As metáforas existenciais e a procura do si mesmo em “Amantes Eternos”.

Amantes eternos é uma obra riquíssima, de metáforas com significados em diversas leituras e indagações sobre o ser humano. O imperativo do homem moderno que é o da satisfação e do consumo traz a questão do homem frente ao vazio orientado por uma integridade moralista, convictos da necessidade de descobrir um novo encontro do si mesmo e da sua autonomia.

Amantes Eternos (“Only lovers left alive”) dirigido e escrito por Jim Jarmusch (2013) diretor americano conhecido pelo seu jeito próprio de conduzir seus filmes com produções independentes vale muito a pena assistir. A história lembra outro filme o britânico e clássico cult “Fome de viver” (1983) de Tony Scott, irmão caçula de Ridley Scott e estrelado por Catherine Deneuve e David Bowie. Esses filmes tem algo em comum, porque trata do mesmo “conjunto da obra”, ou seja, tem o mesmo clima e estilo, alguns aspectos como a cultura gótica, a fotografia sombria, trilha sonora voltada para o rock saudosista e também por apresentarem dois casais, ricos, cultos, elegantes e vampiros com aquele olhar hipnótico diante ao desespero da existência.

Para falar sobre o filme é preciso ir ao imaginário da história de amor entre um casal de vampiros, estrelado pelos atores Tilda Swinton (Eve) e Tom Hiddleston(Adam) cansados da sociedade que vivem, traz no discurso reflexivo o universo da imortalidade e temas existenciais aparecem no filme como angústia, liberdade, tédio, tristeza e ceticismo em frente ao nada, ou seja, o vazio que dão um certo charme ao contexto cinematográfico da obra.

O filme é de narrativa lenta e envolvente com tamanha originalidade em torno do casal e sutilmente ganha a nossa atenção. Adam lembra a natureza de um roqueiro esquecido e solitário vive das suas melodias é visivelmente romântico. Sente uma sensação de vazio que o leva ao desespero, enfrentando a infelicidade da incapacidade de fazer escolhas e a falta de objetivo na vida. Enquanto Eve é bela, exótica, enigmática, sensível e inteligente. Eve quer ajudar Adam a enfrentar a sua angústia existencial. Moram separados, pois tem noção de que essa escolha seria o ideal para um casal “super antenado” e com isso atendem a uma tendência do mundo, ou seja, uma escolha pelos “outros” dizendo o que é que os outros deles esperam. Os dois tem toda a sabedoria armazenada em décadas de existência que é simbolicamente representado pelos objetos da casa, onde uma mistura do antigo com o novo se complementam, um exemplo é a ligação feita por Eve de um celular moderno para Adam e a reprodução da imagem via Skype na televisão de tubo, retrô bem antiga. O casal é um tipo “introvertido vitoriano” ao lidar com a realidade baseados em um estatuto de verdade cria certos valores e regras para melhor viver a dramaticidade da existência e principalmente esses valores são sobre o consumo do sangue, pois há uma “regra” a ser obedecida: “sangue deve ser consumido não de seres humanos vivos, mas de sangue de laboratório”, ou então “à moda” de Eve consumir “sangue puro” através do amigo e poeta, o dramaturgo Christopher Marlowe contemporâneo de Shakespeare, o qual acusa de ter roubado alguma das suas obras. Para o casal estes valores são éticos, mesmo que Adam se passe por médico para colher sangue humano e pague caro por isso. Esses tipos vitorianos que buscam energia interiorizando a criação de regras externas enquanto a força de vontade é fragmentada e o intelecto recalca os sentimentos. Ainda sobre o casal destacamos também muitos significados, pois a obra é riquíssima! Por exemplo, à figura mítica de Adão e Eva na eternidade na presença de Deus dentro do paraíso representado pelos nomes arquetípicos do casal (Adam e Eve). Lembrarmos a história de Eva que tinha a missão de ajudar Adão, pois saiu da sua costela. Sendo que o casal transgrediu a lei de deus comendo o fruto da árvore do bem e do mal, ou seja, deus tinha um desejo a de não decidir por eles mesmos, o que era bem ou mal, pois abria o caminho para o mundo de oposições, sem passar pela experiencia para distinguir o bem e o mal e assim aconteceu e foram banidos do paraíso. Hoje metaforicamente vivemos assim desse pecado originário, pois temos a lei de Deus internalizada nas nossas vidas e a culpa nos rodeia por termos comido do fruto da árvore do pecado.

Nas histórias de vampiros, que geralmente aparece nos filmes com certo ar de mistério, suspense e o Drácula com uma imagem de sanguessuga com toda pompa, onde perpassa o ambiente decadente e o ócio de uma vida não vida, de um ser não ser contra toda uma sociedade, absorvendo nas noites improdutiva a vida de cada ser existente no mundo, mas em Amantes Eternos a inconformidade de Adam e a angústia que envolve as suas cenas dizem respeito a um único assunto: Os Zumbis, os mortais, os viventes no mundo, os seres humanos. Ele tem verdadeiro sentimento de repulsa. Como diria Sartre: “O inferno são os outros”. Talvez por arrogância não se igualar aos “outros” e se conformar que apesar de se sentir um vampiro “íntegro” e especial, está vivendo uma época, um Zeitgeist, ou melhor, o espirito da época igual a todos os “outros”. A incapacidade para aprender e modificar-se, demonstra a inflexibilidade de agir, com isso a tendência é a cristalização e a rigidez, mas sempre há o caos que salva. Quando as pessoas vão parar de não ser?

Nessa metáfora podemos dizer que a sociedade ainda não encontrou algo que substituía a rígidas regras criadas pelo próprio homem moderno. As pessoas da nossa época são caracterizadas por atitudes de passividade e apatia. A apatia e a fala de emoções são defesas contra a ansiedade. Ser ou não ser, eis a questão. São vampiros? São zumbis? Pouco importa, tanto faz a diferença. Não estamos apontando quem está certo ou errado, o que vem a tona são os modos que cada um tem ao lidar com o nada, o vazio existencial. Aprendemos que a sociedade nos molda e ao nos moldar condiciona a vivermos igual a rebanho. A ideia transmitida é a de acertar o passo. Pode-se progredir, mas pouco, e a ocasião deve ser muito bem escolhida. Assim condiciona tudo desde as amizades de como deve ser até a marca do carro que dirige o que e quanto se bebe e lê. Institucionaliza-se o homem pedindo para sentirem menos, pois assim estamos fora dela. Talvez o sujeito “bem ajustado” capaz de disfarçar seus conflitos são os que mais precisam de ajuda, por terem dificuldades em racionalizar. Portanto sobre os tipos e modos de vida na sociedade que o filme aponta são dos “seres humanos mortos” e a dos “seres humanos vivos”. Talvez haja uma linha tênue que separa essas duas tendências por algumas diferenças. Adam e Eve fazem parte do modo dos “seres humanos mortos” os que falam fluentemente e protagonistas de uma cultura “suprassumo”, como se fossem depósitos do que há de melhor produzido por séculos em termos de arte, ciência, literatura são totalmente diferente da história dos contos de Drácula. E pensam serem melhores pela profundidade e não pela superficialidade dos zumbis anestesiados consumidos pelo mundo que vivem. É o que eles acreditam cegamente, pois tem opinião formadora por teorias científicas e comprovadas durante séculos. Mas quem é o ditador? Quem dita às regras para eles seguirem? Será a ciência? A filosofia? A questão é que não há uma autonomia, se queixam da incapacidade para tomar uma decisão que parta deles mesmo, o problema maior é não saber do desejo e em suprir a própria necessidade.

Para Adam os zumbis, os “seres humanos vivos” são os que contaminam o ar que respiram o ambiente onde vivem a fauna a flora, tudo no planeta, inclusive o sangue, são os nãos cultos, os anestesiados, gente vazia. O problema fundamental do homem no século XX. A hostilidade entre ele e os zumbis era ditada por sua incapacidade de lidar com o seu lado competitivo e a dificuldade em aceitar o lado instintivo, talvez por culpa e inferioridade da condição de ser vampiro em tentar mostrar um lado mais “humano”.

Essa metáfora da inversão de valores nesse filme traz esse “incomodo” entre os vampiros e os zumbis. As diferenças entre classes. Quem está morto e quem está vivo? Ou quem está certo? Quem está errado? Esse é o percurso de todo o filme, assunto bem discutido em tempos atuais. Observamos hoje quantas pessoas vivem do automatismo, sequer olham para o lado. Vivem anestesiados. Sem vida. Apáticos. Alienados em si mesmos. Fazem escolhas pelos outros e não baseados no que sentem. Estão vivos? Ao vivermos uma época de incertezas, de guerras, convocação militar, transformação econômica e futuro incerto, sob todos os ângulos, não é para se admirar que a pessoa não saiba planejar e se sinta inútil, mas essa percepção se torna superficial, os problemas são muito mais profundos que as ocasiões que os revelam, além disso, as guerras, as alterações econômicas e as mudanças sociais são na verdade, sintomas da mesma condição subjacente em nossa sociedade da qual os problemas psicológicos são também sintomas.

A trama desenrola com a chegada de Eva (Mia Wasikowska), irmã caçula de Eve que espelha a inversão desses valores no casal e desestabiliza a vida deles. Há um dilema da pessoa espelho, na sua indecisão sem definir que espécie de pessoa é e o que a vida deseja que ela escolha onde só agrava o problema, uma vez que tem tão pouca convicção e senso da realidade de suas metas, como se fosse uma coleção de espelhos que reflete apenas o que os outros esperam dela. Assim Eva inquieta prefere ser guiada pelo instinto e pela época que vive e do prazer como seu único bem supremo. Esse instinto, a sua natureza a guia como um estilo de vida. Dessa forma, suga o sangue da primeira pessoa humana apresentada em sua chegada. Para Eva seguir ordens é mais cômodo, não requer tanto esforço, arrisca, respeita seus sentimentos e acaba com o conceito de ética e nobreza entre o casal, pois são eles que dão sumiço ao corpo da pessoa ultrapassando todas as regras e normas estabelecidas e construídas por décadas pelos dois. Eva é uma vampira que vive a vida dos que estão vivos porque ela está viva. Enquanto o casal que está vivo leva a vida dos que estão mortos. Estagnados em si mesmos por viver muito tempo em frente ao nada, ao vazio existencial. Não estiveram evoluindo em direção a alguma coisa acabaram por estagnarem-se as potencialidades transformam-se em morbidez e desespero.

Acontece que os valores de certa forma foram cristalizados, pois onde tudo é perfeito, belo e nobre baseado na existência do casal é permeado por valores e regras onde existe o tédio, o feio e a angústia. Eles como vampiros vivem, mas estão mortos em contraponto com muita sede de viver. A ironia disso tudo está em ao jogar o corpo fora do “ser humano vivo – zumbi” chega à tomada de consciência que estão em uma condenação por toda a vida, pois é assim que vivem à margem da sociedade, separados do todo por isso a angústia de liberdade do não existir, tornaram-se apáticos, mórbidos. Repudiando sua natureza. Talvez por recalcarem o instinto criando regras para lidar de uma forma mais digna ao suportar a existência.  Nesse ponto essa metáfora nos leva a outro questionamento, sobre as diferenças entre as classes, é diferente, mas são modos de cada um lidar com o que é suportável na existência. Engraçado é notar a cena onde aparecem os vampiros de óculos escuros iguais a um zumbi. O fato é que ambos os modos de viver e lidar com o vazio existem, mas o que fazer com o tempo que é dado por cada modo de vida? Nos favorece o entendimento que os modos de cada classe ao enfrentar o vazio no filme é o de reagir e não o de agir, mas é a ação de escolha que favorece a motivação e a estagnação é posta de lado. Eles não agem e sim reagem.

Rever padrões e construir novas bases é dar um novo sentido a vida. Criar novos valores, quebrar valores e regras, construir e reconstruir leva o caos e a superação, isso é o movimento da vida e a frustração do ego acontece nas entrelinhas da existência, só assim o ser vivente avança. Sempre haverá escolhas e novas possibilidades, como por exemplo, a cena onde Adam compra bala de madeira uma tentativa em frente as suas angústias, precipitando uma morte rápida que poupe a sua dor suportada por tanto tempo, é uma saída, mas por outro lado, há outra possibilidade e escolha a do casal de vampiros serem eles mesmos ao seguir a lei da sobrevivência e ultrapassarem todas as regras criadas por eles para atender o instinto e se alimentar de sangue como uma droga extasiante, assim como os zumbis que se anestesiam das drogas alucinógenas, ou seja, uma vida não vida para os dois lados. Essa é a sensação do vazio. Ela provê, em geral, da ideia de incapacidade para fazer algo de eficaz a respeito da própria vida e do mundo em que vivemos.

As metáforas seguem no filme como a forma de lidar com o desamparo existencial, percebermos que o consumo de sangue que causa prazer para produzir felicidade e satisfação, leva a reflexão sobre o homem atual e a forma de anestesiar a dor, se consome drogas, mas o sofrimento continua e está longe de ser a da negação de vida, pois a dor sempre fará parte da vida. Os poetas já diziam que a “tristeza não tem fim, felicidade sim”.

Não queremos dizer com isso que a sensação do vazio tanto no nível individual e coletivo que as pessoas são vazias, sem potencial humano emocional. O problema maior é que na contemporaneidade quem não consegue ser feliz é considerado fraco e culpado, como se para ser feliz é preciso ser de um só jeito. No filme Adam precisa passar por médico para poder saciar sua forme de maneira suportável para ele, sem precisar matar as pessoas. A negação de estar vivo embora morto não altera o sentimento da dor de existir, ou seja, quanto mais for negada mais a dor é sentida. Eva vem apontar os instintos de sobrevivência sem nenhuma censura, faz o que a natureza dela manda e determina que seja a busca pelo prazer, dessa forma abre espaço para outra reflexão, pois na atualidade é assim que as relações são constituídas, cada um com um modo de ser. Diferentes dos outros e de si mesmos.

Hoje não há uma preocupação com a figura da alteridade que torna cada vez mais frágil as nossas vidas. Na intenção de não permitirmos sermos devorados por uma sociedade individualista do consumo e empobrecidos nas relações, esvaziando afetos é preciso revisitar e afirmar que a dor de existir faz parte da vida, pois a dor é o que nos diferencia como sujeitos da singularidade e pela alteridade ajustarmos nossas diferenças de modos de ser na existência. Aceitar o outro do modo que ele é e acolhê-lo já minimiza o desamparo a que todos nós fomos instituídos desde o nascimento.

Outra metáfora sobre o filme é beber o sangue puro. Um simbolismo de energia e força vital no filme que é visto também como objeto de consumo, que vem do ser humano para um não ser, servindo como um instrumento de prazer, ou seja, o “não ser” só existe porque o outro “é ser” porque tem sangue no corpo que o alimenta, reforça assim o narcisismo exacerbado do sujeito, como um meio de alimento do eu e não como relação de alteridade. Não há uma troca, um consome o outro, como objeto para o seu prazer, porque reforça a existência do outro e ele só existirá dessa forma porque será descartável, sendo somente fonte de utilidade enquanto servir. A partir disso o esvaziamento dos afetos e a fragilidade dos laços sociais são empobrecidos, não há diálogo. O olhar e ser visto é uma das características dos tempos atuais, não constitui uma troca de afetos, pois assim os laços afetivos se sucedem somente como mera representação onde o objetivo é o exibicionismo.

Essa redução e precariedade dos afetos se dão no sentimento de solidão e de fragilidade é nesse contexto que o homem se encontra nos tempos modernos, essa produção é um excesso pelo prazer a qualquer custo, como forma de amortecer e anestesiar a dor, assim como no filme, a sede do sangue para alimentar a dor existencial tratando a dor de forma banal e com excesso de produtos de consumo, drogas, exercícios físicos, por outro lado nesse contexto entre prazer e dor, as vitimizações se dão provocadas pelo “modo de ser” sendo um posicionamento de servidão e humilhação frente ao outro. Uma cena do filme quando Eva consome o sangue do seu “ficante” e não se preocupa em retirar a vida do outro, tira-se a potência do ser e escraviza o ser na modernidade.

A forma de lidar com a dor é elaborar como necessária e aceitar que não podemos nos livrar e sim agregar e ajustar as formas de senti-la, afirmando as diferenças e as escolhas dos modos de viver a vida.

A falta que vem dessa sensação de vazio é de não sermos “senhores do próprio destino” e de conduzir a própria vida com autonomia, a ansiedade e o desespero se não revistos cai no desperdício de vida e no bloqueio do melhor de si. Saímos do formato, da caixa de papelão que segura os instintos, que cultua o individualismo, porque ser feliz não é uma obrigação e o resultado é uma redução que empobrece a estrutura psicológica, sendo reféns a um imperativo destrutivo. Tente descobrir quem você é, cada vez mais precisamos fazer algo.

Maria Fernanda Carvalho

Psicóloga Clínica. CRP: 05/49129 Ênfase: Existencialismo. Participou de seminários, congressos, apresentou projeto de cunho científico sobre a relação terapêutica e apresentou a clínica como obra de arte uma metáfora baseada nos temas da filosofia de Nietzsche, uma contribuição para a clínica.

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