Das neuroses de ontem ao narcisismo de hoje

POR DÉBORAH DE PAULA SOUZA*

Os psicanalistas saíram do seu período de recolhimento e a terapia pela palavra está em pleno desenvolvimento por aqui, na visão do diretor-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Nesta entrevista, ele diz que o maior desafio da psicanálise, hoje, são as fobias, a síndrome do pânico e outros “estados narcísicos”

Neste mês de reflexão – já que a entidade celebra 60 anos de filiação à IPA (International Psychoanalytical Association) -, o psicanalista diz que esse campo está em plena fase de desenvolvimento. Ele conta como um método demorado, profundo e caro sobrevive neste mundo imediatista, em que remédios se colocam como alternativa à conversa terapêutica.

Folha – Como o senhor define a psicanálise hoje?
Plinio Luiz Kouznetz Montagna –
Ela atua em vertentes interligadas: é tratamento clínico; método de pesquisa sobre o ser humano e teoria do funcionamento da mente que permite generalizações. Ocorre que pensar a clínica permite pensar a cultura e essa conexão com artes e filosofia se mantém. É um campo de saber em desenvolvimento, não está fechada, progride com fluxos e refluxos. Na IPA convivem 12 mil psicanalistas do mundo, de tendências diferentes.

E muitas divergências, não?
Quando Freud era vivo, era ele quem dizia: isto é e isto não é psicanálise. Depois que morreu, ficou mais difícil. Enquanto os grandes mestres do século 20 (Winnicott, Klein, Lacan) estavam vivos, as pessoas seguiam uma linha. Hoje, a tendência é depurar as contribuições de cada autor e articular uma conversa entre eles. Não para integrar, pois as diferenças existem mesmo. Na década de 1980, tantas correntes nos fizeram questionar o que há de comum na psicanálise. Concordamos sobre três pontos: nosso objeto é o inconsciente; a importância da transferência e da contratransferência e a noção de que o passado deve ficar no passado.

Plínio Montagna (Foto: Carlos Cecconello/Folhapress)

Como isso se traduz no consultório?
O que diferencia a psicanálise de outras psicoterapias é o jogo transferencial. Para produzir uma mudança, o que adianta é fazer o problema emergir aqui e agora, na relação com o analista, de modo que seja possível trabalhar com ele. O analista é como uma tela em que o paciente projeta imagens. O complicador é que o analista não é uma tela em branco. Levamos em conta a contratransferência, a relação do profissional com seu paciente: inclui as dificuldades dele, pontos cegos que o impedem de escutar. O trabalho não se restringe a ouvir o relato, o analista escuta inconsciente.

O método nasceu como uma cura pela fala. Essa conversa pode ficar muito racional?
A racionalização não é análise e sim a tentativa de evitá-la. Essa defesa pode surgir tanto do paciente quanto do analista, porque o contato emocional gera turbulência. As resistências fazem parte, porém, o cerne da psicanálise é o encontro, e ele só ocorre quando se vai além das defesas. Por isso temos de saber manejá-las.

E quanto ao passado? Muita gente acha que psicanálise é ficar falando de traumas da infância.
Psicanálise não é “falar sobre”. A transferência é uma espécie de atualização do passado com o objetivo de permitir que o presente se instale. A análise permite que o passado fique no passado e a pessoa viva no presente. Essa é a libertação.

Aqui no Brasil, a psicanálise avança ou recua?
Nos anos 50 e 60 houve implantação e expansão, depois teve um momento em que as terapias corporais e o psicodrama estavam em destaque. Por um período, os analistas se recolheram nos consultórios. A clínica continua sendo fundamental, mas hoje vivemos um florescimento para além dela, um momento de grande inserção social. Na Sociedade, há grupos ocupados com atendimento à comunidade, psicanalistas que dão suporte a uma ONG que trabalha com meninos de rua, sem falar na atuação em hospitais. Os analistas também atuam cada vez mais no setor jurídico, trabalhando como mediadores e peritos em questões de família, divórcio, guarda de filhos. E podem contribuir muito graças à visão global que têm de situações complexas como interdição, brigas, drogadição, violência doméstica etc.

Como a técnica responde às patologias contemporâneas?
Esse é o grande desafio atual: lidar com fobias, pânico, transtorno bipolar, borderline, os chamados estados narcísicos. Todas essas patologias têm em comum o fato de serem estruturas arcaicas [criadas no início da vida, antes da linguagem e do amadurecimento da psique], ou seja: se instalam antes do mecanismo de repressão. Na neurose, a repressão já está instalada, existem os conflitos psíquicos e, nessa etapa, é possível simbolizar o sofrimento. No caso do pânico, por exemplo, não existe nem esse conflito. Imagine o medo tentando entrar na mente. Sem a parede da censura para barrá-lo, ele a invade. E, como na estrutura arcaica não há possibilidade de simbolização, o que costuma ocorrer são dores e outras manifestações corporais. Os psicanalistas hoje se debruçam sobre esses fenômenos. A Sociedade tem equipes de estudos de fibromialgia, dores crônicas, psicossomática. Há membros da Sociedade pesquisando conexões entre dor física e psíquica.

O senhor é psicanalista e psiquiatra, e há um embate entre essas áreas. O que acha da oferta de remédios que prometem alívio rápido?
O avanço da psicofarmacologia permitiu medicações mais eficientes e com menos efeitos colaterais. Por outro lado, é avassaladora a quantidade de dinheiro investido na indústria de remédios, não só no desenvolvimento científico, e sim na propaganda. A promessa de “felicidade química” surgiu na década de 80, com o Prozac. Foi questão de tempo para todos descobrirem que não existe pílula de felicidade. Aliás, a psicanálise também não traz felicidade. Nem promete. A psiquiatria clássica perdeu o contato com o ser humano, tenta encaixá-lo numa lista de sintomas pré-estabelecidos. O resultado é que muitos psiquiatras diagnosticam a tristeza como depressão. Isso é um desvio, não é o caso de se medicalizar tudo.

É possível medir os resultados de uma análise?
A psicanálise promove transformações significativas. Existe um grupo em Boston que está pesquisando mudanças psíquicas. Esse grupo estudou pessoas que consideravam que suas análises tinham sido bem-sucedidas. Elas destacaram a vivência de uma comunicação profunda com seus analistas e “insights” que alteraram a percepção de si e das situações. Comparo os “insights” da análise ao sistema olfativo: sentir um aroma novo não significa só adicioná-lo ao repertório conhecido, e sim alterar o circuito de tal modo que, a partir daí, o próximo odor será recebido de forma diferente, porque toda a estrutura do arquivo foi modificada.

Por que a profissão não é reconhecida pelo Ministério da Educação?
Na década de 50, foi oferecido à SBPSP a possibilidade de se oficializar a profissão e a formação, mas esse caminho não foi adotado. Na minha opinião, por um erro de cálculo, mas nem todos concordam comigo. Muitos acham que não é o Estado que tem que reconhecer nossa profissão, e sim as próprias instituições psicanalíticas.


*COLABORAÇÃO PARA A FOLHA / DÉBORAH DE PAULA SOUZA é jornalista com formação em psicanálise.

Fonte indicada: Lisandro Nogueira

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