SAÚDE MENTAL

Cada vez mais, casais provam que é possível manter a relação mesmo sob tetos diferentes

Por Gláucia Chaves

“Prometo estar contigo na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-te, respeitando-te e sendo-te fiel em todos os dias de minha vida, até que a morte nos separe.” A promessa feita diante do altar em momento algum menciona a obrigação de dividir o mesmo teto: cada vez mais, os casais estão experimentando a vida conjugal em casas separadas. De acordo com especialistas, a decisão combina com pessoas apaixonadas por liberdade, mas é preciso ter tato e muita conversa para se chegar a um acordo. Quem aderiu ao casamento com endereços diferentes ou até mora na mesma casa, mas não divide o quarto, garante: preservar a individualidade não diminui o amor.

O assunto foi tema de uma pesquisa em fevereiro deste ano realizada pela Universidade de Missouri, nos Estados Unidos. Batizado de LAT, sigla para Living apart together (“Vivendo separados, mas juntos”, em tradução livre), o fenômeno dos casais que mantêm um relacionamento íntimo, mas não dividem o mesmo CEP, está em expansão. Duas possíveis justificativas, segundo os pesquisadores, são as altas taxas de divórcio e o aumento da expectativa de vida. “Atualmente, há mais adultos divorciados e viúvos interessados em forjar novos relacionamentos íntimos fora dos limites do casamento”, explica Jacquelyn Benson, especialista em gerontologia e uma das idealizadoras do estudo.

O trabalho abordou adultos maiores de 60 anos em relacionamentos estáveis e que viviam em casas diferentes da do companheiro(a). Entre as justificativas para a separação de residências, os entrevistados citaram o desejo de se manter independentes, ter a própria casa e “sustentar as fronteiras familiares existentes”. “Se mais pessoas, jovens e idosos, casados ou não, vivessem a LAT como uma opção, isso poderia salvá-los de grandes decepções e corações partidos no futuro”, opina Benson.

Embora a configuração descrita se pareça muito com o que chamamos de namoro, os entrevistados não se sentiram à vontade com a definição: a maioria considerou os termos “namorada” e “namorado” pouco adequados para definir uma relação entre pessoas mais velhas. Naturalmente, nem tudo é só felicidade: há alguns desafios importantes para quem quer se aventurar em um relacionamento LAT, como o engajamento com as decisões familiares, especialmente quando o casal tem filhos.

“Precisamos de mais pesquisas para determinar como os relacionamentos LAT interagem com temas como cuidados com a saúde. Conversas sobre o planejamento do fim da vida podem ser delicadas, entretanto, casais LAT devem fazer dessas conversas uma prioridade”, detalha Jacquelyn Benson. “Muitos de nós esperam uma crise para tocar nesses assuntos, mas em situações LAT, nas quais não há normas socialmente prescritas ditando comportamentos, essas conversas podem ser mais importantes do que nunca.”

SONHO DE LIBERDADE

Angela Moizés, de 54 anos, e Carlos Rodrigues, de 66, dividem a vida há mais de três décadas. Angela é notívaga: gosta de trabalhar até tarde da noite, não dorme cedo e, de vez em quando, assiste a alguma coisa na TV antes de dormir. Carlos prefere se deitar cedo, por volta das 22h30, para aproveitar a manhã seguinte com disposição. Somada à incompatibilidade de horários, uma outra questão incomodava: Angela tem apneia do sono grave e, por isso, ronca. O aparelho que usa para amenizar o problema é um tanto barulhento. De vez em quando ela chega a ter pequenas paradas respiratórias enquanto dorme. Não fosse o sono leve do marido, poderia ter morrido certa vez. “Ele salvou minha vida. Parei de respirar e ele me acordou”, conta.

O sono leve de Carlos e a apneia de Angela foram minando as noites do casal. No dia seguinte, ambos acordavam do mesmo jeito: exaustos e morrendo de sono. “Eu tentava cobrir as luminárias com uma toalha para minimizar a luz e não incomodá-lo tanto, mas não adiantava”, detalha Angela. Quando as duas filhas do casal, de 29 e 26 anos, tomaram o próprio rumo e se mudaram, os cômodos da casa ficaram vagos. Foi aí que veio a ideia: e se cada um tivesse um quarto próprio?.

A conversa foi prática e “sem dramas”, segundo Carlos. “Não precisamos sentar, conversar e chegar à conclusão de nada. Temos uma cabeça muito boa e foi tudo tranquilo. Drama seria se a gente tivesse decidido se separar”, completa. “Hoje, a gente dorme mais à vontade. Foi uma das melhores coisas que descobrimos nesses 30 anos de casamento.” Além da emancipação do descanso, o casal ganhou mais um “brinde” com a separação de camas: um banheiro para cada um. “É a liberdade de fazer o que quiser, na hora que quiser. Vivemos bem. Se todos vivessem assim, seriam mais felizes.”

Mas, e a intimidade? Para Angela e Carlos, quartos separados não têm nada a ver com almas afastadas. “Não mudou nada. De manhã, a gente acorda, conversa, se beija, se abraça. Você acaba gostando mais da pessoa, porque não fica 24 horas grudado. Dá saudade”, descreve Carlos. Angela também está mais feliz: agora, pode trabalhar até a hora que quer, ver seus programas preferidos e, na hora de dormir, sabe que não vai atrapalhar o sono de ninguém. “Passamos a ter mais harmonia. Durmo melhor porque não sinto mais culpa de estar incomodando. Aquela guerra noturna acabou.”

Idas e vindas do amor


Decisão de morar juntos ou separados deve ser tomada em comum acordo, mas é importante ficar atento a algumas questões que podem fortalecer ou minar a relação

A organizadora de eventos, fotógrafa e performer Julia Testa, de 27 anos, e o gerente financeiro Luccas Ruzzon, de 30, se tornaram amigos na adolescência e, em uma festa, trocaram o primeiro beijo. Em março de 2005, o namoro engatou. Após três anos de relacionamento, ela se mudou para São Paulo para fazer faculdade. Também universitário, Luccas não tinha condições financeiras de visitar a namorada tanto quanto gostaria. O jeito era se ver quando dava. “Tentávamos nos encontrar ao menos uma vez por mês. Ele ou eu viajávamos de ônibus, especialmente”, descreve Julia.

Dois anos se passaram entre idas e vindas. Nessa época, as inseguranças da juventude balançavam o relacionamento. “Depois, decidimos nos mudar para a Europa. Fui para Paris, e ele para Zurique”, conta Julia. Apesar da distância, o relacionamento persistia e o casal conseguia se encontrar com mais facilidade, graças às viagens de trem (passagens para estudantes tinham 75% de desconto). “Nessa época, nos víamos cerca de duas vezes por mês”, relembra. “Mudamos muito. Crescemos, aproveitamos amigos, oportunidades. Vimos que podíamos existir como casal, independentemente daquilo que ocorria com as nossas vidas, apoiando-nos.”

Julia e Luccas decidiram, então, tentar um relacionamento aberto. “Ficar” com outras pessoas era permitido, mas sempre com o compromisso de conversar abertamente com o outro sobre o assunto. Desentendimentos e mágoas ocorriam, mas a honestidade, segundo Julia, garantia o respeito e a liberdade de não “se limitar por uma determinação social”. Após um ano de Europa, outra separação: Julia voltou para São Paulo e Luccas permaneceu na Suíça. “Foram outros dois anos de muito crescimento. Vivíamos vidas separadas, mas a tecnologia sempre foi uma amiga para nós.” Por mais dois anos o casal permaneceria se relacionando a distância.

MESMO TETO

Em 2012, a formatura se aproximava e, com ela, o momento de decidir o que fazer. Ele queria que ela se mudasse para a Suíça, mas ela não gostava do país. O destino, então, deu uma ajudinha: Luccas recebeu uma proposta para ser transferido para Londres. Ele aceitou a oferta e Julia foi visitá-lo por três meses. “Foram os meses mais difíceis das nossas vidas”, relembra. Pela primeira vez o casal dividia o mesmo teto. “Brigávamos sobre louça, sobre onde a almofada e os talheres ficavam, pelo horário de dormir, pela alimentação, pela toalha, pelas atividades, pelo jantar, pela rotina”, descreve.

Dois meses depois, a situação estava insustentável. Os dois tiveram uma conversa franca e decidiram se dar uma nova chance. Em março de 2013, Julia e Luccas se casaram e, em abril, ela foi morar em Londres. A mudança de país e a falta de amigos e de emprego foram os pontos mais conturbados para ela. Para ajudar nos gastos, os dois resolveram arranjar uma “colega de quarto”. A amiga, segundo Julia, presenciou fases difíceis do relacionamento. “Ela me ajudava bastante, conversando e me apoiando. Hoje, vejo que, se estamos juntos, é também por causa dela.”

Mesmo com tantas reviravoltas, a estrada, para ela, foi de autoconhecimento e amadurecimento. “Acredito que nossa história dolorida teve muitos momentos difíceis, mas sinto que, daqui pra frente, seguiremos juntos”, define. “Comemoro a interdependência, a liberdade, a autonomia e a paixão à vida. Porém, vemos também que, se não calhar mais para ambos ter um relacionamento como casal, temos maturidade para perceber que nos amamos independentemente das ocasiões. Afinal, o amor não acaba.”

Esclarecimentos necessários


Encontrar um denominador comum quando o casal tem o desejo de morar em casas separadas é um processo que precisa de comunicação. Veja alguns pontos importantes que devem ser levados em consideração, segundo a psicóloga e sexóloga Priscila Junqueira:

» Deixe claro o que você quer do(a) outro(a) na relação. Analisar o que significa viver em casas separadas para cada um, por que essa configuração seria interessante e conversar abertamente, sem cobranças ou agressividade, é crucial. “Não pode ser incisivo, porque, de repente, a pessoa pode se sentir ofendida”, explica a psicóloga

» Fechar um acordo é fundamental. Conversar sobre as expectativas do outro com relação à monogamia, por exemplo, é um ponto que pode ser interessante

» Visitas: o casal precisa conversar sobre os horários e os dias em que um poderá ir para a casa do outro. Será liberado? É preciso avisar antes de ir? É permitido receber amigos sem ter que comunicar ao outro?

» Ter ou não a chave da casa do cônjuge também é importante. “Se o casal está buscando viver em casas separadas, está claro (ou subentendido) que querem preservar a individualidade”, justifica Priscila Junqueira. Por isso, preservar a individualidade tendo a chave do outro pode ser uma incoerência, dependendo do acordo do casal

» Se, mesmo após a conversa, o(a) outro(a) não se mostrar interessado na proposta, respeite essa decisão. “O outro tem direito a dizer que não quer e quem propôs terá de arcar com as consequências dessa proposta”, explica Priscila Junqueira. “Ninguém é obrigado a nada.”

Amadurecimento lado a lado


Morar em casas separadas é uma forma que vários casais encontram para manter a independência. Mas especialista chama a atenção para a perda do autoconhecimento

Quem opta por viver em casas separadas encontrará certos entraves. Luciana da Silva Santos, psicóloga da Sociedade Brasileira de Psicologia e professora de psicologia clínica da Universidade Católica de Brasília (UCB), acredita que há muitos pontos que precisam ser esmiuçados com franqueza, mas acredita que esse arranjo tende a ser cada vez mais comum, especialmente entre as classes média e alta. “O principal é topar. Não pode ser uma decisão unilateral.” A questão dos filhos, por exemplo, é um ponto importantíssimo.

Além do perfil socioeconômico geralmente mais elevado, Luciana cita que o fenômeno LAT – sigla para Living apart together (“Vivendo separados, mas juntos”, em tradução livre) – ocorre com frequência entre pessoas autônomas, que preferem ter o próprio espaço. “Vejo também que é comum entre jovens adultos”, completa a psicóloga. “Já atendi casos de pessoas casadas que moravam no mesmo prédio, mas em apartamentos diferentes.”

INFANTILIDADE

O fato de um casal não viver junto não significa sempre uma decisão madura. A opinião é de Rodrigo Fonseca, presidente da Sociedade Brasileira de Inteligência Emocional (Sbie). Para ele, a opção pode, em alguns casos, ser até sinônimo de infantilidade. “Viver separado não é um casamento. Casamento parte do princípio do compartilhar o dia, a vida”, justifica. “Tem o lado bom de viver cada um em uma casa, claro. Porque é o lado bom do namoro. Quando um se estressa ou se irrita, vai para o seu canto, mas não tem o aprendizado do casamento.”

Para Rodrigo, quem opta por não dividir a casa perde, principalmente, em autoconhecimento. “O parceiro ou a parceira são um grande espelho para a gente. É essa pessoa que vive ao nosso lado e que nos permite enxergar coisas que não enxergaríamos sozinhos. Os problemas que temos dentro de nós, nossas fraquezas, ficam muito fortes.” O amadurecimento pessoal e do casal pode ficar comprometido. “Isso é viver uma relação adolescente, sem compromisso, envolvendo mais coisas boas que ruins, sendo que casamento é meio a meio. Nenhuma outra relação permite ser tão íntimo de alguém.”

Vladimir Melo, psicólogo especialista em terapia conjugal e familiar pelo Centro Brasileiro de Estudos da Família (Cefam), reforça: casais que dão grande valor à independência também se adaptam melhor a esse tipo de arranjo. O combinado seduz também pessoas que já têm filhos de outros relacionamentos e sentem dificuldade de conviver com os enteados. “Essa situação costuma gerar vários conflitos pelas histórias distintas de cada cônjuge, levando a um choque de valores e opiniões”, justifica.

Quem já passou por um processo de separação tende a simpatizar com a ideia de não dividir a mesma residência. “Em geral, as pessoas temem se sentir sufocadas ou ter que lidar com a dor da separação. Após o primeiro divórcio, as pessoas passam a cogitar mais essa possibilidade, principalmente nos tempos de hoje, em que essa opção encontra menos resistência em nossa sociedade”, explica Vladimir Melo.

Famosos em casas separadas

Helena Bonham Carter e Tim Burton: A atriz e o cineasta tiveram um relacionamento de 13 anos. Os dois resolveram não dividir o mesmo teto, segundo entrevistas dadas pela atriz, por conta do ronco excessivo de Tim Burton. O casal comprou um château em Londres e o dividiu em dois. Além de liberdade para o relacionamento, os artistas queriam ter suas próprias decorações. Atualmente, contudo, o casal não está mais junto: os dois se separaram em maio de 2016.

Rita Lee e Roberto de Carvalho:  Os músicos são, talvez, o exemplo de casal em casas separadas mais conhecido do país. O relacionamento dos dois começou ainda em 1976. Se profissionalmente os dois adoravam dividir os palcos, na vida pessoal a ideia era ter liberdade. Durante os anos 1990, o casal optou por não dividir o mesmo teto, muito por questões de agenda: Rita Lee estava em turnê e Roberto de Carvalho embarcava para Londres, a fim de estudar astrologia cabalística. Quando as duas atividades chegaram ao fim e o casal pôde voltar a ficar junto, preferiram apostar na individualidade de cada um. Por muito tempo moraram no mesmo prédio, mas em apartamentos diferentes. Em 2009, Rita e Roberto voltaram a morar juntos.

Frida Kahlo e Diego Rivera:  O casal de artistas, conhecidos pelo pensamento transgressor e à frente do seu tempo, também era adepto do casamento em casas diferentes. No caso deles, a casa era separada por uma ponte. A decisão de não dividir o mesmo teto, contudo, se deu por conta do relacionamento tumultuado dos dois — especialmente por conta dos inúmeros casos amorosos de Diego. Os dois chegaram a morar juntos na Casa Azul, hoje museu e ponto turístico da Cidade do México.

Imagem de capa: Shutterstock/Ruslan Guzov

TEXTO ORIGINAL DE UAI

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