Por Juliana Severo
Desde muito cedo eu te conheço, mas não por nome. Desde muito pequena, quando eu ficava olhando fixamente para uma parede branca perdida em meio a desenhos que minha mente projetava a partir de um buraquinho no concreto, com o intuito de adiar alguma tarefa solicitada pela minha mãe, ou quando insistia em jogar videogame quando deveria estar fazendo o dever de casa. Você está na minha vida há muito tempo e, aparentemente, não sairá dela tão fácil. Lembra de todas as vezes que a letargia tomou conta do meu corpo, se alastrou pela minha alma me dando a sensação de preguiça e inutilidade? Culpa sua, que tem o dom único de me fazer sentir bem por longos períodos mas cair abruptamente num poço de arrependimento e ressaca moral logo depois. Nossa relação é viciante, porém nada saudável.
Às vezes eu finjo ser uma adulta capaz de assumir o controle da própria vida, finjo anotar os compromissos na minha agenda mental, prometo que as tarefas da faculdade serão feitas logo no início do fim de semana. Às vezes acordo e penso: chega! Vou dar um fim nessa relação que tanto me consome. Mas logo sou surpreendida por você que me seduz com um fim de semana ensolarado, com um passeio inesperado, com um texto do Duvivier ou os primeiros episódios de F.R.I.E.N.D.S, de modo que, aquela mulher obstinada e responsável do início dá lugar a uma garota inútil e irresponsável, que adia o que deveria ser inadiável.
Você me tem nas mãos. Parece que fica arquitetando formas de me dispersar, me tirar de órbita e me jogar na mais profunda inércia – e o faz, sem prévio aviso. Como consequência, muitas vezes arrisco-me a dormir tarde fazendo absolutamente nada, acordo morta no outro dia e sou surpreendida pela retomada das atividades normais do meu cérebro, que subitamente sai do estado de submissão e me lembra de todas as tarefas atrasadas ou em cima da hora que terei que encarar, sem fazer cara feia. Você sempre consegue o que quer, e eu sempre me rendo aos seus galanteios.
Percebi que não sou a única na sua vida. Notei que você flerta com muitos dos meus amigos. Uns conseguem ser mais fortes do que eu e às vezes te mandam embora, mesmo que temporariamente; outros te amam incondicionalmente e já estão conformados com essa relação confortável. Porém, a grande maioria concorda que a longo prazo você acabará se tornando um atraso de vida. E é exatamente isso o que você quer: atrasar a vida alheia e reafirmar o seu poder sobre esse bicho ininteligível e facilmente manipulável que é o ser humano.
Tenho plena consciência que o nosso relacionamento precisa acabar o quanto antes, a fim de que eu possa regularizar a minha vida, tomar as rédeas da situação, respirar aliviada. Mas enquanto escrevo este texto eu checo o Whatsapp, vou ao banheiro, arrumo o cabelo, sirvo mais um chimarrão e me distraio com os pôsteres na parede. De repente, me pego num abismo chamado Wikipédia e vou de Hitchcock a Beach boys em menos de dez minutos. Sinto a sua presença em cada passo que dou, em cada ação que eu executo, por mais simples que seja. Mas acabou – pelo menos até sair outro texto do Duvivier na Folha ou eu for contemplada com um fim de semana ensolarado e convidativo. Céu limpo e sol para sábado, segundo a previsão que acabei de ler.
Imagem de capa: Shutterstock/Yulia Grigoryeva
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