É bastante comum na prática profissional do psicólogo alguns clientes requisitarem avaliações e laudos para cirurgias Bariátricas, vasectomias, laqueaduras, transgenitalizações. Em geral os procedimentos de avaliação necessários à confecção de laudos incluem testes psicológicos, entrevistas (de vários tipos), questionários, enfim, uma boa investigação que inclusive ajuda o cliente já elaborar psicologicamente a ansiedade no pré-operatório.
Podemos aferir uma série de fatores emocionais favoráveis ou não aos procedimentos, avaliar as motivações bem como a procedência dessas motivações; Se há ou não sofrimentos psicossociais influenciando a decisão pela cirurgia etc. No caso especifico das cirurgias bariátricas uma avaliação psicóloga pode até encoraja-la ao procedimento, revelando e elaborando o sofrimento decorrente de complicações implicadas na obesidade, imaginem, por exemplo, a ansiedade que um paciente sente ao saber que sua taxa de glicemia está fora de controle.
Até ai tudo em ordem. Mas até que ponto podemos realmente aferir todo impacto psicológico traumático de um procedimento cirúrgico? Até onde nosso ferramental de trabalho, repertório clínico e especulações filosóficas podem abarcar a realidade psíquica? Para ser mais preciso, eu não me refiro nem á realidade psíquica do pré-operatório nem do pós-operatório, mas o que efetivamente ocorre durante a operação. Theodor Adorno publicou na década de 60 o clássico – “Dialética do Esclarecimento” -, nele há um pequeno esboço intitulado “Le Prix Du Progrès” que trata de um escrito do fisiologista francês Pierre Flourens referindo-se ao uso do clorofórmio como anestésico:
“As drogas utilizadas agem unicamente sobre certos centros motores e de coordenação, bem como sobre a capacidade residual da substância nervosa. Sob a influencia do clorofórmio, ela perde uma parte importante de sua aptidão a registrar vestígios das impressões sensoriais, mas de modo nenhum a capacidade sensorial enquanto tal. (…) O logro do público resulta da incapacidade do paciente de lembrar-se após a operação o que se passou” (ADORNO E HOKHEIMER , 2006)
É claro que se passaram várias décadas desde a publicação desse artigo que na verdade é apenas um esboço, mas nem por isso ele não nos deixa de causar muito espanto. Apesar dos avanços científicos, da confecção de anestésicos cada vez mais sofisticados, ainda assim é verdade que a ação anestésica se restringe a inibição de partes do sistema nervoso: Partes do cérebro e partes centros nervosos situados na região medular. Entretanto, a abrangência da capacidade sensorial é incalculavelmente maior do que o conhecimento cientifico sobre o processamento da dor, em outras palavras, não é porque o sujeito está incapaz de processar a lembrança da dor que em algum grau ela não tenha ocorrido, inclusive de modo terrivelmente intenso, eu diria até traumático.
As motivações, desejos e sofrimentos psíquicos aferidos em uma avaliação psicológica superficial, como na que descrevi acima, podem simplesmente justificar a possibilidade de sensações dolorosas profundas e indescritíveis? Há casos cuja própria vida do paciente está em risco e essa parece ser uma justificativa razoável para um laudo positivo, principalmente se estamos aderindo a uma ética cuja vida tem valor absoluto sob todo o resto. Mas há casos em que o procedimento visa resguardar a saúde e a vida de terceiros; como quando uma gravidez indesejada implica sérios riscos. De qualquer modo uma psicologia stricto-senso mostra-se insuficiente e pretenciosa, carente de substância ética, esta sim capaz de guiar uma boa avaliação psicológica, no limite almejando tornar os sujeitos responsáveis pelas suas difíceis decisões.
Adorno.W & Horkheimar.M .Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. P 189