Por Hélio Guilhardi
Muita gente ensinou… Muita gente aprendeu… que as sessões de terapia têm uma lógica. Como uma história que tem começo, se desenvolve e avança para um desfecho. Dentro dessa perspectiva, o terapeuta deve conduzir o enredo, dar-lhe coerência e significado e manter o curso encadeado da vida. Houve tempo – ainda se encontra isto – em que a análise de uma sessão, na supervisão, se encerrava com um delineamento específico do que deveria ser feito na sessão seguinte.
A vida é um processo, mas não um processo lógico. A Lógica (com inicial maiúscula ou minúscula) é comportamento (a ser explicado) e não explicação de comportamento. Quando alguém diz: “pela lógica, acredito que ele reagirá de tal maneira…” (e segue-se uma suposição, ou uma previsão de comportamento, ou uma interpretação etc.), essa pessoa está repetindo um hábito cultural ou de senso comum para falar de comportamento. Talvez iludida pela esperança de que a lógica a conduzirá seguramente na direção de prever comportamento. Engana-se! Comportamento é determinado por contingências de reforçamento (coloco ênfase no plural) que se influenciam numa complexa rede de determinações probabilísticas, a qual nem remotamente se aproxima do modelo mecanicista de causação e nem se explica pela Lógica.
O processo psicoterapêutico se dá menos pelo governo de regras e mais pelos eventos do cotidiano do cliente, os quais determinam o controle dos comportamentos do terapeuta de analisar e de intervir. Ou seja, ao invés de ficar sob controle de enunciados tais como “meu cliente estava muito deprimido na sessão passada por causa dos últimos conflitos de relacionamento que teve com a namorada… Vou iniciar a sessão perguntando como está o relacionamento presente com ela” (uma maneira de ter o comportamento, de atuar na sessão, governado por regra), mais apropriado seria o terapeuta iniciar a sessão propondo: “Sobre o que você gostaria de falar?” ou simplesmente aguardando a iniciativa do cliente. Tal postura na sessão não significa que, no correr das sessões, o terapeuta não esteja alinhavando regularidades comportamentais, delineadas a partir de episódios de comportamento coletados na medida em que ocorrem, e que vão sendo sistematizados em busca de regularidades.
Tais regularidades são explicitadas na forma de padrões comportamentais, assim como “João se comporta quase sempre com padrões de fuga-esquiva; sente-se o tempo todo ansioso” (uma forma de excesso comportamental); ou “Márcia tem dificuldades para emitir comportamentos que produzam reforços positivos para si mesma” (uma forma de déficit comportamental); ou “Zita é insensível às consequências de seus comportamentos: seu repertório é quase sempre governado por regras e autorregras disfuncionais” (uma dificuldade em estabelecer um equilíbrio funcional entre comportamento governado por regras e comportamento modelado pelas regras que produz); ou “Rita está quase sempre irritada e tem comportamentos agressivos sempre que é contrariada; apresenta baixa tolerância à frustração”; ou “Rodolfo tem uma história de contingências de privação de afeto e é vulnerável nas relações interpessoais; está sempre se comportando da maneira que produz atenção (ou afeto, ou carinho…) arbitrária em relações fugazes e frustrantes”; etc. etc. (As formulações apresentadas como exemplos parecem absolutas, o que raramente ocorre. Foram assim redigidas para facilitar uma compreensão mais didática. É mais provável que uma mesma pessoa possua, em densidades variadas, todas as características assinaladas.)
O texto acima foi escrito sob controle de um artigo de Roberto Pompeu de Toledo, cujo trecho reproduzo abaixo:
“Houve um tempo, raciocina o professor Ricardo Morante, em que era obrigatório fazer tudo numa grande ordem. ‘As coisas, por exemplo, começavam todas pelo começo e acabavam pelo fim.’ O professor Morante é um personagem de ficção. Figura no romance Doutor Pasavento, do catalão Enrique Vila-Matas. O tempo em que as coisas tinham começo e fim é localizado por Morante na década de 70 – a de sua mocidade. Não lhe custou muito compreender que se tratava de uma ilusão. Não há histórias acabadas. Isso é uma invenção da literatura. ‘A literatura’, explica Morante, ‘consiste em dar à trama da vida uma lógica que não existe. Na minha opinião, a vida não tem trama, nós é que a acrescentamos, quando inventamos a literatura.'” “As considerações de Morante ocorrem durante diálogo com o narrador do livro, o ‘Doutor Pasavento’ do título. São ambos escritores. Morante conta ‘que o filme de sua vida’ é Viagem à Itália, de Roberto Rosselini. E isso porque a história se abre com um diálogo que já vai avançado entre um casal (Ingrid Bergman e George Sanders). O espectador tem a impressão de ter entrado no cinema no meio da sessão. ‘Com essa primeira sequência’, diz Morante, ‘creio que Rosselini estava consciente de que, já que a vida é um tecido contínuo e qualquer princípio é arbitrário, uma narração pode começar num momento qualquer, na metade de um diálogo, por exemplo.'” “O Doutor Pasavento não só concorda como lembra que não é por outro motivo que a literatura começa com relatos de viagem. Na Antiguidade, ‘não se sabia ainda o que era contar uma história, mas se sabia perfeitamente o que era uma viagem’. Ela fornecia a ‘trama ideal’, porque, ‘se havia uma coisa que tinha um começo e um fim, essa coisa era a viagem’. Daí a Odisseia, de Homero, que conta a atormentada viagem de Ulisses de volta para casa. ‘As viagens tinham um começo e um fim. Isso punha uma ordem nas coisas se a gente quisesse contar uma história e demarcá-la de forma que começasse e terminasse.'”
A vida não é um romance! Tampouco é uma viagem (a menos que usemos o termo como metáfora)!
O termo psicoterapia não é apropriado para nomear nossa atividade. Não tratamos pacientes; não curamos doentes mentais, nem doentes psicológicos. Todos os termos grifados têm origem no modelo médico, que foi adotado sem reservas desde o início da história da atividade denominada psicologia clínica ou psicoterapia. O modelo que adotamos é psicológico. Como tal, nossa tarefa não é curar, mas prover o desenvolvimento comportamental (e afetivo) das pessoas. Assim sendo, a psicoterapia (volto a usar o termo tradicional) – conforme a concebemos – tem início, tem muitos meios e não tem fim. O desenvolvimento humano só se encerra com o colapso do organismo.
Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento – Campinas SP.
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