Por Hellen Reis Mourão
“Todos querem o perfume das flores, mas poucos sujam as mãos para cultiva-las.” Augusto Cury
Tudo aquilo que não queremos ser é justamente aquilo que nos cura.
O desprezível em si e nos outros, todo comportamento que abominamos, por mais paradoxo que seja, é a nossa salvação.
Com isso inicio o famoso conceito junguiano chamado sombra.
Em geral, na Psicologia Analítica, define-se sombra como a “personificação de certos aspectos inconscientes da personalidade” (VON FRANZ, 2002).
Nós humanos gostamos de nos enxergar como inteligentes, generosas, de “bom caráter”, com diversas habilidades, e assim por diante. No entanto, a nossa personalidade também inclui qualidades inferiores, das quais não somos conscientes. Essas qualidades se revelam em nosso contato com o meio, com as pessoas e a tendência é “empurrar” essas características para o inconsciente, porque elas envergonham o ego e conturbam o funcionamento da persona.
E é dessa forma simplificada que se forma nossa sombra.
Pense o que detesto em mim e nos outros? O que eu digo que nunca faria?
Pois ai está o seu eu ferido!
Em nossa infância, para ampliarmos nossas chances de sobrevivência e conseguirmos aprovação, é necessário negar algumas atitudes, alguns traços de personalidade. Esses traços tidos como negativos tornam-se aquilo que chamamos “eu reprimido” as partes do falso eu que são demasiado dolorosas para serem reconhecidas.
Para Miller in Zweig e Abrams – O que a sombra sabe: uma entrevista com John A. Sanford (2011):
A definição junguiana da sombra foi muito bem colocada por Edward C.Whitmont, analista de Nova York, ao dizer que sombra é “tudo aquilo que foi reprimido durante o desenvolvimento da personalidade, por não se adequar ao ideal de ego. Se você teve uma educação crista, com o ideal do ego de ser benevolente, moralmente reto, gentil e generoso, então certamente você precisou reprimir todas as suas qualidades que fossem a antítese desse ideal: raiva, egoísmo, loucas fantasias sexuais e assim por diante. Todas essas qualidades que você seccionou formariam a personalidade secundária chamada “sombra”.
Isso é nossa sombra pessoal, que nos assusta, que causa terror, medo, angustia. Não somos o que pensamos ser, nosso ego nos ilude, criando a ilusão de sermos bem polidos, iluminados e respeitáveis.
A sombra nos assusta, pois revela-nos quem de fato nós somos. Por isso gastamos tanta energia para mantê-la oculta. Nós negamos esse lado negro com todas as nossas forças, ou então projetamos esse comportamento sobre os outros.
A sombra forma-se de nossas qualidades existentes que gostaríamos de esquecer e que nem gostaríamos de olhar de perto.
Para Jung (2011):
A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade.
Para aceitar e assimilar a sombra a pessoa precisa ter muita coragem, muita força e muito amor. Amor pelo seu lado negativo.
As pessoas geralmente pensam que a sombra só contém aspectos escuros e negativos da personalidade, contudo é a sombra que nos da à dimensão humana, que escancara a realidade, que coloca nossos pés no chão. Mas que também esconde potenciais ocultos, tesouros inestimáveis que foram desprezados. É um remédio amargo e necessário!
Ela também é a parte não vivida da nossa personalidade, por isso seu dinamismo pode conter tanto o bem como o mal. Essa parte não vivida é inconsciente a pessoa e por isso inquietante e se manifestam de forma extrema, primitiva e desajeitada. Mas nela, existe o potencial positivo para novos dons e talentos.
Para Zweig e Abrams (2011):
A sombra pessoal contém, portanto, todos os tipos de potencialidades não-desenvolvidas e não-expressas. Ela é aquela parte do inconsciente que complementa o ego e representa as características que a personalidade consciente recusa-se a admitir e, portanto, negligencia, esquece e enterra… até redescobri-las em confrontos desagradáveis com os outros.
A sombra costuma influenciar as relações do indivíduo com pessoas do mesmo sexo. E é comum a sombra aparecer em nossos sonhos como personagens sombrios do mesmo sexo que o nosso.
Hall e Nordiby (1972, p. 42):
Já dissemos que a sombra é responsável pelas relações entre pessoas do mesmo sexo. Estas relações podem ser amistosas ou hostis, dependendo de vir a sombra a ser aceita pelo ego e incorporada de modo harmonioso à psique, ou rejeitado pelo ego e banido para o inconsciente. Os homens tendem a projetar os impulsos de sua sombra rejeitada nos outros homens, de modo que, entre eles, surgem com frequência, sentimentos negativos.
Portanto, a sombra pode ser revelada por meio da projeção em outra pessoa do mesmo sexo geralmente.
A projeção costuma ser um mecanismo e defesa do ego contra aquilo que pode ser doloroso a ele, mas também tem um lado positivo e construtivo.
Bly in Zweig e Abrams (2011) fala sobre a projeção como algo positivo:
Mas a projeção também é uma coisa maravilhosa. Marie-Louise von Franz observou num de seus escritos: “Por que assumimos que a projeção é sempre uma coisa ruim? ‘Você está projetando’ tornou-se uma acusação entre os junguianos. As vezes a projeção é útil, é a coisa certa.”
(…) Marie-Louise von Franz nos faz lembrar que, se não projetarmos, nunca conseguiremos estabelecer uma conexão com o mundo (…).
(…) A questão não é tanto o fato de projetarmos, mas sim por quanto tempo mantemos a projeção sobre o outro. Projeção sem contato pessoal é perigoso. Milhares, milhões de homens americanos projetaram seu feminino interior sobre Marilyn Monroe. Se um milhão de homens deixou suas projeções sobre ela, o mais provável era que Marilyn morresse (…)
A questão é que a projeção é necessária e saudável, pois há conteúdos inconscientes que podem dissociar o ego, e um pouco de projeção é uma forma de proteção, desde que, ela seja temporária.
Além disso, conhecer esse lado da nossa personalidade implica em responsabilidade, pois o individuo fica em condição de escolher e optar o que assusta as pessoas.
Mas se existe possibilidade de escolha, a pessoa deixa de ser apenas manobrada por forças e pode optar, tendo mais liberdade de ação.
Outro aspecto importante sobre sombra é de que se trata de um arquétipo e por essa razão ela aparece como imagem arquetípica nos mitos e nos contos de fadas.
Em Jung (2011):
A sombra é, em não menor grau, um tema conhecido da mitologia; mas como representa, antes e acima de tudo, o inconsciente pessoal, podendo por isso atingir a consciência sem dificuldades no que se refere a seus conteúdos, além de poder ser percebida e visualizada, se diferencia, pois do animus e da anima, que se acham bastante afastados da consciência: este o motivo pelo qual dificilmente, ou nunca, eles podem ser percebidos em circunstâncias normais. Não é difícil, com certo grau de autocrítica, perceber a própria sombra, pois ela é de natureza pessoal. Mas sempre que tratamos dela como arquétipo, defrontamo-nos com as mesmas dificuldades constatadas em relação ao animus e a anima.
Isso significa que existe uma sombra arquetípica, que é a sombra coletiva – seja de uma família, ou nação – e essa é muito difícil de ser percebida e assimilada. Podemos apenas olhar para ela com o auxilio da Mitologia e dos Contos de Fadas.
Mesmo sendo um empreendimento que exige coragem, devemos tornar a sombra consciente, negligenciar e recalcar ou identificar-se com ela pode levar a dissociações perigosas. Como ela é próxima do mundo dos instintos é indispensável levá-la continuamente em consideração.
Finalizando, o conceito da sombra e sua assimilação remetem à flor de lótus que nasce da lama, mas não se contamina, florescendo linda e bela.
Aceitar, compreender e integrar o lado sujo e enlameado da alma humana é fazer o trabalho sujo.
Nossa sociedade nega o mal, nos faz viver de aparências. Mas somente quando decidimos limpar nossa própria fossa é que a alma pode florescer.
Do esterco pode nascer flores belíssimas, do esterco se faz adubo.
Referências Bibliográficas:
HALL, C. S.; NORDBY, VERNON, J – Introdução a Psicologia Analítica, Ed. Cultrix, São Paulo, 1972.
JUNG, C. G. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.
VON FRANZ, M. L; BOA, F. O caminho dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 1988.
WEAVER, R. A Velha Sábia – Estudo sobre a imaginação ativa. São Paulo: Paulus, 1996.
ZWEIG, C; ABRAMS, J (orgs.). Ao encontro da sombra: o potencial oculto da natureza humana. São Paulo: Editora Cultrix, 2011.
Hellen Reis Mourão é Psicanalista Clínica com pós-graduação em Psicologia Analítica pela FACIS-RIBEHE, São Paulo. Especialista em Mitologia e Contos de Fada.
O texto está reproduzido nesse espaço com autorização da autora.
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