Resiliência, mindfulness, wellness e cura são palavras às quais estamos cada vez mais expostos nos últimos anos. Sua presença parece nos dizer que adquirir um bom tônus muscular não basta e que hoje a missão imperiosa é alcançar um nível aceitável de felicidade. A pergunta óbvia que surge é saber se esse estado de plenitude é mensurável e, em caso afirmativo, para quais fins seriam usados os dados obtidos? Esta é precisamente a preocupação central do ensaio The Hapiness Industry (A Indústria da Felicidade). Seu autor, o acadêmico britânico William Davies, revê a história do interesse em medir a intensidade do bem-estar psicofísico a partir do espanto que causou verificar que a ciência comportamental e a neurociência se apresentavam como uma explicação plausível da crise financeira global.
Em seu estudo, Davies faz um percurso pelas contribuições de pensadores como Bentham, Jevons, Selye e Frederick W. Taylor – que poderia ser considerado o primeiro consultor de empresas da história –, pois foram eles que situaram a concepção de um hedonismo calculista no centro do mercado por meio do estudo psicológico do trabalho nas primeiras décadas do século XX. Seguindo essa pista, Davies explora também outra das suas principais preocupações: a sensação de que o sistema neoliberal está culpando o indivíduo por não ser feliz, ao mesmo tempo em que se esquiva de analisar o contexto em que essa infelicidade acontece. Dessa culpabilização surgem, na opinião do autor, as exortações midiáticas que insistem para que saiamos da nossa zona de conforto, que nos arrisquemos e tornemos realidade os nossos sonhos, como se tudo isso fosse única responsabilidade do indivíduo.
William Davies explora em seu ensaio a sensação de que o sistema neoliberal culpa o indivíduo por não ser feliz
Em sintonia com as ideias de Davies estão as da socióloga Eva Illouz, que estudou em profundidade as emoções no capitalismo, especialmente o amor romântico. Em ensaios como Consuming the Romantic Utopia (O Consumo da Utopia Romântica), llouz reconhece que as leis da oferta e da procura penetraram no campo dos afetos para ficar: as relações econômicas adquiriram um caráter profundamente emocional e as românticas se definem frequentemente por meio de modelos econômicos e políticos de negociação e intercâmbio.
Outro autor próximo dessas premissas é Terry Eagleton, que em seu ensaio Hope without Optimism (Esperança sem Otimismo) critica a banalidade do pensamento positivo e como ele contribuiu para contornar as questões essenciais sobre o progresso moral e social que podemos esperar sem ter falsas ilusões.
“O que me leva a escrever é o fato que a felicidade tenha se tornado um negócio”, afirma a jornalista Toño Fraguas
Em 2012, a jornalista norte-americana Barbara Ehrenreich publicou Smile or Die (Sorria ou Morra), outro libelo contra o onipresente pensamento positivo nos campos do trabalho e da saúde – sua própria experiência como paciente com câncer de mama facilitou o trabalho de campo nesse aspecto. Ehrenreich concorda plenamente com Davies sobre os usos desse pensamento positivo como “forma de controle social do empregado no local de trabalho, uma estocada para que seus resultados atinjam níveis cada vez mais altos.” Seu estupor em relação às mensagens que convidam a considerar uma demissão do trabalho ou um câncer como uma “oportunidade para crescer” é outro dos motores desse ensaio, em que também recebe algumas pauladas a indústria que comercializa produtos como ursos de pelúcia, moletons, bonés e canecas de café com mensagens que convidam as vítimas do câncer da mama a se mostrarem otimistas.
O livro de Ehrenreich ganhou um epígono espanhol em versão graphic novel: Que No, que No me Muero (Não, Não Estou Morrendo), assinada pela escritora María Hernández Martí e pelo ilustrador Javi de Castro. Em suas páginas, a protagonista e narradora, Lupe, narra sua experiência depois de ter sido detectado um câncer de mama que a levou a um labirinto de exames e tratamentos médicos, sempre incentivada por um elenco de profissionais de saúde, familiares e amigos que a instavam a se mostrar permanentemente otimista. Numa das orelhas do volume, a autora apresenta sua declaração de intenções: “Neste livro se conta como nestes últimos anos tive muitíssimas oportunidades de demonstrar uma paciência maravilhosa, zen, elegantíssima, dessa que te ilumina a inteligência e te embeleza e serve de inspiração aos demais. E como eu desperdicei todas elas.”
Os estudiosos questionam a motivação das mensagens que convidam a considerar uma demissão ou um câncer como uma “oportunidade para crescer”
Para esses momentos em que o sujeito contemporâneo tem de se manter em situações muito instáveis em que conta somente consigo mesmo, os auxílios que lhe são oferecidos chegam muitas vezes sob a forma de livros de autoajuda e superação. Esse recurso biblioterapêutico é analisado pela argentina Vanina Papalini em seu estudo Garantías de Felicidad (Garantias de Felicidade). Papalini argumenta que o corpo gera sintomas relacionados com a sociedade a que pertence e que, no momento presente, o contraste com os frequentes discursos sociais que tratam do prazer e das difíceis condições de vida de muitos indivíduos cria uma lacuna que também serve como um nicho de mercado para esses livros, que exercem um verdadeiro trabalho terapêutico para gerar algo de “felicismo” no indivíduo, como denomina a jornalista espanhol Toño Fraguas, e contra o qual se posiciona em seu livro ¿Existe la Felicidad? (A Felicidade Existe?).
“O que me leva a escrever é o fato que a felicidade tenha se tornado um negócio”, afirma Fraguas. Sua missão é desmascarar charlatães que tiram proveito econômico das nossas fraquezas, incluindo os criadores de objetos cotidianos como xícaras, cadernos ou panos de cozinha com slogans positivos que se tornam quase ordens, também apontados pelo dedo implacável de Barbara Ehrenreich.
O que se desprende desses textos não é um canto ao mau humor e à queixa destrutiva, mas uma reflexão sobre como as instituições decidem o que significa ser feliz em cada período histórico. Por isso, depois dessas leituras, talvez pensemos duas vezes antes de fornecer dados sobre nossos hábitos alimentares e de sono no aplicativo Saúde dos nossos telefones.
Imagem de capa: Shutterstock/ra2studio
TEXTO ORIGINAL DE EL PAÍS
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