Por Lilian Marin Zucchelli e Marcela Alice Bianco

“Um simples barulho diferente no portão era motivo para que o coração acelerasse. Para que a boca ficasse seca e as mãos trêmulas. Os pensamentos percorriam as memórias do passado e lá encontravam cenas de medo, agressão, descontrole e terror. Era possível ainda ver os olhos daquele que deveria proteger, embebidos na raiva e na frustração. Era possível ainda ouvir no coração as palavras rudes, cruéis e descontroladas ecoando pelas paredes dos cômodos da casa. Era possível sentir o vento da cinta saindo para fora do passador da calça em direção ao pequenino corpo. Sentir o tapa, a força das mãos, o verdadeiro mal que saía pelos poros daquele que deveria cuidar. Quando não estava possuído por tal gênio, era bom, calmo, confiável. Mas, quando estava dominado por algo que, talvez nem mesmo ele conhecesse o nome e a origem, aí era possível sentir a vida por um fio. Impossível não chorar, impossível não temer. Era briga de poder para qual ainda não se tinha tamanho para enfrentar. Só restava esperar, que o barulho do portão fosse daqueles dias calmos e silenciosos. Só restava esperar que não fosse preciso ficar quietinha para não cutucar o gênio mal. Só restava sentir que havia uma única fagulha de controle sobre a próxima cena. Prever, antecipar, suportar a ansiedade, se esconder nas veredas da fantasia… esperar passar o tempo… para poder crescer e se transformar numa pessoa boa e capaz de não repetir a história”.

(Memórias de uma vítima da violência na infância)

Um documento divulgado pela UNICEF em 2014 sobre a violência infantil, intitulado “Ocultos a plena luz: uma análise estatística sobre a violência contra as crianças” (traduzido) revelou sérias informações sobre a questão dos maus tratos e dos abusos contra menores.

Entre os alarmantes resultados deste levantamento temos que, 06 em cada 10 crianças pelo mundo sofrem castigos corporais regularmente pelas mãos de seus cuidadores. Além disso, 1 em cada 3 estudantes entre 13 e 15 anos sofrem com atos de intimidação constantes e 1 a cada 3 adolescentes entre 15 e 19 anos ao redor do planeta (84 milhões) já foram vítimas de algum tipo de violência emocional, física e/ou sexual.

O relatório enfatiza que, independentemente do tipo de violência que tenham sofrido ou das circunstâncias em que ocorreram, a maioria das vítimas permanece em silêncio e não busca ajuda.

Tristes consequências de um ciclo de violência que assola as vidas de crianças, jovens e de famílias por todo nosso mundo e que se perpetua devido a repetição de um padrão patriarcal negativo, embasado na punição e no abuso do poder, em detrimento da afetividade e do controle emocional.

Abaixo, uma campanha da UNIFEC que aborda o tema: “”Há crianças que ‘brincam’ de ser invisíveis”.

A violência não é só física! Bater em uma criança é um ato de covardia. É bater em alguém que não tem a mesma força para se defender e por isso fica humilhado e rendido. O adulto abusa do “poder” que ele acredita exercer diante de uma criança indefesa e sem força de reação adequada para impor-se contra quem “manda” na relação.

Mas, não é só a violência física que machuca. Palavras e atitudes podem ferir muito mais e, mais profundamente. Podem causar danos irreversíveis no desenvolvimento da personalidade de uma criança. Menosprezar, xingar, humilhar, ignorar, imprimir medo, coagir, negligenciar (seja a própria criança ou outro membro da família) é tão violento quanto uma surra de cinta. Não deixa marcas visíveis, mas fere a alma, a autoestima e autoconfiança.

Quando, por exemplo, um pai ou mãe chama seu (sua) filho (a) de burro (a) porque não está indo bem na escola, só está fazendo com que ele (a) acredite que realmente é burro (a), incapaz e que nunca irá conseguir aprender nem fazer nada certo na vida. A criança acredita, pois, os pais são seu primeiro contato com o mundo. São as pessoas em quem ela deveria confiar, se espelhar e de quem deveria receber carinho. Nós nascemos totalmente dependentes do mundo que nos cerca, vivenciamos o mundo e aprendemos sobre através das relações com nossos pais e cuidadores e, assim, vamos nos desenvolvendo e adquirindo (ou não) recursos próprios para enfrentar a vida adulta.

Colocar a criança em situação humilhante, menosprezá-la ou tratá-la com desdém certamente provocará danos tão brutais quanto o uso da violência física. A violência não ensina a criança os motivos pelos quais deve apresentar um comportamento esperado. Ela só ensina a criança a ter medo das reações agressivas do adulto e, portanto, a obedecer para evitar que o trauma se repita novamente.

A violência psicológica faz com que a pessoa se sinta desvalorizada e diminuída perante os outros. Crianças que sofreram abusos psicológicos podem desenvolver inúmeros problemas de saúde física e emocional e que podem se estender para a vida adulta: baixa autoestima, sintomas de ansiedade, depressão, instabilidade emocional, chupar dedo, gagueira, enurese noturna, transtornos alimentares, uso de drogas, problemas em controlar impulsos e raiva, comportamentos antissociais e até pensamentos suicidas.

Segundo James Hollis, “quando a criança é oprimida, ela vivencia a imensidão do Outro jorrando através de frágeis fronteiras. Por não possuir o poder de escolher outras circunstâncias de vida, por não possuir nem a objetividade de identificar a natureza do problema como Outro, e por não possuir os elementos necessários a uma experiência comparativa, a criança reage de forma defensiva, tornando-se sensível ao ambiente e “escolhendo” a passividade, a co-dependência ou a compulsividade para proteger o frágil território psíquico. A criança aprende variadas formas de acomodação, pois a vida é vista como inerentemente opressiva para um eu relativamente impotente”.

Assim, quando vítima do abandono e do carinho insuficiente, a criança poderá passar toda a vida em busca de um modelo mais positivo e protetivo para se relacionar. Pode sentir o mundo como um lugar inseguro e permanecer presa num padrão ansioso e inseguro diante de tudo e de todos.

A criatividade, as vias saudáveis para a obtenção de afeto e prazer podem permanecer bloqueadas, determinando a personalidade durante a infância e por toda a vida adulta. Reflexos das primeiras experiências traumáticas sem elaboração e resolução que permanecem fazendo refém a criança interior.

A vivência do descontrole emocional dos adultos com que convive, não ajuda a criança a aprender a regular seus próprios afetos e reações. De acordo com Sauaia, “é frequente que experiências traumáticas rompam limites e causem sintomas como: hipersensibilidade a som, luz ou toque; sensação de estar sem pele; falta de habilidade para filtrar estímulos; descrições de estar “vazando” ou “sendo invadida”; tendência a ser vítima novamente e vulnerabilidade a mais traumas”.

Assim, quando adultas, essas crianças feridas poderão acabar se engajando em relacionamentos que reproduzam o mesmo padrão disfuncional da infância, repetindo o ciclo de abuso e violência compulsivamente. E nessas relações poderão se tornar adultos violentos e abusadores. Portanto, crianças maltratadas poderão se tornar pais que maltratarão seus filhos.

Ou seja, o adulto vive, inconscientemente, reflexos do passado. Sua personalidade e forma de viver e se relacionar com o mundo ressoarão as experiências positivas ou negativas vividas na infância, especialmente através do relacionamento com os pais e cuidadores.

Na experiência da violência infantil a criança vê sair do armário e de debaixo da sua cama o verdadeiro Bicho-Papão na figura assombrosa dos seus cuidadores e protetores. E se, nem eles poderão protegê-la, a quem caberá tal grande tarefa?

Pesa aqui o enorme papel social que nós todos temos em relação às nossas crianças! Seja através da educação, das denúncias e de toda e qualquer tentativa de assegurar os direitos da infância e da adolescência garantidos pela lei, é necessário romper com os duros ciclos de abuso de poder e punição.

Precisamos encontrar saídas baseadas na ótica da empatia, do afeto e do cuidado. E começar a cuidar, não só daqueles que sofrem com as agressões, mas também dos agressores e cuidadores ineficientes.

Segundo o Psiquiatra Junguiano Carlos Byington, “o modelo vivencial de formação da identidade no início da vida, baseado nas vivências e relações emocionais primárias, pode ser visto como o meio mais fecundo de aprendizado durante toda a existência”.

Dentro da perspectiva simbólica proposta por ele, todos os aspectos da nossa vida possuem uma função estruturante para o nosso processo de individuação. Assim, cada função pode se desenvolver tanto na sua polaridade positiva, corroborando para a ampliação da consciência, quanto negativa, fixando-se no inconsciente e manifestando-se de maneira destrutiva, sombria e descontrolada.

Imagem de capa: bubutu/

O poder no seu aspecto destrutivo, perpetua a violência, a insegurança e a desorganização psíquica. Porém, no seu aspecto positivo e construtivo, auxilia no estabelecimento de limites, oferece contorno e segurança à criança que pode então ter uma base de hierarquia, ordem, organização e respeito que levará por toda a sua vida.

Para Sauaia, “a criança necessita que o adulto sirva como um parâmetro organizador de sua experiência com o mundo através do estabelecimento de limites claros e coerentes. Exercita, assim, a aprendizagem da espera e a capacidade de suportar frustrações, construindo sua socialização e organizando seu mundo intrapsíquico”.

Portanto, precisamos ensinar quem cuida a educar e se relacionar com amor, respeito e equilíbrio emocional com as suas crianças. Precisamos desenvolver nos cuidadores essa capacidade de envolver-se e acalentar.

O adulto que grita, bate, espanca, humilha e abusa também tem grandes chances de ter sido uma criança ferida que não encontrou o amor e a dignidade em sua história de vida.

Referências Bibliográficas

Byington, C. A. B. A construção amorosa do saber: O fundamento e a finalidade da Pedagogia Simbólica Junguiana. São Paulo: Linear, 2011.

Hollis, J. A passagem do meio: Da miséria ao significado da meia idade. São Paulo: Paulus, 2008.

UNICEF – OCULTOS A PLENA LUZ: Un análisis estadístico de la violencia contra los niños. Acesso em: http://www.unicef.es/sites/www.unicef.es/files/informeocultosbajolaluz_0.pdf

Sauaia, N. M. Eros e Poder – Resiliência e Violência. Núcleo Espiral: um trabalho de prevenção com crianças vítimas de violência. Disponível em: http://www.nucleoespiral.org.br/img/artigoErosePoder.pdf

Autoria

Lilian Marin Zuchelli – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana pela PUC-SP. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Institiuto Sedes Sapientiae. CRP: 06/23768

 

 

Marcela Alice Bianco – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae. CRP: 06/77338

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