Tentarei fazer algumas considerações a respeito das implicações da formulação de diagnósticos em psiquiatria e demais disciplinas que seguem o mesmo protocolo. Estas reflexões certamente parecerão extremamente polêmicas ou mesmo absurdas àquelas mentes formatadas por um discurso cientificista e desumanizado. Mas as ciências da saúde estão sofrendo de um déficit crônico de sutileza – e esta carência está tendo conseqüências catastróficas para a vida e o futuro das pessoas.
Antes de tudo, é preciso fazer alguns esclarecimentos. Os sintomas médicos exigem e demandam um diagnóstico. Quanto antes ocorrer a prescrição do correto diagnóstico, tanto melhor para a eficácia do tratamento. Já os transtornos mentais, não. E aqui é preciso fazer uma diferenciação entre as doenças do cérebro – as quais podem ser tratadas com medicamentos ou cirurgia – e as “doenças” ou transtornos mentais, que demandam um protocolo diferenciado e um tratamento específico. Todo o esforço da psiquiatria e de boa parte dos neurocientistas é tentar demonstrar que os transtornos mentais são doenças ou desequilíbrios do cérebro. Conversa pra boi dormir.
Por que afirmo que o diagnóstico, no caso dos transtornos mentais, exige um tratamento diferenciado? É que, em psiquiatria, o diagnóstico vem sempre acompanhado de uma trilogia maligna: (a) descontextualização, (b) naturalização e (c) perenização do sofrimento psíquico.
A fim de ilustrar e embasar a argumentação, vou citar dois casos clínicos – o de Roberta (fictício) e o de Márcia (real).
ROBERTA: Trata-se de uma adolescente que apresenta acessos frequentes de fúria incontrolável. Seu comportamento tanto na escola quanto em casa é caracterizado por atitudes ríspidas quando não extremamente agressivas. Além de não respeitar os pais e questionar-lhes a autoridade, por vezes quebra objetos e agride fisicamente a mãe. Ameaça fugir de casa ou se matar. Preocupada, a família a leva ao psiquiatra. Na consulta, após analisar os seus sintomas, ela é diagnosticada como portadora do Transtorno Explosivo Intermitente (TEI). São-lhe prescritos ansiolíticos e calmantes.
MÁRCIA: Sempre fora muito apegada à família. Com a morte do pai, fica profundamente triste e desconsolada. Levam-na a um psiquiatra. Ela é diagnosticada como sofrendo de Depressão, e prescrevem-lhe três medicamentos. Ela começa a tomá-los e sua vida piora a cada dia. Sua relação com o marido, que não ia bem, se deteriora. Eles se separam. Surgem os sintomas de pânico. Não consegue mais trabalhar. Vive durante dez anos afastada de suas atividades profissionais em função do pânico e da depressão. Frequentemente padece de fome em casa por não conseguir atravessar a rua para comprar alimentos na venda da esquina. Chega ao consultório andando com dificuldade, amparada e auxiliada por dois familiares. Seus movimentos são lentos, sua voz carregada.
A) Descontextualização
Ocorre quando se supõe que os transtornos mentais são decorrentes de alterações químicas no cérebro. Não há dúvida de que todo pensamento e todo sentimento vem acompanhado de uma alteração química no cérebro. Mas a alteração química explica o surgimento do pensamento, do sentimento e do transtorno? Não. E por que não? A razão é que o surgimento de um hormônio ou substância no cérebro se dá por alguma razão. E a razão é de ordem psíquica.
Voltemos aos nossos exemplos. Roberta vivia com o padrasto e a mãe. O padrasto estava abusando sexualmente de sua enteada há meses. A mãe parecia não se dar conta do que se passava dentro de casa. Não havia intimidade entre a mãe e o padrasto. A mãe sofrera no passado de violência sexual, o que a fazia ter pavor de sexo. Desta forma, consciente ou inconscientemente, deixar de ser solicitada pelo padrasto foi para ela um alívio. A filha ensaiou denunciar os abusos que sofria à mãe, mas esta os desconsiderou. Foi aí que os acessos de raiva começaram.
Já o calvário de Márcia teve início quando ela foi diagnosticada como deprimida, após a morte do pai. Sempre fora uma jovem dinâmica, independente e trabalhadora. Era para ela se sentir feliz com a morte da pessoa que mais amava? A sua tristeza foi patologizada.
Tanto num caso como no outro, o diagnóstico psiquiátrico operou um psicocídio: ao ser formulado, colocou “entre parênteses” todo o contexto que levou ao surgimento dos sintomas e transformou os seus portadores em coisas, em animais sem vida própria, sem história, sem fala e dignidade. O diagnóstico matou a subjetividade, restando apenas um corpo com uma patologia.
B) Naturalização
O ser humano é um animal cultural. Quando se supõe que um transtorno psíquico decorre de um desequilíbrio químico no cérebro, reduz-se o homem a um código de barras, a uma simples mercadoria, a uma coisa. Toda doença, e principalmente todo transtorno, decorre da confluência de múltiplos fatores. Quando a psiquiatria envereda por esse caminho reducionista sem escutar o sujeito e sem levar em conta o histórico de sofrimentos que se ocultam por trás do sintoma, morre enquanto tal. Converte-se em encefalatria.
C) Perenização
“Quando o psiquiatra enquadra, classifica e diagnostica, distancia-se inevitavelmente de uma postura terapêutica aberta, prospectiva e amorosa. Seu olhar é retrógrado e petrificador – petrifica o paciente num estigma, e congela o próprio olhar do psiquiatra no diagnóstico realizado num determinado momento, dificultando-lhe a percepção da evolução ou variação da sintomatologia do mesmo paciente ao longo do tempo, centrando-se no que já está posto, ou seja, atua no sentido de capturar o paciente numa classificação nosológica”. (A Tragicomédia da Medicalização: a Psiquiatria e a Morte do Sujeito, Natal (RN), Sapiens: 2012. Segundo Ato, Das Classificações).
Voltemos ao caso de Márcia, afastada do trabalho por uma Junta Médica há uma década. Quando, na segunda sessão, o terapeuta, através de um trabalho vivencial e reflexivo acerca do papel que ela estava representando na sua própria vida, a faz ver que ela estava assumindo um papel de vítima, de doente, acobertado e justificado pela psiquiatria, ela se DESCOLA do rótulo. Toma consciência que o rótulo a estava colocando numa jaula simbólica ad infinitum. Na terceira sessão, ela afirma: “Vou voltar a estudar! Vou pegar carona com a minha sobrinha, que passou no vestibular. Não vou perder essa oportunidade!”
Nesta conformidade, ela se sentia “doente” simplesmente porque se colocava e aceitava o papel de doente. No momento que percebe que ela mesma alimentava aquele papel que a fazia vegetar, decide mudar. E volta a viver.
Se o transtorno psíquico é causado por um desequilíbrio químico do cérebro, quando o tratamento vai acabar? Nunca se sabe. Supondo-se que a atividade cerebral seja regulada pela genética, a resposta é: nunca. O paciente precisa ser medicado para todo o sempre. E, mesmo que os sintomas estejam ausentes, pode ser prudente medicar-se “de forma preventiva” para evitar uma recidiva.
Essa trilogia maligna é uma expressão inequívoca do processo de medicalização da vida. O Transtorno de Explosividade Intermitente poderia ser considerado uma piada, se não fosse uma tragédia.
E aí, para finalizar, temos algumas possibilidades.
Primeira: Diagnóstico + medicação (sem tratamento)
Esse procedimento é o mais usual, especialmente na rede pública. O sujeito vai ao psiquiatra e sai com um remédio na mão. Esse holocausto da subjetividade é perpetrado diariamente nos postos de saúde e rede pública.
Segunda: Diagnóstico + medicação + tratamento
Pode-se fazer uso do diagnóstico, ou seja, de um procedimento simbolicamente cruel, para a obtenção de dois direitos – o remédio e o tratamento psicológico. Isso funciona? Cito outro trecho (é longo, mas é importante): “(…) Ao medicar um paciente sob a alegação de ajudá-lo em seu tratamento, os psiquiatras não estão se colocando do lado daquele que sofre, mas sim a favor do pharmacolonialismo, que se move predominantemente na lógica do capital. Isto porque a medicalização suprime a ética do cuidado de si, a estética e a motivação que poderia levar à cura, sendo, portanto, inimiga da subjetivação.”
“Com efeito, os medicamentos não funcionam da mesma maneira para todos. Os indivíduos são diferentes e reagem de forma desigual aos estímulos. Da mesma forma do que ocorre em relação à nutrição, onde um alimento saudável pode ser danoso para alguém que possua alguma rejeição aos ingredientes dele, os indivíduos apresentam reações diversas em relação a uma mesma droga. Uma substância administrada para amenizar a depressão pode, por exemplo, induzir ao suicídio a determinadas pessoas. Assim, o princípio ativo pode provocar reações inversas às pretendidas. Confiar num medicamento é sempre uma aposta perigosa e imprevisível.”
O CORO: “O que é válido para alguns, pode não ser válido para todos.”
Contudo, o discurso biomédico sustenta, e com razão, que o uso dos medicamentos, apesar dessas “anomalias”, dessas variações individuais indesejáveis, efetivamente funciona para um bom número de pessoas. Entretanto, como a medicação está dissociada de uma dietética existencial, ou seja, de um estilo de vida, quando o indivíduo é medicado (ou se automedica) e constata um efeito positivo no melhoramento dos seus sintomas, sente-se imediatamente autorizado a desequilibrar-se ainda mais, já que tem à mão um recurso que pode contornar e aliviar os excessos cometidos.O remédio converte-se na senha para empreender toda a sorte de desatinos(1).
Assim, por exemplo, um portador de diabetes, ao tomar um remédio que diminui as taxas de glicose no sangue, sente-se livre para abusar dos docinhos. Um viciado em bebidas alcoólicas, ao perceber que suas dores abdominais diminuem com um remédio para o fígado, permite-se abusar mais ainda do álcool. Ao receber um transplante de coração, um pedreiro, ao sair da sala de cirurgia, falou para um repórter: “Estou me sentindo tão bem que vou comemorar comendo um churrasco!”
O mesmo vale para os psicofármacos: aquele que se sente ansioso, ao ver a sua ansiedade ser suavizada por um ansiolítico, permite-se adotar um estilo de vida mais agitado e frenético do que antes, graças às conquistas da farmacologia. Alguém que esteja triste pela perda de um ente querido, ao tomar um antidepressivo pode indefinidamente sentir-se propenso a apegar-se à lembrança do morto, cuja perda acha inaceitável e intolerável, impedindo-lhe a elaboração do luto. Ou seja, mesmo que funcione, o remédio ainda assim é danoso para um grande número de pessoas, já que o tratamento é focado nos sintomas e não em cima de suas causas que continuam ativas e atuantes, embora ocultas.
O CORO: “Quanto melhor o remédio, tanto pior será!”
Porém, há ainda, por último, o restrito grupo daqueles que tomam um psicoativo e ele efetivamente funciona, os quais não se autorizam a praticar nenhum tipo de excessos, seguindo fielmente o protocolo médico prescrito. Benditos, esses bons pacientes! O sonho de todos os psiquiatras! Para esses, o medicamento, quando ingerido, age como uma máscara trágica a se interpor entre o sujeito e os seus sentimentos e emoções. A máscara dá a ele uma aparência de universal normalidade, e a sua individualidade é eclipsada por trás dela. E mais: ele não mais consegue sentir-se e perceber-se como outrora: o medicamento altera o seu humor, tornando-o “adequado” ou “saudável” dentro de normalizações socialmente determinadas.
A consequência desta acomodação clínica do sintoma é evitar que o indivíduo entre em contato com as verdadeiras causas de seu malestar. Ora, ora! Nenhum psiquiatra bem intencionado e esclarecido sustentaria que o remédio por si só possa resolver todos os males! O ideal é que ele venha acompanhado de uma psicoterapia a fim de reforçar e retroalimentar os efeitos positivos da medicação. Terapia e remédio, remédio e terapia: remédio para o corpo, terapia para a alma! No entanto, ao contrário de todos aqueles que pregam que a medicação e a terapia caminham muito bem juntas, na verdade a medicação é o maior empecilho para um efetivo avanço terapêutico. E o motivo é óbvio e irrefutável: nós nunca desejamos tanto estar saudáveis como ao nos sentirmos doentes; nós nunca desejamos tanto comer um alimento como quando sentimos nas vísceras a fome nos corroer por dentro; nós nunca ansiamos tanto por carinho como nos momentos em que nos sentimos sós e desamparados. Ora, se o medicamento diminui ou cessa o mal-estar, elimina também aquilo que poderia ser a motivação para a busca do bem-estar(2). Se o medicamento minimiza o sofrimento, diminui também a capacidade de sentir prazer. Isto porque há uma harmonia entre os opostos em todas as coisas, e um oposto remete para o seu pólo oposto e complementar.”
Terceira possibilidade: Diagnóstico + tratamento (sem medicação)
É, na maioria dos casos, preferível a todas as outras. Evita os efeitos colaterais da medicação e não atrapalha no tratamento. Só em casos especiais não seria recomendável.
Por fim, a guisa de conclusão, cito um trecho do livro “A Tragicomédia da Medicalização”, onde a violência simbólica do diagnóstico é resumida:
“Eis – antecipando o que diremos ao longo deste opúsculo – as etapas da violência simbólica à qual o paciente é submetido: primeiro, ele é nomeado pelo diagnóstico como portador de algum distúrbio ou perturbação; segundo, pelo diagnóstico o rótulo adere ao paciente como um estigma, tal como as marcas de identificação apostas aos animais quando são ferrados; terceiro, ele é rebanhizado, ou seja, as referências se deslocam de sua personalidade individual e única para o rebanho anônimo e indistinto da categoria nosológica em que é agrupado. As consequências desta rebanhização são, de um lado, a despersonalização e perda de referenciais internos; e, de outro, a terapêutica medicamentosa indicada será aquela aplicável não ao indivíduo na sua singularidade, mas sim ao rebanho no qual ele foi inserido, ou seja, aplicar-se-á um remédio inespecífico para um indivíduo genérico que não existe enquanto tal”.
Em suma, para não cansar demais os leitores: a formulação precipitada de um diagnóstico para um transtorno psíquico é um desserviço àqueles que buscam o autoconhecimento e a autotransformação, tendo apenas uma função de viabilizar um controle biopolítico sobre os corpos e as mentes dos pacientes.
Saudações,
José Ramos Coelho
(1)”(…) a educação age sobre o nível de vida em uma proporção duas vezes e meia mais importante do que o consumo médico” – afirma Michel FOUCAULT, retomando a tese de Ivan Illich. – “Conclui-se que, para viver mais tempo, um bom nível de educação é preferível ao consumo médico” (2011, p.390)
(2) Com profunda sabedoria, pontifica o Dr. Edward BACH: “… a doença, posto que pareça tão cruel, é benéfica e existe para nosso próprio bem; se interpretada de maneira correta, guiar-nos-á em direção aos nossos defeitos principais. Se tratada com propriedade, será a causa da supressão desses defeitos e fará de nós pessoas melhores e mais evoluídas do que éramos antes. O sofrimento é um corretivo para se salientar uma lição que de outro modo não haveríamos de aprender, e ele jamais poderá ser dispensado até que a lição seja totalmente assimilada”. (2010, p.18). O combate precipitado aos sintomas está a serviço da manutenção da ignorância e da cegueira.
TEXTO ORIGINAL DE HUMANIZASUS
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