. Uma caixa com areia e diversas miniaturas, representativas dos objetos do mundo, expostas numa prateleira para o analisando escolher e compor um cenário. É por meio desse brincar que os terapeutas auxiliam a criança, nesse jogo do faz de conta, a demonstrar sua compreensão do mundo e de suas necessidades.
Serve, também, à criança que habita o adulto. O menino, por esse meio, vai ressignificando as experiências do cotidiano e aprendendo sobre o desafio do viver na proporção das possibilidades do seu pequeno herói interior. De uma forma espontânea, Zezé transformou seu quintal numa grande caixa do Jogo de areia. Havia lá a europa e o Zoológico, além do seu pé de laranja lima. Nesse quintal, ele e seu irmão, que ele chamava de rei luís, viviam um mundo encantado. Longe de sentir a pobreza com os seus pesados tentáculos.
Esvaziaram as perigosas ruas de hoje e já não existem as brincadeiras de bandido e mocinho, bola de gude e outras. Os espaços externos de suas casas deixaram de ser o palco de um teatro. Escondem-se as crianças dentro de quartos para se relacionarem com outros amigos, ainda desconhecidos, por meio de seus avatares que habitam os computadores. Como Zezé poderia viver seus conflitos de pobreza nesse mundo moderno?
Um dos episódios vividos por ele foi no natal. As crianças pobres correram para receber seus presentes doados por comerciantes, mas Zezé e seu irmãozinho chegaram tarde. Zezé ficou triste e se julga não merecedor. Entende que o mundo o vê diferente – um diabo a brincar em perturbar os outros. Acredita que a criança divina não nascera para ele e, sim, a criança demônio brincando de papai noel do mal. É dessa forma que, em muitos momentos, a nossa criança interior, em busca de ser atendida nos seus desejos, julga-se não merecedora.
A camaradagem com o pé de laranja lima se transfere para uma figura humana, o portuga. Eles se descobrem mutuamente um ajudando o outro, numa relação feliz de ternura e muito amor. Em pouco tempo de intensa relação, veio a morte na forma do trem mangaratiba e retira do menino tudo de mais signifi- cativo que ganhara naquele estágio da vida. O seu pai volta a se empregar, mas, alheio a isso, Zezé mergulha na tristeza envolvido no véu negro de seu luto. Acabara de conhecer a ternura de um adulto e logo tudo desapareceu.
Experimentar essa dor cruciante da perda de alguém querido foi mais forte do que todas as surras que apanhara. O Meu pé de laranja lima é um livro que envolve a linguagem universal de sentimentos, como a compaixão, a tristeza e a alegria de viver. O Zezé de hoje poderia fazer parte das crianças que ainda ganham os espaços públicos para brincar, sem participar do universo simbólico da sociedade global, que envolve os caríssimos brinquedos eletrônicos e trancam filhos em quartos. Estes, por certo, desenvolvem a cognição, enquanto os Zezés, a socialização.
TEXTO ORIGINAL DE PSIQUÉ E VIDA
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