COMPORTAMENTO

Construção midiática da depressão

Por Déborah Araujo

“Não há um dia em que a palavra ‘depressão’ deixe de ser veiculada por um meio de comunicação brasileiro”, garante Ericson Saint Clair. Parece exagero, mas o trabalho do comunicólogo comprovou a inquietação que o motivou: “todos os dias há jornalistas que insinuam que seus leitores podem estar deprimidos.”
Mais do que inquietação, uma antipatia à superexposição do tema na mídia e sobretudo ao viés cientificista e prescritivo que a acompanhava levou o pesquisador à seguinte questão: “como a depressão tornou-se objeto de atenção midiática?”, a qual buscou responder em seu doutorado na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Com base na análise de uma amostra expressiva da imprensa brasileira, Saint Clair não só observou nesse meio um vertiginoso aumento das referências à depressão nas últimas décadas, como também uma ruptura radical de sentido que a palavra sofreu nos anos 1990.
De um mal coletivo, reflexo das agruras sociais, políticas e econômicas do Brasil, especialmente durante a ditadura militar, a depressão passaria a ser compreendida a partir desse período como um mal privado, explicado objetivamente pela ciência e afastada do contexto sociocultural do país.
O comunicólogo atribui essa cisão a uma série de fatores, entre eles o desenvolvimento de novas formas de diagnóstico e tratamento da depressão e a significativa relevância conquistada pelo tema da saúde, tida, especialmente a partir da década de 1990, como uma responsabilidade individual.
“A mídia passa a adotar um tom claramente pedagógico, encorajando seus leitores à modificação de seus comportamentos diante das ‘verdades descobertas’ pela ciência”
Saint Clair observou ainda que, com o novo sentido midiático da depressão, veio uma reconfiguração da função social que os meios de comunicação reivindicam para si em relação ao problema.
Enquanto nos anos 1970 e 1980 a cobertura sobre depressão era uma maneira de denunciar as formas de dominação política e econômica do governo, a partir de 1990 ela assumiria a tarefa de fornecer informações científicas sobre o tema e promover mudanças de comportamento. “A mídia passa a adotar um tom claramente pedagógico, encorajando seus leitores à modificação de seus comportamentos diante das ‘verdades descobertas’ pela ciência”, analisa o pesquisador.

Depressão na imprensa
Para analisar a trajetória da depressão na imprensa brasileira, Ericson Saint Clair acompanhou quatro décadas (1970-2010) de textos do jornal Folha de São Paulo e da revista Veja em que a palavra ‘depressão’ com sentido psíquico (médico ou não) foi mencionada, independentemente das editorias em que se deram essas menções.
“São dois veículos que geram grande impacto no cenário cultural brasileiro há décadas”, afirma o pesquisador, justificando a escolha das publicações. “Além disso, tem a facilidade metodológica: a Veja e a Folha disponibilizam os arquivos digitalizados de suas edições antigas em seus sites.”

Gráfico depressão na mídia
Os gráficos mostram o número total de matérias com a palavra ‘depressão’ encontradas na ‘Folha de SP’ (em azul) e na ‘Veja’ (em vermelho) em cada década estudada. Desse total, 863 foram analisadas no estudo. (gráficos: Ericson Saint Clair)
No total, foram avaliados 863 textos segundo uma série de categorias, entre elas a editoria em que a matéria fora publicada, fontes citadas, se a depressão é o tema principal da matéria e qual é o sentido dessa palavra nela – transtorno ou distúrbio, doença ou outra classificação.

Sentidos para a depressão
Segundo Saint Clair, a palavra ‘depressão’ vem do termo latino depressare, que significa ‘pressão para baixo’. Essa definição pode ter desde o sentido de depressão física, até de depressão econômica ou de depressão geológica.
No caso da amostra analisada, a palavra ‘depressão’ é usada, entre as décadas de 1970 e 1990, majoritariamente como referência às mazelas socioeconômicas do país. “Mas mesmo com esse sentido, a palavra também estava atrelada a uma questão política, não apenas por conta da ditadura, mas por causa do questionamento que a crise da economia gerava em relação ao regime”, explica o pesquisador. “Havia, assim, os ‘deprimidos’, como os políticos exilados, cassados e desempregados, e a ‘depressão’ do Brasil como um todo, nesse cenário de flagelo sociocultural e político”, completa.
Foi só no começo da década de 1990, como Saint Clair mostra em sua tese, que o termo passou a adquirir o sentido mais recorrente na imprensa atual. Na maioria de suas aparições a partir desse período, depressão designa um transtorno psíquico passível de instrumentalização por saberes técnicos especializados.
Sentidos prevalecentes de depressão
O gráfico mostra a percentagem de matérias nas quais o sentido científico da palavra ‘depressão’ prevaleceu. (gráfico: Ericson Saint Clair)
Desde que iniciou a pesquisa, o comunicólogo dispõe de uma ferramenta on-line que o alerta para a menção da palavra ‘depressão’ em sites de jornais, revistas e em blogues. Isto vem lhe permitindo computar a ocorrência diária do termo e observar os usos e sentidos da palavra nesses meios.
Mesmo o sentido médico da palavra tem sido extrapolado na sociedade brasileira, que a evoca para falar das diferentes formas de experiência do sofrimento
O pesquisador destaca que mesmo o sentido médico e científico da palavra, predominante na mídia hoje, tem sido extrapolado na sociedade brasileira, que a evoca cada vez mais para falar das diferentes formas de experiência do sofrimento. “A utilização banalizada da palavra ‘depressão’ como transtorno mental parece-nos um relevante sintoma da incapacidade de uma cultura de simbolizar afetos tristes em geral sem apelar para uma concepção estritamente técnica e pragmática das manifestações de tristeza humana”, ressalta.
Atualmente Saint Clair dá continuidade à pesquisa em seu pós-doutorado na UFRJ, no qual ele trata não apenas da depressão, mas também de outros distúrbios psiquiátricos. “Agora eu passo a acompanhar como vem se dando a produção de sentido na mídia acerca de diversos outros transtornos psíquicos”, completa.
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