Como silenciamos o estupro

Por Karin Hueck

Luci era uma donzela de 13 anos que, no século X, vivia em um importante vilarejo com seus país. Certo dia de verão, ela saiu para ir à feira com uma amiga quando sentiu uma vontade enorme de ir ao banheiro. Sem ter aonde ir, entrou no primeiro casebre do caminho e resolveu fazer xixi por lá mesmo. Foi quando um homem de 35 anos a encontrou e decidiu que a tomaria à força. O rapaz a prendeu dentro da cabana e a violentou: foi tanta brutalidade que Luci ficou toda ensanguentada e com as vestes rasgadas. Quando a menina chegou em casa, seu pai se encheu de desgosto – não podia acreditar que a filha não era mais virgem. Ainda assim, a família decidiu buscar justiça e foi falar com o mandatário local para mandar prender o criminoso.

O oficial logo encontrou o acusado que, depois de muito tempo, acabou confessando o crime. Assim, de acordo com a lei da época, o oficial apresentou duas opções para a família: ou o homem ia preso ou assumia a menina e se casava com Luci para resgatar sua “honra”. Como o pai da menina não queria mais saber daquela filha impura, mandou ela se casar com seu estuprador. Foi o que aconteceu. No dia seguinte, Luci se mudou para a cabana onde foi violentada, onde passou 11 anos ao lado de seu monstruoso marido. Ele a engravidou por cinco vezes e bateu nela todos os dias enquanto permaneceram casados.

A história seria apenas mais um terrível conto medieval, se eu não tivesse esquecido um “X” na data lá em cima. O caso de Luci não aconteceu no século X, mas no século XX – em 1982, para ser exato. O importante vilarejo era a cidade de Guarulhos, em São Paulo, e Luci é Lucineide Souza Santos, uma cabeleireira de 46 anos que, hoje, está separada de seu estuprador. (E, se você ficou na dúvida: sim, até 2002 existia na lei brasileira a possibilidade de o estuprador não cumprir pena caso ele se casasse com sua vítima.)

Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todos os anos cerca de 50 mil pessoas são estupradas no Brasil. Esses são os números oficiais, obtidos a partir da papelada formal. Mas eles não correspondem à realidade. O estupro é um dos crimes mais subnotificados que existem e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada estima que os dados oficiais representem apenas 10% dos casos ocorridos. Ou seja, o verdadeiro número de pessoas estupradas todos os anos no Brasil é mais de meio milhão. Nos EUA, onde existem dados longitudinais, de acordo com o Center for Disease Control and Prevention, uma em cinco mulheres vai ser estuprada ao longo da vida.

Os casos registrados são baixos porque existe um comportamento persistente que cerca o estupro: o silêncio. Vítimas não denunciam seus agressores, policiais não investigam as acusações, famílias ignoram os pedidos de ajuda, instituições não entregam seus criminosos – esses mecanismos invisíveis fazem com que 90% da violência sexual jamais seja conhecida por ninguém. E isso, sim, é um crime ainda maior do que a soma de cada caso.

Apesar de entendermos o estupro como um dos piores crimes que podem acontecer a alguém – segundo pesquisas sobre percepção de crueldade, ele só perde para o assassinato -, somos estranhamente incrédulos para acreditar que ele realmente acontece. O estupro é o único crime no qual a vítima é julgada junto com o criminoso. Imagine que roubaram o seu celular e você decide fazer um B.O. Agora imagine que o delegado que pegou o seu caso resolve perguntar onde você foi assaltado, que horas eram e se você era conhecido por trocar de aparelho o tempo todo.

Depois ele pergunta se você tem certeza de que o assalto realmente aconteceu ou se você não deu o celular ao bandido por vontade própria. Se você então explica que o roubo foi de madrugada e depois de você ter tomado umas cervejas, o delegado decide – por conta própria – que não houve crime algum: você estava na rua e bêbado, quem pode garantir que você está falando a verdade? Ou então, pior, quem disse que você não queria ter sido assaltado?

Isso acontece com quem foi estuprado o tempo todo. Mulheres relatam como são recebidas com desconfiança quando resolvem contar suas histórias para alguém. Pessoas perguntam que roupa ela vestia, onde ela estava, que horas eram, se estava bêbada, se já não havia ficado com o estuprador alguma vez, se deu a entender que queria fazer sexo e até se já teve muitos namorados antes. E essas perguntas podem vir de qualquer um. Foi o que aconteceu com a menina Maria*, por exemplo, estuprada pelo avô aos 14 anos.

Quando ela resolveu pedir ajuda à avó, ouviu que a culpa havia sido dela. “Você saiu do banho de toalha na frente do seu avô, que não sabe controlar os instintos.” O avô seguiu normalmente a vida, e Maria viveu com a culpa de quase ter desestruturado toda a sua família, como insinuou a avó. Comentários assim surgem de amigos, familiares, policiais, médicos, advogados – e até de juízes. Todas as instâncias trabalham para abafar o crime e jogar o assunto para baixo do tapete. Todas mesmo.

 

O estupro do poder

O menino de 9 anos começou a chorar quando contou o que havia acontecido com ele. Alguns dias antes, enquanto procurava por comida junto com um amiguinho, encontrou dois adultos que falaram que tinham alguns alimentos sobrando e que poderiam dividir um pouco com eles – em troca de um pequeno favor. O favor? Que os meninos fizessem sexo oral nos adultos. Sem comer há dias, as crianças acabaram cedendo. Depois de ganhar a comida, traumatizados, os pequenos não conseguiram voltar para casa e acabaram abandonando seus lares. A história acima aconteceu em 2014, os meninos de 9 anos eram moradores de um campo de refugiados na República Centro-Africana e os adultos que os extorquiram por comida eram soldados franceses de uma força de paz da ONU. E a história não para por aí: segundo um relatório interno da própria Organização, outras 11 crianças no país africano foram estupradas analmente ou forçadas a fazer sexo oral em membros da força de paz, tudo em troca de comida.

Quase que pior que as histórias de estupro foi o que a ONU fez com o relatório que continha essas denúncias. O documento foi encaminhado de funcionário a funcionário a funcionário – sem que ninguém tomasse nenhuma providência. Repetidamente, o caso foi sendo abafado. Foi apenas quando a papelada caiu nas mãos de Anders Kompass, um oficial de direitos humanos da ONU na Suíça, que alguém agiu. Kompass vazou as informações para o governo francês, que finalmente abriu uma investigação na República Centro-Africana. Aí, sim, a ONU se viu obrigada a tomar uma atitude: afastou Kompass do cargo.

É difícil achar no mundo uma grande instituição que não tenha varrido para debaixo do tapete algum caso de estupro. Exércitos, empresas, famílias, universidades e igrejas acobertam estupros rotineiramente. A Igreja Católica foi apenas a mais famosa organização religiosa a fazer isso quando bispos e padres foram acusados de abusar sexualmente de crianças no começo dos anos 2000. Durante muito tempo o Vaticano fingiu que não sabia de nada – e até o papa Bento 16 foi acusado de olhar para o outro lado nos anos em que liderou um departamento que analisava abusos dentro da Igreja. O mesmo aconteceu com os Testemunhas de Jeová na Inglaterra, onde o pastor Mark Sewell foi condenado por abusar de mulheres e crianças ao longo de anos. E acontece também com igrejas evangélicas aqui no Brasil, onde pastores de diversos Estados já foram acusados de abusar de meninas durante supostos “tratamentos espirituais”.

Não são só as igrejas que adotam essa postura obscurantista. Nos últimos meses, o foco dos escândalos sexuais tem sido as universidades, brasileiras e gringas, que mal sabem onde enfiar a cabeça diante de tantas alunas contando que foram violentadas dentro das faculdades – mas já vamos chegar lá.

Outra categoria muito eficiente em abafar casos de estupro é a figura do “homem bem-sucedido”. Basta ser uma personalidade respeitada que dificilmente a denúncia de violência sexual vai colar. Peguemos o caso de Dominique Strauss-Kahn, o diretor do FMI, que foi acusado por uma camareira de hotel de ter enfiado o pênis em sua boca, arrancado sua roupa e tentado penetrá-la. Apesar de evidências de sêmen no uniforme da mulher, Strauss-Kahn negou a violência. Logo, o caso contra ele enfraqueceu e a queixa foi retirada por “falta de credibilidade da acusadora”: decidiram que ela havia mudado demais a sua história e que, graças a um passado obscuro em seu país natal, a Guiné, ela não era de confiança. Strauss-Kahn acabou renunciando ao cargo no FMI, mas não foi condenado.

Diversas outras figuras famosas também se viram envolvidas em acusações de violência sexual, como os atores Bill Cosby e Arnold Schwarzenegger, os atletas Mike Tyson e Kobe Bryant, e o diretor Woody Allen. O argumento contra pessoas que denunciam celebridades é sempre o mesmo: são indivíduos interesseiros, loucos por fama e dinheiro, que merecem ser demonizados. (A moça que acusou Kobe Bryant, por exemplo, recebeu 70 ameaças de morte.) Pode até ser que todas as mulheres que acusam figurões realmente estejam mentindo (embora pesquisas indiquem que as denúncias falsas de estupro mal cheguem a 8%). Mas também pode ser que não. Na dúvida, as punidas – por terem sua credibilidade questionada e pela falta de justiça – acabam sendo as vítimas mesmo.

Quem acoberta grandes instituições usa sempre o mesmo raciocínio: “não podemos manchar a imagem de …. [insira aqui a sua entidade favorita] pela denúncia de uma mísera… [insira aqui seu xingamento favorito]”. Quando finalmente algumas acusações de pedofilia na Igreja Católica foram confirmadas, não restou ao papa Bento 16 outra opção a não ser admitir que a prioridade do Vaticano havia sido “uma preocupação equivocada com a reputação da Igreja e a contenção de escândalos”. A lógica é perversa: comparam-se anos e anos de fama e respeitabilidade de uma abstrata entidade com a dignidade de uma pessoa particular. Não é de se estranhar que a pessoinha acabe levando a pior.

 

Perguntar ofende

Não é fácil denunciar um estupro. É preciso ir à delegacia e prestar depoimento para funcionários que nem sempre sabem lidar com vítimas de violência sexual (não há nenhum tipo de treinamento especial para isso aqui no Brasil) e que podem, sim, fazer as perguntas e insinuações que nosso delegado fictício lá atrás fez. Se quiser que o caso tenha continuidade no processo jurídico, a vítima terá de ir ao IML fazer o exame médico (consultas feitas em postos de saúde ou médicos particulares não têm validade legal). O exame é constrangedor: o médico legista examina o corpo inteiro da mulher em busca de fibras ou pelos que possam incriminar alguém, além de vasculhar vagina, ânus e períneo por sinais de laceração, feridas ou esperma. A mulher é apalpada, penetrada por instrumentos e interrogada sobre detalhes do crime, apenas horas depois do ocorrido.

Em seguida, a agredida terá de torcer para que seu caso seja encaminhado para os tribunais: quem decide isso são promotores e juízes, e a maioria deles prefere dar continuidade apenas aos casos que têm maior chance de serem provados nas cortes. Isso quer dizer que, se não houver sinais de esperma, ou se a vítima não tiver sido ameaçada por arma de fogo ou se ela não apresentar machucados porque preferiu ficar imóvel e não apanhar do estuprador, as provas ficam mais frágeis. Quem poderá garantir que a relação foi diante de ameaça, afinal? Se a mulher conhecer o criminoso, então, as chances de seu caso ser levado à frente caem drasticamente. Primeiro, pelo medo de retaliação: muitas preferem nem fazer a queixa para não serem perseguidas pelos seus agressores. E, segundo, porque é quase impossível provar se houve ou não consentimento. Se a vítima chegar à delegacia dizendo que foi estuprada por um namorado, marido, ficante ou amigo, é quase certeiro que seu caso não vá para frente.

Mesmo se for parar no tribunal, a acusação corre o risco de se voltar contra a mulher, como já vimos. “Os advogados podem usar qualquer tipo de argumento para invalidar a vítima. Geralmente são argumentos moralistas – e que funcionam”, diz Ana Paula Meirelles Lewin, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Não é à toa, então, que 90% das mulheres desistam de denunciar o crime: sabe-se lá o que advogados e procuradores vão inventar sobre ela.

O estupro acaba silenciado pela vergonha, uma arma eficientíssima. E vergonha é a palavra-chave nesses casos. “O estupro é um crime extremamente íntimo, uma violação profunda, como pouquíssimas outras coisas são. Se as pessoas que lidam com esses casos – médicos, advogados, policiais – não tiverem respeito por essa violação, elas não vão conseguir ajudar as mulheres”, diz o médico Jefferson Drezett, que atende vítimas de violência sexual no hospital Pérola Byington, em São Paulo.

 

Meu malvado favorito

Fazia uma tarde ensolarada de maio quando quatro adolescentes resolveram sair de casa para tirar umas fotos panorâmicas de sua cidadezinha natal. Mas elas deram azar: quando chegaram ao alto do morro, encontraram cinco dos piores criminosos da cidade, completamente drogados. Rendidas com uma arma, elas foram amarradas a uma árvore com suas próprias roupas íntimas. O que seguiu foram horas de espancamento, esfaqueamento e estuprocoletivo: uma delas ficou desfigurada de tanto apanhar, a outra teve os mamilos arrancados. Quando se cansaram dos horrores, os rapazes jogaram as meninas de um barranco de 8 metros e, quando viram que elas não haviam morrido ainda, resolveram apedrejá-las. Uma das vítimas, Danielly Feitosa, acabou morrendo 11 dias depois. As outras seguem feridas. Dificilmente voltarão a ter uma vida normal.

O que aconteceu no último mês em Castelo do Piauí, a 180 km de Teresina, – um dos mais assustadores casos de estupro do noticiário recente – é o tipo de crime que aterroriza o imaginário das pessoas. É o tipo de crime também que costuma receber mais atenção: meninas muito novas atacadas por desconhecidos armados obviamente muito cruéis. São casos horríveis, que todo mundo condena com veemência: os ataques ganham destaque nos jornais, delegados e juízes ficam indignados e especialmente empenhados em punir os criminosos, que, quando chegam à cadeia, precisam até mesmo ser afastados dos outros presos para não serem mortos. A punição é exemplar. Mas, ao contrário do que parece, esse tipo de estupro é também a minoria dos casos.

Primeiro, pelo desenrolar no sistema de justiça. No Brasil não há estimativas exatas, mas nos EUA apenas 0,2% a 2,8% dos casos de estupro terminam com condenações. Graças aos mecanismos que já vimos – a vergonha das vítimas, os procedimentos burocráticos lentos e punitivos para a mulher, o medo de ser julgada e a humilhação nas cortes -, isso quer dizer que 99% dos homens que estupram seguem tranquilamente com suas vidas, sem nenhuma consequência. Dá para imaginar que as estatísticas sejam mais desanimadoras aqui no Brasil.

O crime de Castelo também foge à regra porque na maior parte os casos não são tão extremos: os criminosos não são tão maldosos, as vítimas não são tão indefesas, a violência é mais sutil. De fato, existe um mito de que estupros apenas acontecem de noite, em vielas escuras, por parte de malfeitores armados e encapuzados que atacam donzelas virginais. A verdade não é bem assim. Provavelmente o dado mais triste sobre estupros no Brasil diz respeito ao perfil das vítimas: segundo o Ministério da Saúde, 70% das estupradas são crianças e adolescentes de até 17 anos (dá umas 350 mil pessoas ao ano, uma Zurique inteira) e a maior parte delas foi violentada dentro de casa por pessoas de confiança, como padrastos ou amigos da família.

Mas, mesmo entre adultos, o mito do estuprador maligno desconhecido não passa disso: mito. Na vida real, boa parte dos casos de violência sexual acontece dentro de casas e casamentos, depois de festas ou encontros, no meio de relações sexuais que começaram consensuais, entre pessoas que já se conheciam e com agressores que nem de longe têm o perfil de “estupradores”. No Brasil, por exemplo, entre 10% a 14% de todas as mulheres vão sofrer violência sexual por parte de seus parceiros. É o caso de Lucineide, do começo da reportagem. E de Emma, Allison e Kelsey, dos EUA.

Emma Sulkowicz estava no primeiro dia de seu segundo ano de faculdade na Universidade de Columbia, EUA, quando encontrou Paul, um ex-ficante, em uma festa. Os dois conversaram e começaram a se beijar, e o encontro acabou indo parar no quarto dela. O sexo estava consensual até que, a certa altura da relação, Paul resolveu segurar suas pernas com força, apertar seu pescoço e penetrá-la analmente – tudo enquanto Emma dizia “não, para!”. Já Allison Huguet conhecia seu estuprador, Beau, desde criancinha – na verdade, eram tão amigos que ela o chamava de irmão.

Em 2010, ambos resolveram ir a uma festa na casa de um conhecido e encheram a cara. Tanto que Allison achou melhor dormir por lá mesmo em vez de voltar de carro. Ela capotou sozinha no sofá, apenas para acordar duas horas depois com as calças e a calcinha na altura dos pés e seu melhor amigo gemendo por cima dela – ele estava fazendo sexo com ela desacordada. Aterrorizada, ela fingiu que estava dormindo. O que aconteceu com Kelsey Belnap foi ainda pior. Ela estudava na Universidade de Montana quando resolveu sair com uma amiga. As duas foram até o apartamento do namorado da amiga, onde estavam quatro rapazes do time de futebol da faculdade.

Todos começaram a beber e os rapazes desafiaram as meninas a ver quem tomava mais doses de destilados. Kelsey deve ter virado uns oito copos antes de capotar em um dos quartos. Quando ela voltou a si, percebeu que um dos meninos estava enfiando o pênis ereto em sua boca. A menina tentou se desvencilhar, mas não conseguiu. Nas próximas horas, enquanto acordava e voltava a ficar inconsciente, todos os quatro rapazes se revezaram para penetrá-la. Ela só ficou sabendo o que aconteceu já no hospital, quando uma enfermeira a examinou.

Dos três crimes, só o de Allison terminou com o estuprador na cadeia – e isso apenas porque ela conseguiu gravar um telefonema no qual ele confessava o crime. Nos outros dois, a credibilidade das moças foi atacada sem parar depois que elas fizeram a denúncia e o sexo foi considerado consensual – inclusive o de Kelsey: os policiais acreditaram que uma menina inconsciente teria condições de dar consentimento para quatro homens diferentes fazerem sexo com ela.

Os casos acima são americanos porque, por lá, o debate sobre violência sexual nos campi universitários anda aquecido e meninas do país inteiro estão vindo a público para contar suas histórias. Governos e instituições estão batendo cabeça para tentar conter o que é chamado de uma “nova onda de estupro”: pesquisas indicam que 20% das universitárias foram estupradas em suas vidas, e 84% delas por alguém que elas conheciam. “As universidades escondem os crimes porque não há consequências se elas fazem algo errado”, opina Shelby Cuomo, pesquisadora de violência sexual universitária da Universidade George Washington. “Uma investigação concluiu que até mesmo a escola de direito de Harvard não cumpriu todas as exigências da lei na hora de investigar um caso de estupro. Mesmo assim, a escola não foi punida.”

Por aqui, as denúncias também estão começando. As mais famosas envolvem casos de violência sexual na USP, como o da estudante de veterinária que dormiu em uma festa de república e acordou com um colega estuprando-a por trás e o da caloura de medicina que foi violentada por um funcionário da faculdade durante uma festa em 2011. Quando as meninas procuraram ajuda dentro do campus, ouviram de alunos, assistentes sociais e centros acadêmicos que seria melhor não fazer as denúncias: era melhor não manchar a faculdade. Felizmente, o conselho não prevaleceu. As ocorrências foram tantas que, a certa altura a USP não conseguiu mais ignorar as denúncias. O caso acabou virando até uma CPI e causou a renúncia de Paulo Saldiva, o professor que estava coordenando as investigações. “A faculdade se comportou mal e ficou na defensiva sobre as denúncias. Há uma crise de conduta e de valores”, disse ele na saída. O relatório final da CPI incluiu 112 estupros dentro da universidade. Ainda assim, o número está longe da verdade: a aluna de geografia Aline*, por exemplo, que contou à SUPER como foi estuprada em uma festa da Faculdade de Arquitetura, não relatou seu caso. Ela tinha certeza de que não seria ouvida. É exatamente essa falta de confiança nas instituições que reforça o silêncio.

 

O dilema do pegador

A “nova onda de estupro”, porém, não é novidade. Casos como os acima sempre aconteceram, especialmente em ambientes que valorizam a pegação regada a muito álcool – basta conversar com alguma conhecida sua que ela vai saber contar alguma história parecida. Meninas muito bêbadas para consentir ou rapazes que insistem em sexo mesmo depois de a moça dizer que não está a fim existem desde que o mundo é mundo. Antigamente, atos assim eram descartados como “sexo ruim” ou “uma noite para esquecer” ou “ressaca moral”. A diferença é que agora as meninas estão sabendo dar nome à violência que viveram: estupro. “Antes, muitos dos casos apareciam como ‘ele forçou a barra’, ‘eu não queria, mas acabou acontecendo’, ou algo que começa consensual e depois fica violento, e a menina não consegue parar o rapaz. Agora, as meninas estão percebendo esses casos como uma violência, o que é uma grande mudança de perspectiva”, diz Heloisa Buarque de Almeida, professora de antropologia da USP, que montou um grupo de apoio para vítimas de violência sexual no campus.

É muito importante não descreditar esse tipo de estupro entre conhecidos como menos grave do que outros – como já fizeram figuras famosas, como o biólogo Richard Dawkins. Ser obrigada a fazer sexo à força, mesmo que seja com um conhecido, é traumático e traz consequências para o resto da vida afetiva e sexual da vítima.

Pesquisas também mostram que há um comportamento predatório entre os universitários acusados de violência sexual. De acordo com David Lisak, psicólogo da Universidade de Duke e um dos maiores especialistas em violência sexual entre conhecidos, apenas uma pequena minoria de rapazes é responsável pela vasta maioria de ocorrências de estupro entre universitários – entre 90% e 95% dos casos são cometidos por alguém que já estuprou antes. E esses rapazes cometem os atos repetida e conscientemente. Lisak entrevistou dezenas de rapazes em universidades e pediu para que eles descrevessem como costumam seduzir as meninas, sempre tomando o cuidado de não chamá-los de estupradores.

O relato de um deles, que ele apelidou de Frank, é assustador: “A gente sempre fica de olho nas meninas mais gatas. As mais fáceis são as calouras porque elas não sabem beber ainda, aí a gente convida elas para a festa e serve qualquer bebida muito doce e cheia de álcool. Tem que ter talento pra isso, escolher as gatinhas já durante e semana e jogar o papo. Aí quando elas estiverem muito bêbadas, eu dou o bote. Levo prum quarto e tento tirar a roupa. Elas reagem, dizem que não querem, mas eu insisto e uma hora elas acabam capotando mesmo. Aí eu como elas.” Qualquer semelhança com conversas de vestiário não é coincidência.

O problema aí está, claro, no que se espera de um rapaz jovem. Muitos deles, ao forçar a barra ou fazer sexo com uma moça bêbada demais para saber o que está fazendo, não têm noção de que estão cometendo um crime grave e impondo um grande trauma às meninas. Instigados pela cultura (universitária e generalizada) de pegar o maior número de mulheres possível e não perder nenhuma chance de fazer sexo, acabam ignorando consentimentos não dados ou resistências. A solução está, é claro, em mudar essa cultura. Não cobrar de meninos que sejam pegadores. Nunca culpar uma menina pelo que aconteceu com ela. Entender que sexo só vale a pena quando os dois estão a fim. E que ‘não’ sempre – sempre, sempre – quer dizer “não”.

Imagem de capa: Shutterstock/SOMKKU

TEXTO ORIGINAL DE REVISTA SUPERINTERESSANTE






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