Estamos inseridos no mundo da Linguagem, da Lei e do Desejo. E devemos estar sob o risco de cairmos na perversão ou na psicose. Estar inserido na sociedade dita civilizada é o preço que se paga para existir como pessoa de modo mais ou menos pleno. No entanto, devemos ter um olhar crítico. Ser serenamente crítico. Porque a sociedade também mente e aliena: ensina-nos com suas regras, crenças e ditames a nos afastar de nossa essência e de nossa singularidade, de nosso gozo e de nosso desejo. Ensina-nos a ser hipócritas conosco mesmos e a nos renegar naquilo que temos de mais caro: o que somos.

A autoestima, fruto de um profundo conhecimento de si mesmo, é antídoto para a hipocrisia e a alienação. Aprender a gostar de si próprio é uma arte e um exercício. Cada dia é um novo começo para a vida e, nesse tempo que chamamos de “presente”, podemos reformular o que queremos ser. Na verdade, o que queremos ser é o que, de fato, somos. No entanto, o que somos é barrado pela família, pela escola, pela empresa onde trabalhamos, pela sociedade ao redor. Barrar o que somos – isto é, o que desejamos – é a marca da civilização, no dizer de Freud. Mas podemos contornar e transcender e chegar a ser e a sustentar nosso desejo.

O modo de ser humano é ditado e condenado pela liberdade de escolher, e podemos optar pelo que seja bom ou mau para nós mesmos. Ainda que condicionados a optar pelo que não desejamos, se começarmos a nos conhecer de fato, nós teremos a liberdade de escolher o que fazer com nossa própria existência. Talvez não seja fácil – e, realmente, não é – se não nos submetermos a uma Análise profunda que nos descole dos desejos maternos e paternos, e das crenças moralistas e religiosas que nos cerceiam. Amar a si mesmo é fazer do tempo um aliado para que possamos usá-lo a nosso favor.

Estamos submetidos ao tempo. O que quer dizer: desde o dia em que se nasce já se começa a envelhecer e a morrer. Estaremos continuamente num duelo entre a vida e a morte dentro de nós mesmos. A vida nos empurrando na direção do afeto, do amor, das relações frutuosas. A morte nos emperrando e nos atrapalhando, levando-nos, muitas vezes, a nos sabotar. Ninguém poderá impedir o processo do tempo, o envelhecer e o morrer. Mas, com consciência e maturidade, podemos utilizar o mesmo processo para crescer e caminhar no sentido da realização pessoal e da felicidade. O tempo, bem usado, nos enriquece de sabedoria, experiência e prudência. É um aliado e não um inimigo, como a sociedade capitalista nos vende. O tempo pode ser “cronos” (cronologia), mas também pode ser “kairós” (graça).

Autoestima não é um processo meramente imanente, feito dentro de nós mesmos. É também estar atento ao outro: manter-se aberto aos possíveis encontros relacionais que temos no cotidiano. A melhor forma de suportar o terrível peso do cotidiano sempre foi, para o animal humano, a paixão, o amor, a amizade, a alteridade. Os encontros que temos podem nos mudar para melhor ou para pior. Aqui, mais uma vez, temos o direito de escolher. Aproveitar cada momento do dia, cada relacionamento com o outro, para crescer na direção do próprio caminho é dar o melhor de si e usufruir o melhor do outro. Receitas? Ferramentas? Recursos? A cortesia. A gentileza. O carinho. Antes de tudo, conosco e, a partir de nós mesmos, com o outro. Jesus Cristo, no dizer dos evangelistas, pregou que amar é, em primeiro lugar, amar a si mesmo.

Nós nos conhecemos quando encontramos o outro em nós mesmos e nós mesmos no outro. Tornamo-nos, de fato, humanos quando somos inundados pela comunicação, pelo diálogo, pela interação com o outro. Ser humano é ser relação. Somos animais sociais. Vivemos em bandos, em tribos, em comunidade. Dependemo-nos uns dos outros para existir desde o primeiro instante em que chegamos a este mundo. A autonomia que devemos atingir se faz também na relação que mantemos, inicialmente com nossos familiares, depois com os outros que compõem e vão compor o nosso mundo. Ser autônomo é saber ser você mesmo na relação com as pessoas. Viver bem é saber conviver: estar em sintonia com seu coração, com seu desejo, com seu modo peculiar de ser e desejar, sem desligar-se dos outros, sem tornar-se esquivo ao gênero humano.

A autoestima, hoje tão apregoada, resume-se a viver com simplicidade, sem ligar-se a regras complicadas ou a desejos que não sejam os seus próprios. Enfim, viver a vida como ela se apresenta, mesmo em seus piores momentos. Viver com toda a possível alegria. Mesmo com paixão. Com compaixão. Saber aproveitar o tic-tac, tic-tac, tic-tac incessante do tempo sem desesperar-se. Afinal, envelhecer só é terrível para quem não sabe (não soube) viver sua própria vida e termina (terminou) vivendo a vida imposta pelos pais ou pela sociedade alienante. O regime capitalista nega, mas a verdade é que não se precisa de tanta coisa para ser feliz. Precisamos de uma única “coisa”: de nós mesmos. Deixar-nos fluir no mistério do tempo: o que se chama vida.

Paulo Emanuel Machado

Paulo Emanuel Machado é psicanalista, escritor e professor. Tem dois romances publicados: A TEMPESTADE (Editora Scortecci, 2014) e VOCÊ NÃO PODE SER O OCEANO (Edição independente, 2015), ambos baseados em relatos de pacientes e alunos. O primeiro sobre abuso sexual; o segundo sobre a travessia difícil da adolescência. Também possui artigos publicados e contos em antologias. É de Salvador, Bahia, nascido a 10 de janeiro de 1960.

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