Como a auto-sabotagem pode estar atuando na sua vida

A auto-sabotagem é um mecanismo muito comum, que opera de modo inconsciente fazendo com que puxemos nosso próprio tapete. Curiosamente com o intuito de nos proteger e nos manter na zona de conforto. Após tantos envios de currículos, entrevistas, estudo e preparo, finalmente A. consegue o emprego dos seus sonhos. Logo no início, ansiosa para colocar seus potenciais em ação e mostrar a que veio, ficou com a saúde abalada.

Tentou resistir, compareceu a empresa assim mesmo durante alguns dias, até que acordou tão fraca que precisou ser levada ao pronto socorro. O diagnóstico não foi tão grave mas exigiu uma semana em repouso. Aniversário de dez anos de casamento, JP resolve fazer uma surpresa para sua esposa e compra um lindo anel de brilhantes em uma famosa joalheria. No estacionamento do shopping, coloca o pequeno pacote em cima do capô do carro enquanto procura a chave nos bolsos. Alguns minutos depois, já na rua se dá conta de onde havia deixado o presente. Tarde demais.

R., uma mulher bonita, profissional reconhecida, criativa, cheia de vida não consegue encontrar um parceiro para um relacionamento satisfatório. Conhece muitos homens, por meio de apresentações de amigos, encontros profissionais, aplicativos, eventos. Mas, em algum momento da relação percebe que tem uma característica em comum: parecem estar procurando uma mulher para sustentá-los.

Situação comum: Mulheres que gostariam de trabalhar mas que acabam ficando em casa após o nascimento dos filhos, até que não conseguem se recolocar mais (salvo as que realmente fizeram esta opção de forma consciente) muitas vezes estão sabotando suas carreiras. Exemplos não faltam a respeito de auto-sabotagem. A auto-sabotagem é um tema tão presente nas nossas vidas, mas ao mesmo tempo tão difícil quase impossível de nos darmos conta. Por quê?

Porque ocorre em um nível inconsciente, tão profundo da nossa psique que não somos capazes de enxergar a olho nu. E, falar em auto-sabotagem, no exemplo de uma doença física, que aparece nos exames, parece até loucura não é?

“Como assim eu estaria provocando esta doença em meu corpo?”

Você pode estar se perguntando.

Sim, concordo que é um assunto muito delicado e pode ser até mesmo soar como ofensivo ou leviano para quem sofre de alguma doença. Então, reforço que não necessariamente todo adoecimento é provocado pelas emoções. Existem fatores genéticos, doenças herdadas, ou geradas pelo ambiente, hábitos ou mesmo pela toxicidade dos alimentos. Mas o inconsciente sim tem o poder de desencadear crises, agravar ou abrandar o problema. E, em algumas situações pode ser a fonte causadora.

A auto-sabotagem se disfarça de tantas formas, que parecem ter explicações tão racionais que realmente fica difícil visualizar que podemos estar sabotando nosso sucesso, saúde, relacionamentos e bem estar de modo tão imperceptível.

Mas afinal, porque no auto sabotamos?

Cada caso é um caso, não tem como generalizar, o mundo psíquico é vasto e extenso, atemporal. Composto pela nossa história, pelas nossas interpretações dos fatos da vida, nossos registros, memórias. As pessoas se sabotam por inúmeras razões, mas que só podem ser compreendidas com um trabalho profundo de autoconhecimento. A grosso modo podemos conjecturar que é uma forma do ego se proteger de situações ameaçadoras. Para clarificar, segue alguns motivos comuns:

Culpa:

Crescemos sob a sombra da culpa. Seja vinda da religião: “se não for bonzinho (a) vai para o inferno.” “Tem que colocar a necessidade dos outros antes da sua.” etc. Conheci uma pessoa que pedia para o filho de 8 anos, todas as noites refletir sobre seus pecados. Ou culpa cultivada no ambiente familiar: “tem que ser boazinha/bonzinho, responsável, dar a sua vez, cuidar dos seus irmãos pois você é mais velha/velho, compartilhar seus brinquedos ou doces, tem que ter as melhores notas”. Muitas crianças sentem-se culpadas por brigas em casa e separação dos pais.

É importante salientar que não se trata necessariamente de pais ou cuidadores mal intencionados, mas sim a forma como os conceitos são passados de geração em geração. Muitas vezes com o intuito de educar ou proteger os filhos de perigos e exposições, afinal foi a forma com que estas famílias aprenderam a educar.

A culpa também tem uma função importante no ser humano e na sociedade, imagine se não tivéssemos culpa? Que caos que seria!

A questão é: como a culpa atua na auto-sabotagem. A culpa é sinal de não merecimento. Então se você, inconscientemente acredita que não merece algo bom, sucesso profissional, um relacionamento, uma família, um carro ou casa novos, uma viagem, amigos, tem que dar um jeito de colocar a perder certo?

Inveja:

Apesar de ser um sentimento tão condenado, todos nós, de uma forma ou de outra já sentimos inveja. Seja na infância, adolescência ou vida adulta. Em algum momento acreditamos que seria nosso direito ter o que pertence ao outro. Que o outro não deveria ter conquistado aquilo que cabia a nós. Quem nunca chegou a torcer em silêncio contra o sucesso de outra pessoa, ou não fez uma fofoquinha maldosa?

Assim sendo, quando sentimos inveja, acreditamos também que não podemos possuir algo bom. Pois, da mesma forma que desejamos secretamente que o outro perca sua conquista, acreditamos que como “castigo” perderemos a nossa também. Parece complexo, distante ou surreal demais? Sim. Assuntos do inconsciente são muito profundos para serem tratados em um texto sucinto.

Síndrome do Impostor:

A síndrome do impostor é um nome um tanto quanto pitoresco e nada científico dado a um sentimento de incompetência e ineficiência. Ou seja, pessoas que acreditam que no fundo são uma fraude. Vivem com medo de que descubram sua “verdadeira face”. Muitas vezes são pessoas bem intencionadas, competentes, capazes, éticas mas não se apropriam de suas capacidades devido à baixa autoestima, e pouca confiança em si mesmas.

Apesar de não ser de fato uma “síndrome” pois não consta em manuais da medicina, é um estado muito comum que impede a pessoa de crescer e evoluir.

Esse sentimento, o medo de “ser descoberta” a impede de alçar voos mais altos, decolar na carreira, na vida pessoal. Então, de alguma forma, o indivíduo dá um jeito de colocar tudo a perder antes que isso aconteça.

Ganhos Secundários:

Situações novas muitas vezes são desconfortáveis, nos tiram de um lugar conhecido. Talvez não tão bom, mas familiar. O sucesso, o novo, por sua vez nos traz um certo desconforto, o medo do desconhecido. Quais serão as novas responsabilidades? Que tipo de situações negativas terei que lidar quando meus desejos se realizarem?

A questão é que muitas vezes temos um ganho em permanecer em uma situação desfavorável. Quando estamos doentes recebemos cuidados, atenção. Nos livramos de afazeres chatos, de responsabilidades.

Quando ficamos no lugar de “coitadinhos” acreditamos que atraímos a complacência ou empatia das pessoas. Ao contrário de quando ocupamos uma posição de destaque, de sucesso, tememos a inveja, receamos perder a companhia ou o apoio de determinadas pessoas. Ou, as pessoas podem começar a nos procurar para pedir ajuda. O sucesso traz desafios, responsabilidades, trabalho. É necessário mantê-lo, cuidar da imagem, vigiar suas atitudes. Dá trabalho! Nem sempre desejamos pagar o preço.

Mas lembrem-se, tudo isso ocorre em um nível inconsciente, ou seja, invisível a olho nu!

Medo de comprometer o relacionamento ou a estabilidade familiar:
Quando as pessoas mudam ou saem da sua zona de conforto, estas mudanças podem interferir na dinâmica do seu ambiente. Por exemplo: a mulher vai para o mercado de trabalho e sai do papel de dona de casa, precisa contratar pessoas para dar conta da rotina doméstica ou cuidar das crianças, ou mesmo contar com a ajuda de familiares. Este trabalho pode implicar em viagens ou eventos que talvez não seja do agrado do cônjuge. Ou o restante da família pode julgá-la.

Algumas mudanças podem fazer com que cônjuges ou outros familiares fiquem insatisfeitos seja por sentirem-se ameaçados, com inveja ou sobrarão mais atividades para eles de modo que perderão certas comodidades.

Inibida por essas possíveis reações negativas, a pessoa pode retroceder ou fazer com que seu projeto não dê certo por inúmeras razões que só o inconsciente é capaz de criar. Mas como ela mesma não se dá conta, logo arruma várias explicações e justificativas plausíveis e racionais para tanto.

Desejos contraditórios:

É uma situação muito comum. Algumas vezes desejamos exatamente o oposto daquilo que demonstramos ou lutamos para acontecer. Seja para atender uma exigência da sociedade, da família, ou para adquirir status e prestígio (pessoas com baixa autoestima). Exemplos: perder dia da prova de vestibular, ou processo seletivo. Desejo de engravidar mas sofre abortos naturais sucessivos. Fazer uma má apresentação do TCC ou tese de mestrado.

Um executivo pode cometer um erro grave que venha a acarretar prejuízos para a empresa, vir a ser demitido e ficar arrasado. No entanto, já está há um tempo infeliz e desejando mudar os rumos da sua vida profissional. Claro que ele não queria prejudicar a empresa tampouco sua carreira, pelo menos de forma consciente.

Em um dos exemplos iniciais, o homem que deixa a joia que seria presente para sua esposa no capô do carro. Como estaria este relacionamento? Será que ele realmente desejou dar este presente a esposa?

Vingança:

Sim, as pessoas podem sabotar sua realização pessoal, sua saúde, seus projetos para punir ou se vingar de alguém. Se mantem em uma posição de doente ou dependente para que algum familiar banque suas despesas, fique a sua disposição para o que for necessário.

Seja por mágoa, raiva dos pais ou cônjuge ou mesmo dos filhos, algumas pessoas se colocam nesta posição, prejudicando acima de tudo a si mesmas. Não se libertam e não libertam os outros envolvidos do encargo.

O assunto auto-sabotagem é muito amplo, a intenção deste texto foi apenas arranhar a superfície de um tema tão rico e fascinante. Fascinante e ao mesmo tempo trágico e real, muito real. Tal termo não é de uso científico da psicologia, mas utilizado pelo senso comum. No entanto, são encontrados na literatura de estudiosos consagrados como Freud, C. G. Jung, Melanie Klein entre outros, referencias claras a situações de auto-sabotagem mas com diferentes nomenclaturas.

Como estes autores abordam basicamente a vida psíquica, o inconsciente, praticamente todos os casos clínicos e seus transtornos tem conteúdos relacionados a auto-sabotagem.

Talvez você esteja se perguntando nesse momento onde e como a auto-sabotagem se aplica a você, na sua vida. Se você percebe que ocorrem situações repetitivas que te prejudicam ou te impedem de alcançar seus objetivos, é bem provável que esteja nesse ciclo.

Para detectar e romper e assim adquirir mais autonomia sobre sua vida, o caminho é um trabalho profundo e paciente de autoconhecimento. Pode causar medo, ansiedade e há possiblidades de surgirem várias resistências e empecilhos pelo caminho para que fique onde está. Pelas mesmas razões mencionadas no decorrer do texto. Mas, no que tange ao autoconhecimento o lema é: “quebre as pontes que atravessar!”.

Imagem de capa: Shutterstock/Beatriz Gascon J

 






Especialista em saúde mental pela UNIFESP e orientadora vocacional.