INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

Comportamento inadequado não é sintoma de TDAH, alerta psicanalista

Por Maria Cecília Pires

Na necessidade contemporânea de rotular e resolver problemas com uma pílula mágica, escolas e famílias têm enviado cada vez mais crianças aos consultórios psiquiátricos por conta de comportamentos considerados inadequados. Transtorno e déficit se tornaram termos populares e, de certo ponto de vista, um diagnóstico consolador, como se a solução dependesse de um remédio e não de um esforço conjunto e dedicado de todos os adultos que a rodeiam.

Percebendo o risco à saúde mental dos pequenos por conta da crescente prescrição de medicamentos perigosos, a psicanalista Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica Maria Cecília Pires escreveu o texto a seguir para alerta às famílias, publicado no site Criar e Crescer.

Observações sobre tratamento e diagnóstico psiquiátrico na infância

A questão diagnóstica, em especial na infância, tornou-se, nas últimas décadas, tema de enorme destaque. Estamos frequentemente confrontados com a necessidade de diagnosticar aqueles comportamentos que nos colocam algum tipo de interrogação. No caso específico da criança, essa necessidade se acentua sensivelmente.

O que fazer com as crianças? O quê e como ensiná-las? Até onde acolher e quando devemos proibir? São as nossas perguntas de todos os dias. Perguntas muito bem-vindas, que podem testemunhar, simplesmente, do fato de que as crianças nos afetam, de que nos sentimos responsáveis pelos cuidados com elas. Ou seja, justamente por estarmos presentes, cuidando, lidando com as crianças, nos acontece de não sabermos, muitas vezes, o quê e como fazer.

Podemos interrogar por que caminhos e de que maneira essas perguntas passaram a se desdobrar com tamanha frequência numa outra: qual o diagnóstico? Sim, pois não é óbvio nem necessário que essa passagem se dê.

Em minha experiência com tratamento de crianças na rede pública, constatei que nos chegavam todas as semanas encaminhamentos das escolas solicitando “avaliação neurológica”. Não poucas vezes me perguntei por que a primeira demanda da escola diante de uma dificuldade com as crianças era a de uma avaliação neurológica, ou seja, um pedido de avaliação que supunha um transtorno neurológico diante de um comportamento difícil de uma criança, que, em principio, poderia ser atribuído a causas tão variadas.

Por outro lado, encontrávamos famílias para quem a gravidade do que se passava com seus filhos não era de modo algum presente. Pais e mães que ignoravam ou negligenciavam essas dificuldades, e para quem era preciso, de algum modo,apresentá-la sao longo do tratamento, afim de construir algum canal de diálogo entre a criança e a família.

No consultório particular, é também com essas posições extremadas que frequentemente nos encontramos. O apelo dos pais vem, muitas vezes, formulado nos termos que o nosso contexto cultural e social nos impõe, isto é, busca-se o “transtorno”, o “déficit”, ou então, nos casos em que não se encontra como resposta esse tipo de diagnóstico, é como se estivéssemos dizendo que a criança ou o adolescente não têm nada, que não há patologia ou sofrimento psíquico a ser tratado. Não cabe a nós criticar nem esperar que isso se dê de outra forma. Afinal, estamos todos, de um modo ou de outro, marcados pelo ideal cientificista que caracteriza nosso tempo, e é com estes termos que nossa fala se formula, a respeito de nós mesmos e de nossos filhos. No entanto, é preciso dizer, o trabalho clínico com as crianças exige de nós um pouco mais.

O tempo da criança é o tempo de uma entrada no mundo, de uma construção marcada pelo momento em que tudo está “por se fazer” e, simultaneamente, por uma urgência que nos impõe passos enormes e tão decisivos como aprender a andar, a falar, a ler e escrever. É um tempo de abertura, de titubeios, e também de precipitações e definições, que virão a se confirmar na adolescência, mas cujas premissas, as bases, se estabelecem aí.

Ora, a criança não faz nada disso sozinha. É na relação com o outro que tudo isso se passa. E é, portanto, também nessa relação que as dificuldades aparecem. Se os adultos têm problemas na vida amorosa e no trabalho, as crianças, por sua vez, têm dificuldades com a aprendizagem, com os colegas, com os pais. Isto quer dizer que suas dificuldades expressam o que lhes acontece nessa relação com o outro. Então, igualmente para adultos e crianças, podemos dizer que nossas dificuldades falam. Nossos sintomas dizem de nós. Eles são incômodos, nos impõem custos altos, são “transtornos”, no sentido próprio do termo, e, ao mesmo tempo, são a forma de dizermos algo que se passa conosco, quando não encontramos outra forma de expressão.

Todo o diagnóstico que rege a psiquiatria infantil hoje é baseado na descrição e no recenseamento de comportamentos, como se comportamentos e sintomas fossem sinônimos. Identificar um conjunto de comportamentos não equivale a diagnosticar, assim como remediar não equivale a tratar, mesmo quando o tratamento inclui o recurso à medicação – recurso importante, aliás, nos casos em que há indicação.

Os sintomas são de fato, os sinais que nos ajudam a identificar uma doença. Mas, para o bem ou para o mal, nosso funcionamento subjetivo, e nossos sintomas psíquicos, não se reduzem a um comportamento. Um sintoma psíquico é mais do que um comportamento, é uma articulação de elementos complexos e que pedem uma leitura clínica. Uma criança agitada, que fala muito, que é inadequada em sala de aula – descrições comuns a crianças diagnosticadas com TDAH, por exemplo – pode exigir muitos tipos de cuidados e intervenções diferentes. Mas, em todos os casos, identificar o que se passa com ela exigirá que os adultos que a cercam nos falem a partir de sua relação com ela, e que ela mesma possa, a seu modo, expressaralgo a alguém que permita isso e que possa ouvi-la.

O comportamento não é um sintoma, eu dizia, porque um sintoma exige uma leitura clínica, ou seja, exige a presença de alguém que possa traduzir o que acontece com a criança, que possa fazer a leitura do que ela nos diz com sua dificuldade. Para que uma doença seja tratada, é preciso entrar em contato com ela. É na relação com o outro que surgem nossas dificuldades e as da criança. E é também aí, na relação com um outro, na relação terapêutica, que o diagnóstico e o tratamento devem se dar, quando se fizerem necessários.

Testemunhamos hoje uma confusão extremamente perigosa entre o que seria simplesmente a manifestação mais grosseira e superficial de uma dificuldade – isto é, o comportamento aparente – e aquilo que exige o mais elaborado e delicado trabalho, aquilo que exige um investimento enorme de todos – pais, profissionais e criança – isto é, o diagnóstico.

Para os pais e profissionais que lidam com crianças, é preciso partir da relação com elas, construir, reconstruir e apostar nessa relação permanentemente, para, apoiados nesse contato,poder, sim, dizer o que se passa com a criança. É preciso falar com a criança, e não nos contentarmos em falar sobre ela.

Muitas vezes o diagnóstico amparado no comportamento tem sido usado como um álibi para todos, apaziguando nossas angústias e nos dando a falsa sensação de que então, finalmente, sabemos o que fazer com a criança. Os efeitos desse tipo de diagnóstico,revestido de seriedade científica mas, no entanto, extremamente frágil clinicamente, são muito danosos no caso da criança. Pelo fato de atingirem um sujeito em formação, podem passar a integrar de forma decisiva seu modo de se conduzir na vida desde muito cedo.

Talvez seja melhor insistirmos nas nossas perguntas mais cotidianas, resistir um pouco a respostas que prometem tantas certezas, e buscar, com a ajuda ou não de profissionais, nos aproximar das crianças, com os instrumentos que tivermos, ou seja, as palavras, as brincadeiras, e também, não esqueçamos, a presença firme quando necessário. Isso pode ser apoiado e sustentado a partir de um tratamento para a criança, ou mesmo para os pais.

É frequente que o tratamento do pai ou da mãe possa resultar em benefícios indiretos e decisivos, para os filhos. Mas, em todos os casos, é preciso nos debruçarmos sobre o que a criança está nos dizendo com suas dificuldades, para que isso possa ter outro destino. Quando nossa intervenção segue puramente na direção de silenciar, a qualquer custo, o incômodo que as crianças nos trazem, corremos o grave risco de produzir mais dificuldades e sintomas impeditivos para elas, mesmo que silenciosos.

TEXTO ORIGINAL DE EBC

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