As neurociências desmistificam pseudoinformações, como as de que pesquisar na internet e decorar informações prejudicam a memória e de que usamos menos de 10% do cérebro.
O ramo das ciências biológicas que mais evoluiu nos últimos 10 anos foi, sem dúvida, o das neurociências, que reúne integradamente aquilo que antes se chamava anatomia, fisiologia e farmacologia do sistema nervoso. De seus avanços alimentam-se a neurologia, a psiquiatria, a psicologia, seus ramos e ciências correlatas, entre elas as da educação. Estas últimas não são mais concebíveis, no mundo civilizado, sem apoio dos conhecimentos das neurociências.
Não ensinamos a tabulas rasas em que escrevemos coisas que depois, se ninguém as apaga, perdurarão. Ensinamos a seres vivos, que aprendem através de um cérebro, que funciona por meio das conexões entre suas células. As células chamam-se neurônios, e suas conexões chamam-se sinapses. Temos de nos adaptar a essas mudanças e aprender a conviver com os avanços que as trouxeram. Alguns desses avanços, porém, parecem estar demorando muito a chegar ao Brasil, país que, surpreendentemente, tornou-se hoje tão resistente a mudanças, apesar de sua história ser uma sequência de avanços e mudanças enorme, que já causou admiração nos tempos de Santos Dumont e Landell de Moura.
Um dos avanços que precisa chegar com urgência é parar com a repetição dessa pseudonotícia inventada por algum repórter desavisado de que os sistemas de busca na internet atrofiam a memória. Não sei de onde tiraram isso. Deve ser da vontade de que alguém lhes diga que os computadores são coisa ruim (porque os filhos e os netos sabem usá-los e eles não…). Os computadores, como qualquer objeto, são como as facas, que servem para matar ou para cortar pão: a ruindade está em quem faz mau uso deles.
Vários trabalhos publicados nas melhores revistas científicas (Science, Nature, PNAS — Proceedings of the Nacional Academy of Sciences) nos últimos anos demonstram justamente o contrário: o uso reiterado de sistemas de busca desenvolve a cognição, precisamente porque melhora o acesso à informação tal como a busca em uma vasta biblioteca ou em uma longa lista de números de telefones. Os interessados encontrarão facilmente essas revistas usando os sistemas de busca na internet.
Os sistemas de busca, as bibliotecas e as listas telefônicas mencionadas são “periféricos” que evitam que tenhamos de saturar continuamente nossa memória pessoal com dados complexos que nem sempre nos resultam compreensíveis e que aumentam a cada dia. Esses periféricos são como as bicicletas, os carros e os ônibus: viver sem sair deles seria ruim; usá-los para ir e vir é bom. O acervo de informações que eu processo diariamente é muito maior que o de 10, 20 ou 30 anos atrás. Utilizado no ensino e na pesquisa, está em discos rígidos e pendrives ao alcance de meus dedos, ou em “nuvens”, que nem sei como funcionam realmente.
Eu, que por profissão (cientista) devo ler muitas informações diariamente para saber o que fazem na minha área ao redor do mundo, uso com frequência os sistemas de busca, armazeno os dados em periféricos como os mencionados e, assim, consigo morar em um lugar menor e bem mais barato do que os palácios das novelas, nem preciso de bibliotecas enormes com milhares de livros como era o hábito (dos antigos e raros cientistas ricos) até 10, 20 ou 30 anos atrás. As estantes que tenho, em casa ou no laboratório, contêm poucos exemplares gostosos e, para mim, valiosos de obras de bons escritores.
Outro avanço será parar também com essa outra pseudonotícia divulgada por jornalistas que disso nada sabem de que nosso cérebro utiliza só 10% (ou 1%) de sua capacidade instalada. Desafio que alguém me diga o que é “capacidade instalada” de um cérebro e como se faz para medi-la. Ninguém conseguiu fazer isso até agora. A maioria dos neurocientistas, entre os quais me incluo, acredita que, pelo contrário, o cérebro utiliza constantemente (até no sono) a maior parte de seus neurônios e os numerosíssimos circuitos que eles formam. Sem isso, não viveríamos, não caminharíamos, nem sequer comeríamos. Os animais que têm um cérebro com 20 neurônios utilizam constantemente a maior parte deles. Nós, que temos 80 bilhões de neurônios, também. Essa história de que “só usamos uma pequena porcentagem deles” só ouvi no Brasil; é talvez parte do folclore nacional.
Outro avanço será entender algo que muito tem sido estudado nos últimos anos sobre a idade em que amadurece um ou outro sistema cerebral encarregado de, por exemplo, compreender mapas ou captar línguas ou entender raciocínios matemáticos. De nada adianta tentar incutir algo na cabecinha de alguém que ainda não tem todos os circuitos neuronais necessários para a compreensão de cada um desses processos. Nosso sistema nervoso nunca termina de amadurecer, e cada dia dispomos de novas conexões que nos permitem entender mais coisas. Até mesmo na velhice.
Escrevi um artigo para a Pátio Ensino Fundamental (Izquierdo, 2012) exatamente sobre isso. O protagonista desse artigo é um neto meu, que tinha visto o Guaíba inúmeras vezes da minha janela e também o mapa do Rio Grande do Sul muitas vezes na escola. Um dia, aos 6 anos, seu rosto iluminou-se quando descobriu que essa barriguinha azul que aparece acima da Lagoa dos Patos nos mapas era o Guaíba, o mesmo que ele via da janela. Acabavam de surgir, em seu cérebro, as sinapses que ajudam a fazer modelos mentais de mapas. Não nascemos com elas; surgem a partir de certa idade. Aos 16 ou 18 anos, aparecem outras que permitem compreender certos conceitos abstratos, e assim por diante.
Outro avanço será entender que repetir informações não é necessariamente ruim. Pavlov e todos os neurocientistas do mundo não somos burros, inclusive os três ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina em 2014. Não há como aprender uma tabuada, um poema ou uma canção sem “decoreba”, tão vilificada pelos ideólogos da preguiça (aqueles que, no fundo, não gostam de ensinar; só gostam de repetir frases feitas).
Pavlov foi o primeiro a incorporar as neurociências à análise do comportamento, sobretudo no que se refere ao aprendizado e à memória. Demonstrou claramente que a repetição é necessária para aprender certas coisas e que, no fundo, ajuda no aprendizado de todas. Os neurocientistas que ganharam o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 2014, John O’Keefe e o casal Edvard e May-Britt Moser, demonstraram nada menos que os componentes do GPS do cérebro, composto por neurônios do hipocampo e do córtex vizinho do lobo temporal funcionando integradamente. Uma das primeiras características desse sistema é que seu funcionamento melhora com o uso reiterado, como descobrimos todos nós que, a certa idade, aprendemos a ir sozinhos à escola ou à casa da avó.
Os demais neurocientistas aprendemos desde cedo, nos primeiros anos da graduação, que a estimulação repetida das sinapses (conexões entre neurônios) melhora seu funcionamento e que a falta de estimulação as atrofia. Sabemos há muitos anos que o aprendizado também se processa através das sinapses e que as memórias armazenam-se nelas. Os Prêmios Nobel de 1904 (o próprio Ivan Pavlov) e 1906 (Santiago Ramón y Cajal) já sabiam disso, e o Prêmio Nobel de 2000 (Eric Kandel) assim o demonstrou.
Às vezes, tenho a impressão de que só no Brasil existem ideólogos contrários a essas ideias, como aqueles que atacam a repetição do material a ser aprendido como algo nocivo, chamado “decoreba”. Há alguma outra forma de aprender a tabuada que não seja “de cor”? Ou um poema? Ou uma canção? Ou será que os ideólogos da preguiça (aqueles que gostam de teorizar à toa sobre o ensino, mas não gostam de ensinar) nunca usam tabuadas nem aprendem poesias ou canções?
Mais um avanço será captar a mensagem que venho comunicando há anos: já foi demonstrado reiteradamente que a leitura é o melhor exercício para a prática da memória. Não interessa que haja quem pense que “ler é chato”; para quem não lê, a vida é que se torna chata. Basta ver esses pobres analfabetos desmemoriados, que aos 50 anos parecem ter 90, deambulando por ruas cujos nomes não conseguem saber, sempre na miséria, porque sem ler não conseguem nada melhor num mundo onde cada dia o conhecimento manda mais.
Sem memória não somos nada. O grande filósofo italiano Norberto Bobbio disse que somos aquilo que recordamos e, sem dúvida, recordamos aquilo que lemos bem. Ler estimula mais tipos de memória (visual, auditiva, verbal, numérica, de imagens, etc.) do que qualquer outra atividade humana. As duas profissões em que a memória persiste intacta por mais anos, inclusive com tendência a melhorar com a idade, são a de professor e ator. Porque nos obrigam a ler, ler e ler.
– Iván Izquierdo é professor titular e coordenador do Centro de Memória do Instituto do Cérebro da PUCRS.
Fonte: IZQUIERDO, I. Como os mitos sobre o cérebro atrapalham a educação. Pátio Ensino Fundamental, Número 73, Fevereiro 2015.
Texto retirado do site Flavio Hastenreiter