Por Fernanda Villas Boas
Durante o século XX, o homem moderno, ao se frustrar com a ineficácia de suas ideologias radicais e com a ausência de respostas científicas para seus anseios, passou por mais uma mudança de paradigmas e aderiu a um relativismo total, dando espaço a uma nova era, a da pós-modernidade.
O homem resultante dessa cultura pós-moderna passou por um processo lento de transformações de valores e costumes. Antigamente, os limites de certo e errado eram claros e rígidos; hoje, devido a uma busca de “igualdade” e “liberdade”, prevalece a crença de que as “verdades” aprisionam os homens, impedindo-os de realizar seus desejos, pois são coibidos pelas regras morais e pelos valores sociais, éticos e religiosos. Essa mudança de paradigma levou o homem a acreditar que tudo é ilusório. O homem perde seu referencial hierárquico valorativo e passa a viver uma verdade relativa, entrando em uma crise existencial, não encontrando mais referenciais seguros onde se apoiar e passando a viver de forma imediatista e individualista.
Esse novo ser humano se estrutura em uma cultura em que não consegue manter um suporte para a demanda e para as necessidades do outro. É um sujeito que fala de si e para si. Há uma procura excessiva de bem estar e não há espaço para o convívio com angústias e sofrimentos. A educação recebida pelos pais e pelas escolas, os valores como ética, moral e caráter, a religião, a solidez do casamento, a família, perdem espaço para novas formas de comportamento regidas pelas leis de mercado e de consumo. A aceleração transforma o consumo em uma rapidez nunca vivenciada, tudo é descartável, desde bens materiais até os afetivos. A publicidade manipula os desejos e promove a sedução. A tecnologia avança, perde-se a visão pessoal e os conceitos tornam-se vazios. Vive-se, então, um tempo de pouca solidariedade e alta competitividade, guiado pela lógica da acumulação de bens e de aparências. Instala-se uma cultura de incertezas, de fragmentações de troca de valores e do vazio.
A ruptura da solidez, da formatação familiar, dos laços de solidariedade, e o crescimento vertiginoso do individualismo e da competição feroz acentuaram a solidão humana e determinaram uma diminuição significativa de suporte social. As relações estáveis, em que os efeitos de uma falta de continência intrafamiliar poderiam ser amenizados, passaram a fazer parte do passado.
Os pacientes com Transtorno de Personalidade Borderline encontram-se imersos na relação com o outro e dependente dele; a estrutura de sua patologia é construída na relação, no seu modo de se vincular. Eles olham para essa nova realidade social com lentes de aumento e não conseguem encontrar seu espaço nessa nova sociedade onde os vínculos estabelecidos são superficiais e frágeis, não permitindo um grau mínimo de continência satisfatória.
É fácil estabelecer uma analogia do aumento desse tipo de paciente como um reflexo dessa sociedade pouco preocupada com seus indivíduos e mais interessada na globalização e em seus benefícios econômicos. Como a problemática social mudou, enfrentamos modificações de configuração psicológica inconsciente, cujo resultado clínico se constatará pelo aumento daquilo a que convencionamos chamar de estados-limites ou borderline”.
O Transtorno de Personalidade Borderline tem por característica um padrão de instabilidade nos relacionamentos, em sua auto-imagem e nos afetos. Apresenta um alto grau de impulsividade em pelo menos duas das seguintes áreas, as quais são potencialmente prejudiciais a si mesmo: jogos, gastos irresponsáveis, comida em excesso, abuso de substâncias, sexo inseguro e direção imprudente. Os portadores do transtorno revelam descontrole emocional com tendência para que as emoções fujam do controle, apresentando também tendência de tornarem-se irracionais em momentos de grande estresse e uma dependência dos outros para regularem as emoções.
Os pacientes diagnosticados com esse transtorno são muito sensíveis às condições ambientais. Fazem grandes esforços na tentativa de evitarem um abandono real ou imaginado. A simples percepção da possibilidade de uma perda ou de um abandono provoca profundas alterações em seus comportamentos. Para eles, o “abandono” significa desintegração, não existência, pois precisam do outro para se perceber.
Os temores de abandono provocam episódios de raiva inadequada, mesmo frente a separações reais por tempo determinado ou frente a mudanças de planos inevitáveis. Para eles, esses acontecimentos constituem um “abandono” que implicaria no sentimento de que são “maus”.
Nos momentos em que a ameaça de abandono se configura, a ansiedade torna-se altíssima e aparece uma impulsividade marcante. Na tentativa de aplacar essa ansiedade avassaladora, para evitar o “abandono” e consequentemente a dor da solidão, da não existência e do vazio, eles podem se utilizar de comportamentos impulsivos de automutilação recorrentes ou de tentativas de suicídio.
Aproximadamente 75% desses pacientes fazem pelo menos uma tentativa de suicídio e estima-se que 10% conseguem concretizar esse ato. Encontraram uma taxa de 10,3% de suicídio, sendo que a maioria ocorreu antes dos 40 anos.
A automutilação pode se dar durante experiências dissociativas e frequentemente traz alívio ao indivíduo. Na história de 70 a 75% desses pacientes, existe pelo menos um ato de autoagressão, tornando-se inclusive essa característica – automutilação – um dos critérios diagnósticos para a caracterização do quadro segundo o CID -10 e o DSM – IV.
A indiferenciação corpo/psique é característica central na estrutura desses indivíduos. Eles expressam essa indiferenciação entre todas as polaridades na relação sujeito-objeto, que segundo as teorias de desenvolvimento de Neumann (1995a) e Edinger (1995) pode ser consequência de uma estruturação de forma inadequada do eixo Ego-Si Mesmo.
Estima-se que a prevalência do Transtorno de Personalidade Borderline na população seja em torno de 1– 2%, sendo que 75% dos pacientes são do sexo feminino. A idade de início dos sintomas da metade dos casos está na faixa de 18-25 anos de idade, e 90% dos casos têm início antes dos 30 anos.
Talvez seja subestimado o número de pacientes com Transtorno de Personalidade Borderline do sexo masculino. Em função de sua agressividade e impulsividade, podem estar nas delegacias e presídios, ou nos tratamentos de usuários de drogas. Na tentativa de aliviar a solidão e o tédio, é comum fazerem uso da ingestão impulsiva e abuso de álcool e drogas.
A instabilidade afetiva nas relações interpessoais, característica desses indivíduos, leva a extremos de idealização e desvalorização, sensíveis aos menores estímulos externos (reais ou imaginados), que se centram na questão do medo do abandono e são acompanhados de esforços incríveis para evitá-lo. A instabilidade afetiva para esses indivíduos funciona como uma montanha russa, o que a torna também uma das características centrais do transtorno.
Nathan Schwartz-Salant, em seu livro A personalidade limítrofe (visão e cura), defende que:
Pacientes com um distúrbio de personalidade limítrofe manifestam de fato sintomas e comportamentos particulares, estando esse último relacionado em especial com as maneiras pelas quais o paciente influi vigorosamente na psique do terapeuta.
Alguns fatores determinam a gravidade e as possíveis consequências do abuso sexual: a frequência e duração dos episódios, a figura do abusador (pais, cuidadores, pessoas ligadas à família ou um desconhecido), a idade em que os abusos ocorreram (quanto mais cedo, maior a gravidade) e qual foi o acolhimento da família quando esse abuso foi revelado.
O abuso sexual normalmente não ocorre sozinho, mas vem vinculado ao abuso físico, verbal e à negligência. A separação ou a perda precoce dos pais e o testemunho de violência também são fatores encontrados neste contexto.
Torna-se difícil diferenciar os eventos traumáticos e o impacto do ambiente familiar onde eles usualmente ocorrem. Normalmente é um ambiente em que prevalece caos familiar, vinculações transtornadas, múltiplos cuidadores ou ausência deles, negligência parental, alcoolismo e/ou evidência de instabilidade afetiva. O abuso sexual pode predispor ao Transtorno de Personalidade Borderline, mas parte do seu impacto é reflexo de um ambiente familiar instável, não acolhedor e não educativo.
Aparentemente, a experiência vivenciada por esses pacientes em sua infância é de uma relação desastrosa tanto com o pai quanto com a mãe, sem a possibilidade de uma constelação minimamente adequada de maternagem/paternagem, levando à configuração de uma vivência de negligência e de abandono completo. Essa falta de maternagem/paternagem adequada se expressa pela não humanização dos arquétipos materno e paterno. Segundo Bowlby (1951), à caracterização desse contexto leva ao desenvolvimento de um apego ambivalente que se apresenta por um modelo internalizado baseado em cuidados inconsistentes, em que os pais se revelam prestativos em algumas ocasiões e ausentes ou agressivos em outros, não deixando claro para a criança um padrão regular de cuidado ou agressão.
Um ego coerente precisa ser estabelecido para permitir a passagem e integração de conteúdos do mundo interno para o mundo externo sem sentir-se ameaçado de desintegração. Uma das características fundamentais dos pacientes borderline é a constituição de um ego frágil com uma pele psíquica permeável e que, portando, pode sofrer invasões do inconsciente constantemente.
A indiferenciação da relação sujeito-objeto nesses indivíduos e a fixação deles no “incesto urobórico” com o ego e o Si-mesmo fundidos vão dificultar a construção do processo simbólico, que é fundamental para o desenvolvimento psíquico do homem. O dano no eixo ego-Si-mesmo pode impossibilitar o surgimento do símbolo, que é o meio de comunicação entre o consciente e o inconsciente.
O símbolo é uma imagem ou representação que indica algo desconhecido, um mistério. O símbolo veicula um significado vivo, subjetivo é dotado de um dinamismo subjetivo que exerce sobre o indivíduo uma poderosa atração e um poderoso fascínio. Trata-se de uma entidade viva e orgânica que age como um mecanismo de liberação e de transformação de energia psíquica. O símbolo transmite ao ego, consciente ou inconscientemente, a energia vital que apoia, orienta e motiva o indivíduo (EDINGER, 1996).
O símbolo atua em direção à auto-regulação e em nome de uma amplitude natural da personalidade. Ele transcende os opostos e tem a capacidade de transformar a energia psíquica e desviar sua direção para novos canais na busca de uma auto-regulação. Contudo, o ego precisa ser capaz de sustentar o novo padrão de energia e o símbolo, e isso só ocorre quando houve o desenvolvimento de um espaço psíquico interno e seguro, com seus limites bem definidos.
Na terapia, é preciso buscar meios mais prudentes de lidar com essa cisão “bom-mau”, pois, através dela, o borderline consegue manter à distância os afetos extremamente agressivos. Em geral, a cisão e a idealização desempenham forte papel nas distorções de realidade que esses pacientes apresentam. Muitas vezes eles dão um passo importante no sentido da individuação quando conseguem tolerar o ódio, não apenas o seu próprio, mas também a experiência de ser o alvo da malignidade alheia. O que está cindido é o eixo ego-Si-mesmo e, através de processos de projeção, ele distorce a realidade. A atitude do analista em relação ao Si-mesmo é decisiva para a restauração do eixo ego-Si-mesmo do paciente.
Esta série que acumula mais de 30 indicações em premiações como Emmy e Globo de…
Vencedor do Grande Prêmio na Semana da Crítica do Festival de Cannes 2024 e um…
É impossível resistir aos encantos dessa série quentíssima que não pára de atrair novos espectadores…
A influenciadora digital Beandri Booysen, conhecida por sua coragem e dedicação à conscientização sobre a…
"Ela ficou apavorada e disse que a dor de ser acusada injustamente é algo inimaginável",…
Será que você é capaz de montar o complexo quebra-cabeça psicológico deste filme?