“A morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividade de cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais conseguirá pôr termo a isso, felizmente. A psicanálise atesta um avanço da civilização sobre a barbárie. Ela restaura a ideia de que o homem é livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico.”
Presente em várias listas de best-sellers da França, o ensaio Por que a psicanálise?, de Elisabeth Roudinesco, faz um balanço dos 100 anos da psicanálise e uma projeção de seu futuro no novo milênio. Publicada no Brasil em 1999, pela editora Zahar, a obra nasceu de um questionamento: “por que, após cem anos de existência e de resultados clínicos incontestáveis, a psicanálise era tão violentamente atacada hoje em dia pelos que pretendem substituí-la por tratamentos químicos, julgados mais eficazes porque atingiriam as chamadas causas cerebrais das dilacerações da alma”, diz a autora. Leia abaixo A derrota do sujeito, texto introdutório de Por que a psicanálise?
Na contracorrente do fascínio pela neurociência, fustiga uma sociedade em que o homem é levado a tratar suas neuroses a golpes de receitas médicas, atacando tanto as correntes cientificistas quanto as obscurantistas e charlatanescas.
O sofrimento psíquico manifesta-se atualmente sob a forma da depressão. Atingido no corpo e na alma por essa estranha síndrome em que se misturam a tristeza e a apatia, a busca da identidade e o culto de si mesmo, o homem deprimido não acredita mais na validade de nenhuma terapia. No entanto, antes de rejeitar todos os tratamentos, ele busca desesperadamente vencer o vazio de seu desejo. Por isso, passa da psicanálise para a psicofarmacologia e da psicoterapia para a homeopatia, sem se dar tempo de refletir sobre a origem de sua infelicidade. Aliás, ele já não tem tempo para nada, à medida que se alongam o tempo de vida e o do lazer, o tempo do desemprego e o tempo do tédio. O indivíduo depressivo sofre ainda mais com as liberdades conquistadas por já não saber como utilizá-las.
Quanto mais a sociedade apregoa a emancipação, sublinhando a igualdade de todos perante a lei, mais ela acentua as diferenças. No cerne desse dispositivo, cada um reivindica sua singularidade, recusando-se a se identificar com as imagens da universalidade, julgadas caducas. Assim, a era da individualidade substituiu a da subjetividade: dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de uma independência sem desejo e de uma historicidade sem história, o homem de hoje transformou-se no contrário de um sujeito. Longe de construir seu ser a partir da consciência das determinações inconscientes que o perpassam à sua revelia, longe de ser uma individualidade biológica, longe de pretender-se um sujeito livre, desvinculado de suas raízes e de sua coletividade, ele se toma por senhor de um destino cuja significação reduz a uma reivindicação normativa. Por isso, liga-se a redes, a grupos, a coletivos e a comunidades, sem conseguir afirmar sua verdadeira diferença.
É justamente a existência do sujeito que determina não somente as prescrições psicofarmacológicas atuais, mas também os comportamentos ligados ao sofrimento psíquico. Cada paciente é tratado como um ser anônimo, pertencente a uma totalidade orgânica. Imerso numa massa em que todos são criados à imagem de um clone, ele vê ser-lhe receitada a mesma gama de medicamentos, seja qual for o seu sintoma. Ao mesmo tempo, no entanto, busca outra saída para seu infortúnio. De um lado, entrega-se à medicina científica, e de outro, aspira a uma terapia que julga mais apropriada para o reconhecimento de sua identidade. Assim, perde-se no labirinto das medicinas paralelas.
É por isso que assistimos, nas sociedades ocidentais, a um crescimento inacreditável do mundinho dos curandeiros, dos feiticeiros, dos videntes e dos magnetizadores. Frente ao cientificismo erigido em religião e diante das ciências cognitivas, que valorizam o homem-máquina em detrimento do homem desejante, vemos florescer, em contrapartida, toda sorte de práticas, ora surgidas da pré-história do freudismo, ora de uma concepção ocultista do corpo e da mente: magnetismo, sofrologia, naturopatia, iridologia, auriculoterapia, energética transpessoal, sugestologia, mediunidade etc. Ao contrário do que se poderia supor, essas práticas seduzem mais a classe média funcionários, profissionais liberais e executivos — do que os meios populares, ainda apegados, apesar da precariedade da vida social, a uma concepção republicana da medicina científica.
Essas práticas têm como denominador comum o oferecimento de uma crença e portanto, de uma ilusão de cura — a pessoas mais abastadas, mais desestabilizadas pela crise econômica, e que ora se sentem vítimas de uma tecnologia médica demasiadamente distanciada de seu sofrimento, ora vítimas da impotência real da medicina para curar certos distúrbios funcionais. Assim é que L’Expres? publicou uma pesquisa que revela que 25% dos franceses passaram a buscar na reencarnação e na crença em vidas anteriores uma solução para seus problemas existenciais.
A sociedade democrática moderna quer banir de seu horizonte a realidade do infortúnio, da morte e da violência, ao mesmo tempo procurando integrar num sistema único as diferenças e as resistências. Em nome da globalização e do sucesso econômico, ela tem tentado abolir a ideia de conflito social. Do mesmo modo, tende a criminalizar as revoluções e a retirar o heroísmo da guerra, a fim de substituir a política pela ética e o julgamento histórico pela sanção judicial. Assim, ela passou da era do confronto para a era da evitação, e do culto da glória para a revalorização dos covardes. Hoje em dia, não é chocante preferir Vichy à Resistência ou transformar os heróis em traidores, como se fez recentemente a propósito de Jean Moulin ou de Lucie e Raymond Aubrac. Nunca se celebrou tanto o dever da memória, nunca houve tanta preocupação com a Shoah e o extermínio dos judeus e, no entanto, nunca a revisão da história foi tão longe.
Daí uma concepção da norma e da patologia que repousa num princípio intangível: todo indivíduo tem o direito e, portanto, o dever de não mais manifestar seu sofrimento, de não mais se entusiasmar com o menor ideal que não seja o do pacifismo ou o da moral humanitária. Em consequência disso, o ódio ao outro tornou-se sub-reptício, perverso e ainda mais temível, por assumir a máscara da dedicação à vítima. Se o ódio pelo outro é, inicialmente, o ódio a si mesmo, ele repousa, como todo masoquismo, na negação imaginária da alteridade. O outro passa então a ser sempre uma vítima, e é por isso que se gera a intolerância, pela vontade de instaurar no outro a coerência soberana de um eu narcísico, cujo ideal seria destruí-lo antes mesmo que ele pudesse existir.
Posto que a neurobiologia parece afirmar que todos os distúrbios psíquicos estão ligados a uma anomalia do funcionamento das células nervosas, e já que existe o medicamento adequado, por que haveríamos de nos preocupar? Agora já não se trata de entrar em luta com o mundo, mas de evitar o litígio, aplicando uma estratégia de normalização. Não surpreende, portanto, que a infelicidade que fingimos exorcizar retorne de maneira fulminante no campo das relações sociais e afetivas: recurso ao irracional, culto das pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez etc. A violência da calmaria, às vezes, é mais terrível do que a travessia das tempestades.
Forma atenuada da antiga melancolia, a depressão domina a subjetividade contemporânea, tal como a histeria do fim do século XIX imperava em Viena através de Anna O., a famosa paciente de Joseph Breuer, ou em Paris com Augustine, a célebre louca de Charcot na Salpêtrière. Às vésperas do terceiro milênio, a depressão tornou-se a epidemia psíquica das sociedades democráticas, ao mesmo tempo que se multiplicam os tratamentos para oferecer a cada consumidor uma solução honrosa. É claro que a histeria não desapareceu, porém ela é cada vez mais vivida e tratada como uma depressão. Ora, essa substituição de um paradigma por outro não é inocente.
A substituição é acompanhada, com efeito, por uma valorização dos processos psicológicos de normalização, em detrimento das diferentes formas de exploração do inconsciente. Tratado como uma depressão, o conflito neurótico contemporâneo parece já não decorrer de nenhuma causalidade psíquica oriunda do inconsciente.
No entanto, o inconsciente ressurge através do corpo, opondo uma forte resistência às disciplinas e às práticas que visam repeli-lo. Daí o relativo fracasso das terapias que proliferam. Por mais que estas se debrucem com compaixão sobre a cabeceira do sujeito depressivo, não conseguem curá-lo nem apreender as verdadeiras causas de seu tormento.
Só fazem melhorar seu estado, deixando-o esperar por dias melhores: “Os deprimidos sofrem por todos os lados”, escreve o reumatologista Marcel Francis Kahn, “isso é sabido. Mas o que não se sabe tão bem é que também vemos síndromes de conversão tão espetaculares quanto as observadas por Charcot e Freud. A histeria sempre pôs em primeiro plano o aparelho locomotor. Ficamos impressionados ao ver como se pode esquecê-la. E também o quanto o fato de evocá-la desperta, no pessoal médico e não médico, inquietação, recusa ou mesmo agressividade em relação ao paciente, assim como por parte daquele ou daquela que recebe esse diagnóstico.”
Sabemos que a invenção freudiana de uma nova imagem da psique pressupôs a existência de um sujeito capaz de internalizar as proibições. Imerso no inconsciente e dilacerado por uma consciência pesada, esse sujeito, entregue a suas pulsões pela morte de Deus, está sempre em guerra consigo mesmo. Daí decorre a concepção freudiana da neurose, centrada na discórdia, na angústia, na culpa Kuhn, La Structure des révolutions scientiflques (Chicago, 1962), Paris, Flammarion, 1970.
Ora, é essa ideia da subjetividade, tão característica do advento das sociedades democráticas, elas próprias baseadas no confronto permanente entre o mesmo e o outro, que tende a se apagar da organização mental contemporânea, em prol da noção psicológica de personalidade depressiva.
Saída da neurastenia, noção abandonada por Freud, e da psicastenia descrita por Janet, a depressão não é uma neurose nem uma psicose nem uma melancolia, mas uma entidade nova, que remete a um “estado” pensado em termos de “fadiga”, “déficit” ou “enfraquecimento da personalidade”. O crescente sucesso dessa designação deixa bem claro que as sociedades democráticas do fim do século XX deixaram de privilegiar o conflito como núcleo normativo da formação subjetiva. Em outras palavras, a concepção freudiana de um sujeito do inconsciente, consciente de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte e pela proibição, foi substituída pela concepção mais psicológica de um indivíduo depressivo, que foge de seu inconsciente e está preocupado em retirar de si a essência de todo conflito.
Emancipado das proibições pela igualdade de direitos e pelo nivelamento de condições, o deprimido deste fim de século é herdeiro de uma dependência viciada do mundo. Condenado ao esgotamento pela falta de uma perspectiva revolucionária, ele busca na droga ou na religiosidade, no higienismo ou no culto de um corpo perfeito o ideal de uma felicidade impossível: “Por essa razão”, constata Alain Ehrenberg, “o drogado é hoje a figura simbólica empregada para definir as feições do anti-sujeito. Antigamente, era o louco que ocupava esse lugar. Se a depressão é a história de um sujeito inencontrável, a drogadição é a nostalgia de um sujeito perdido.”
Em vez de combater esse fechamento, que leva à abolição da subjetividade, a sociedade liberal depressiva compraz-se em desenvolver sua lógica. É assim que, atualmente, os consumidores de tabaco, álcool e psicotrópicos são assemelhados a toxicômanos, considerados perigosos para eles mesmos e para a coletividade. Ora, dentre esses novos “doentes”, os tabagistas e os alcoólatras são tratados como deprimidos a quem se receitam psicotrópicos. Mas, que medicamentos do espírito será preciso inventar, no futuro, para tratar da dependência dos que se houverem “curado” de seu alcoolismo, seu tabagismo ou algum outro vício (o sexo, a comida, o esporte etc.), substituindo um abuso por outro?
Imagem de capa: Elisabeth Roudinesco (foto: Léa Crespi/Télérama)
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