EDUCAÇÃO

Desrespeito, cansaço e desvalorização: O que ainda faz um professor resistir?

Por Amanda Mont’Alvão Veloso

Um professor ou uma professora podem ser uma janela para o mundo que se vê, ou além, para o mundo que se deseja construir.

Ainda na infância, intermediados por esses profissionais, experimentamos realidades que não conhecíamos e conhecimentos até então inéditos. Podemos até achar que eram apenas Matemática, Português, História, Filosofia ou Ciências, mas eram vida, em pequenos ou maiores fragmentos. E essa vida era tecida por cada saber que íamos conquistando.

Alguns desses saberes davam seu adeus depois da aprovação do vestibular. Outros ficavam em algum canto da memória, para serem utilizados em um quiz ou em uma entrevista de emprego. Outros tantos magicamente se dissolviam no dia a dia e no repertório de vivências. Passageiros ou permanentes, tais saberes ajudavam a constituir a história singular de cada pessoa.

“O saber da nossa espécie, a humana, não se transmite pela genética, mas sim pela linguagem. Os professores são especialistas nesta transmissão”, sentencia Alfredo Jerusalinsky, psicanalista e doutor em Psicologia da Educação e Desenvolvimento Humano.

Nossos especialistas, infelizmente, andam matando leões diariamente. A profissão é cada vez mais desvalorizada; a remuneração dos professores é muito abaixo do básico e impede a reciclagem de experiências, como comprar livros ou fazer um curso; a instabilidade no emprego é uma realidade, assim como a carga horária exaustiva; a infraestrutura é precária ou deixa a desejar.

Na sala de aula, os desafios aumentam. A autoridade é questionada por pais e alunos; a indisciplina comparece com uma ofensa verbal ou mesmo uma agressão física; alunos desinteressados tentam ser avivados por professores desestimulados; a cobrança por desempenho dita os caminhos do que deve ser considerado educação.

Reflexo desses desafios são os afastamentos do trabalho por algum transtorno mental ou problema de comportamento, responsáveis por 27,8% dos casos. Só na rede estadual de ensino de São Paulo, 327 licenças médicas são dadas por dia a docentes, segundo reportagem do Estado de S. Paulo a partir de dados da Lei de Acesso à Informação. Em 2015, foram concedidos cerca de 136 mil afastamentos médicos.

“Os professores estão entre os profissionais que mais se afastam do trabalho por transtornos mentais. O estresse contínuo, o desgaste na relação com alunos e os desafios de manter a atenção em crianças cada vez mais dispersas sobrecarregam os professores, colocando-os em sofrimento frequente, e adoecendo às vezes”, afirma o psiquiatra Daniel Barros, professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.

“Não é fácil para um professor admitir que sofre ou que não tem paz em sua prática. Parece que paira sobre ele a marca de uma abnegada coragem aliada a uma sabedoria terapêutica que não lhe permite fracassar”, desabafa Patrizia Bergamaschi, professora de Língua Portuguesa e Literatura há 33 anos. Ela acrescenta:

“Todavia, admito que o que mais me tira o sossego é o fato de que os alunos leem pouco e que realmente não se incomodam com isso. Já o que me causa sofrimento é o desrespeito, a mentira, o pouco caso diante do conhecimento humano. O professor se tornou objeto de críticas mesquinhas por parte dos alunos e também das famílias.”

O papel em um novo cenário

A diferença entre o conhecimento e o saber se torna fundamental para destacar o valor da profissão. Os aparelhos eletrônicos são capazes de transmitir conhecimentos, mas não saberes, pondera Jerusalinsky.

“Uma coisa é transmitir informação, outra muito diferente é transmitir experiência. Essa última só é transmissível por outros humanos, geralmente os professores e os pais. Quando se sobrevaloriza a informação (via informática, por exemplo), se desautorizam os verdadeiros responsáveis pela educação: os pais e os professores.”
A revolução tecnológica e da comunicação, portanto, impõe aos educadores um desafio além dos já existentes: o de saber o seu lugar neste novo cenário, explica Raquel Franzim, assessora pedagógica do Instituto Alana, que gere o programa Escolas Transformadoras:

“Qual o papel do professor em uma sociedade com acesso ao conhecimento facilitado por tantos recursos, mas ainda desigual?”
“Creio que o papel do professor irá se transformar, assim como o dos médicos e dos jornalistas”, afirma Barros. “Cada vez mais não existem detentores do saber, mas gerenciadores da informação. O papel dos professores passará a ser o de ensinar as pessoas a lidar com os dados, extraindo daí informações. Parte do estresse que eles enfrentam hoje é justamente por conta de estarmos no meio dessa transição.”

Para que serve a escola

Segundo Franzim, pensar o papel do professor demonstra a urgência de se refletir sobre o sentido da educação e da escola. “A escola é o espaço privilegiado para transformações pessoais, coletivas, sociais e culturais ocorrerem. E os estudantes são os grandes protagonistas de todo o processo, em parceria com os professores e os outros atores.”

“Não dá para entender a escola como um lugar para onde se vai, exclusivamente, aprender determinados conteúdos, sem nenhuma relação com a vida, mesmo porque esses conteúdos, por si só, são insuficientes para os desafios que enfrentamos em nossa sociedade e na formação humana.”

Para Caroline Ferrari, professora de História há 10 anos, a instituição escolar necessita urgentemente de uma reformulação em seus métodos e estruturas.

 

“A escola ainda segue padrões tradicionais referentes ao século 19, apoiando-se em instrumentos pouco chamativos e eficazes para o desenvolvimento e concentração do aluno contemporâneo. Como esperar que uma instituição tão sólida em sua disposição, com paredes que sufocam a possibilidade de uma criança ver o mundo e carteiras que as isolam de seu convívio social com os demais colegas e até com a figura do próprio professor, possa efetivamente estar a serviço do desenvolvimento humano e criativo de um indivíduo?”

Ora negligenciada nos investimentos, ora tratada como objeto de consumo, em que o aluno é cliente, a escola acaba caindo em uma lógica mercantilista e, assim, se desviando de seu propósito básico, que é o de educar. Bergamaschi lamenta essa realidade:

“Vemos que a escolha de uma escola pela família acaba, em muitos casos, sendo motivada pelo status social que sugere e não pelo projeto educativo que estabelece. Nessa relação cliente/fornecedor, o cliente exige que o fornecedor corresponda a seus desejos e é o que se vê muitas vezes: se meu filho me pressiona, eu pressiono a escola e se não sou atendido, mudo de escola. O fato de pagar a escola parece dar a algumas pessoas o direito de querer mandar nela.”

Segundo Jerusalinsky, o “capitalismo selvagem” transforma tudo em mercadoria. “A educação não podia ser a exceção”, afirma:

“O núcleo da educação reside no valor da palavra. Quando ela se transforma em mercadoria, perde seu poder de regular as relações sociais. Em lugar de ser elo de enlace, ela passa a ser ferramenta de controle e opressão.”
Para Ferrari, nesse contexto não há espaço algum para acolher o sofrimento do professor. A ele é reservada a solidão.

“Alguém deve ser culpabilizado pela notória decadência da educação. O professor cumpre um papel muito diferente de sua função de educador. Cumpre a função de ser o responsável direto pelo não desenvolvimento educacional. Mas e aquele professor que consegue atingir o seu aluno e desenvolver um trabalho coletivo com seus alunos? Esse professor cai na cilada de ser usado para culpar os outros professores que não atingem sua meta de trabalho, além, claro, de ser rechaçado pelos seus próprios colegas por ter conseguido fugir do peso de uma lógica tradicional. Ser professor é um lugar solitário. Ser um professor com forças para lutar contra um sistema é um lugar mais solitário ainda.”
Resistência e persistência

Em meio a tanta falta de perspectiva, a resistência se mostra imperativa. “Os professores resistem, embandeirados na letra contra a barbárie”, declara Jerusalinsky.

A professora Patrizia Bergamaschi enxerga revolução em seu ofício:

“Dizem por aí que ninguém se torna professor, mas nasce com esse vírus. Acho mesmo que nasci para ser professora, para ficar na retaguarda e empurrar a moçada para frente, para acender lamparinas para que os alunos as transformem em fogueiras. Acredito que um país só progride pela educação de seu povo: a escola é a verdadeira revolução.”
Para a professora Caroline Ferrari, são os alunos que a fazem persistir:

“Quando um aluno sorri para mim por eu tê-lo ajudado com alguma dificuldade, seja ela qual for, eu fiz parte de sua história e contribuí para que este conseguisse enxergar o seu lugar no mundo. Afinal, que mais pode ser um professor senão aquele que empresta o seu olhar para que o outro possa construir o seu olhar também?”

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST

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