Pode-se encontrar na literatura um valor assertivo, quer na repleção, harmonizando-a com os valores conservadores da sociedade, quer na tensão, fazendo dela o instrumento de um combate de libertação. Ao inverso, pode-se conceder à literatura um valor essencialmente interrogativo. A literatura torna-se então, o signo e talvez o único signo possível dessa capacidade histórica na qual vivemos subjetivamente, admiravelmente servido por aquele sistema. A importância da análise junguiana para a arte de Chico Buarque de Hollanda consiste em sua polarização dos conceitos e em sua ideia de permanência e continuidade dos signos (símbolos). Enquanto sistema de pensamento relacionado à criação e ao desenvolvimento humanos que visam uma busca de maior conhecimento dos nossos processos inconscientes, a psicologia analítica tem pressupostos teóricos que serão aplicados à literatura, mais especificamente à poesia.
O sentido em que os prosadores de ficção usam as palavras, mesmo quando elas se referem a coisas do espírito e científicas, é o sentido carnal, vamos dizer assim, terreno, cotidiano, comum. A ideia de que os romancistas, como os poetas são seres aéreos e desligados da realidade, essa sim é que é uma ideia aérea, desligada da realidade alienada; nenhum ser é mais terra e dos homens do que o escritor.
De acordo com Jung, há uma imagem coletiva da mulher no inconsciente do homem, com o auxílio da qual ele pode compreender a natureza da mulher. Esta imagem herdada é a terceira fonte importante da feminilidade da alma. Diz Jung que “o homem que não atravessa o inferno de suas paixões, também não as supera. Elas se mudam para a casa vizinha e poderão atear fogo que atingirá sua casa sem que ele perceba. (Jung, 1916: 85)
A valorização das fantasias não significa negação de realidade. Deste modo, a busca do discurso poético e seu constante questionamento sobre a essência
da vida encontra na poesia o lugar onde se circunscreve simbolicamente, não implicando ausência nem tampouco a desvalorização do outro. Pelo contrário, o
poeta é aquele ser que se despreende de um discurso pseudo coerente e codificado, para alcançar o mais íntimo e singular significante arquivado e ou reprimido em algum lugar do seu inconsciente. Daí ser possível fazer uma convergência entre a poesia e a psicologia analítica no que diz respeito ao que nos é velado e revelado:
mesmo miseráveis os poetas/ os seus versos serão
bons/ mesmo porque as notas eram surdas/ quando um
Deus sonso e ladrão/ fez das tripas a primeira lira/ que
animou todos os sons.
A formulação dos arquétipos é descrita como um conceito empírico, como o átomo. Este é um conceito baseado não apenas em evidência médica como em observações de fenômenos míticos, religiosos e literários. Assim, arquétipos são considerados imagens primordiais, produtos espontâneos da psique que não refletem nenhum processo físico mas estão nele refletidos. A anima é o aspecto feminino da dualidade arquetípica macho/fêmea, cujas projeções no mundo externo podem ser traçadas pelo mito, pela filosofia e pela religião. Essa dualidade é representada por símbolos míticos que expressam os imagos dos pais.
A anima encarna valores espirituais pelo que a sua imagem é projetada não só em deusas pagãs mas até na própria Virgem; surge repetidas vezes no mito da deusa, musa inspiradora e/ou Medium como na canção “Beatriz” (1982).
“Olha, será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
e se ela só decora seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida. (p. 201)
Também na figura mítica da “Ciranda da Bailarina”, a anima é formosa e inatingível:
“Procurando
bem/ todo mundo tem pereba/ Marca de Bexiga ou vacina/
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba/ Só a bailarina
que não tem../ e não tem coceira/ berruga nem
frieira/ Nem falta de maneira./ Ela não tem (p. 124).
A anima, todavia, está igualmente próxima da natureza e carregada de emoção. É fatal e sedutora em “Folhetim”: Se acaso me quiseres/Sou dessas mulheres/Que só dizem sim/Por uma coisa à toa/Uma noitada boa/Um cinema, um botequim.
A sedução termina com o prazer de a anima sentir-se superior no caótico anseio de vida : “Mas na manhã seguinte não conta até vinte/ Te afasta de mim/
Pois já não vales nada/ És página virada/ Descartada/do meu folhetim (p. 160).
O encontro da anima constelada como santa e para com seu oposto, a prostituta se dá em “Umas e Outras” (1966) “Se uma nunca tem sorriso/é para melhor se reservarE diz que espera o paraíso/e a hora de desabafar/A vida é feita de um rosário/que custa tanto a se acabar/Por isso às vezes ela pára/E senta um pouco para chorar.
A anima se manifesta como a femme fatale repetidas vezes na obra buarquiana quando esta está mais ligada ao aspecto erótico: Como num romance/O homem dos meus sonhos/Me apareceu num lance/Era mais um/E com seu olhar de pose em pose/foi me sugando feito um zoom.
Porém, não é só através da projeção nas mulheres e na atividade criadora que na vida de homem a anima se exprime; é também nas fantasias, nos estados de
ânimo, nos pressentimentos, nas explosões emocionais como na canção “O Que Será” (À Flor da Pele) (1976).O que será que me dá/Que me bole por dentro, /será que me dá/Que brota à fl or da pele, será que me dá/E que me sobe às faces e me faz corar/E que me salta aos olhos a me atraiçoar/E que me aperta o peito e me faz confessar/O que não tem mais jeito de dissimular/E que nem é direito ninguém recusar/E que me faz sentido, me faz suplicar,/O que não tem medida, nem nunca terá/O que não tem remédio, nem nunca terá/O que não tem receita.
O mundo da anima representa o elemento Yin abismal, a fonte aborígene da psique, o mundo das “Mães” de Goethe, que já existia no homem anteriormente à experiência de si próprio como um eu, um ego (Whitmont, 1991: 168). A anima representa o eterno feminino – em qualquer um e em todos os seus quatro
aspectos possíveis e suas variantes e combinações como Mãe, Hetaira, Amazona e Medium. Também aparece como a deusa da natureza, Dea Natura, e a Grande Deusa da Lua e da Terra que é a Mãe, como em “Angélica” (1977)
“quem é essa mulher/ que canta/sempre este estribilho/ só queria embalar meu filho/que mora na escuridão do mar”
Irmã – “Se lembra da fogueira/ se lembra dos
balões/ se lembra dos luares dos sertões/ a roupa no
varal/ feriado nacional/ E as estrelas salpicadas nas
canções/ Se lembra quando toda modinha/ Falava de
amor/ Pois nunca mais cantei, ó maninha/ Depois que
ele chegou” (Maninha).
Amada – “Ah se já perdemos a noção das horas/
se juntos já jogamos tudo fora/ me diga agora como
hei de partir/ Se ao te conhecer/ dei pra sonhar/ fi z
tantos desvarios/ rompi com o mundo/ queimei meus
navios/ me diz agora/ como hei de partir”.
Destruidora – “Deixa em paz meu coração/ que
ele é um pote até aqui de mágoa/ e qualquer desatenção,
faça não/ pode ser a gota d’água”.
Apaixonada – “a casa está bonita/ a dona está
demais/ a última visita/ quanto tempo faz/ Balançam
os cabides/ lustres se acenderão/ O amor vai pôr os
pés/ no conjugado coração/ Será que o amor se sente
em casa/ Vai sentar no chão/ Será que vai deixar cair/
a brasa no tapete coração”.
A Bela – “Ouve a declaração/ oh bela/ De um
sonhador titã/ Um que dá nó em paralela/ e almoça
rolimã/ O homem mais forte do planeta/ tórax de Superman/
Tórax de Superman/ e coração de poeta”.
Vida e Morte – “Vida, minha vida/ Olha o que é
que eu fi z/ Deixei a fatia/ mais doce da vida/ Na mesa
dos homens/ de vida vazia/ mas, vida, ali/ Quem sabe,
eu fui feliz”.
O poder singular da anima é devido a uma intensa repressão do material inconsciente com respeito aos pais. As imagens arquetípicas são descritas como
preexistentes disponíveis e ativas desde o momento do nascimento como possibilidades de ideias que são subsequentemente elaboradas pelo indivíduo. A imago da anima é vista como muito ativa na infância, projetando qualidades sobre-humanas na mãe antes de afundar no inconsciente sob a influência da realidade externa. O conceito de anima é considerado crítico para a compreensão da psicologia masculina.