Por Renan Miguel Albanezi
Discurso de ódio pode ser definido como o discurso que visa a promoção do ódio e incitação à discriminação, hostilidade e violência contra uma pessoa ou grupo em virtude de raça, religião, nacionalidade, orientação sexual, gênero, condição física ou qualquer outra característica dessa pessoa ou grupo[1].
Sendo assim, tal discurso tem sido uma das principais influências para que haja preconceito, perseguição, insultos e privação de direitos humanos a diversos indivíduos e grupos constituintes da sociedade, dentre tantos, principalmente os negros, os LGBTs e as mulheres. Acrescido a isso, está o fato de que, muitas vezes, crimes contra a humanidade são precedidos por discurso de ódio.
É dito que o discurso de ódio fere o direito de liberdade de expressão. No entanto, tal direito não se difere de nenhum outro, como o da imagem e honra, o que permite que você possa dizer o que quiser, mas assumindo o risco de ser responsabilizado pelo que disse se de alguma forma o que foi dito interferir em qualquer outro direito de outrem; em poucas palavras, ensinadas pela comunidade verbal: “seu direito acaba onde o meu começa”.
Não há, no Brasil, uma legislação específica que contemple o discurso de ódio, no entanto, a Constituição de 88[2] estabelece, em seu Art. 3º, inciso IV, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, podendo criminalizar, com privação de liberdade ou multas, atos que de alguma forma firam esse bem comum.
O Brasil parece ser um país que não está realmente livre do racismo, LGBTfobia, misoginia, machismo e outros padrões comportamentais que podem estar diretamente relacionados com tais discursos. Dessa forma, o presente texto busca também entender, ainda que de maneira superficial, alguns pressupostos do comportamento verbal que podem influenciar direta ou indiretamente a ocorrência de atitudes criminosas embasadas no preconceito e na discriminação.
Catania (1999) afirma que na medida em que a comunidade verbal estabelece certas contingências para que haja correspondência entre o que é dito e o que é feito, podemos modificar o comportamento não verbal não apenas por instrução, mas pela modelagem do que é dito sobre tal comportamento. Isso quer dizer que podemos modificar o comportamento não só com base em instruções diretas, mas por meio da alteração do comportamento verbal em si.
Tal inferência nos faz pensar que se pode induzir e persuadir alguém a se comportar com relação a si mesmo e aos outros pela modelagem do que ele diz sobre si mesmo e sobre os outros. Pesquisas diversas (Hübner, 2003; Faleiros & Hübner, 2007; Hübner, Austin & Miguel, 2008; Gomes, Lovo, Callonere & Hübner, 2011; Sheyab, Pritchard & Malady, 2014) nos mostram que tais pressupostos podem não só ser verdadeiros como também demonstram que contingências verbais podem ser, muitas vezes, tão fortes ou até mais poderosas do que as contingências não verbais cujas quais o sujeito vive.
O “segredo” que faz com que se persuada alguém a se comportar de determinada maneira são os autoclíticos. Operantes de segunda ordem, por dependerem de ou se fundamentarem outros operantes verbais, (Speckman, Greer & Rivera-Valdes, 2012), como o tato, que é o operante pelo qual conseguimos falar sobre o mundo não verbal.
Os autoclíticos têm como principal função colocar o ouvinte sob maior controle daquilo que o falante diz. Mais incisivo, Smith (1983) afirma que o autoclítico precisa modificar o comportamento do ouvinte para ser considerado um autoclítico.
Dentre os diversos tipos desse operante de segunda ordem, destacam-se os autoclíticos qualificadores na alteração do comportamento não verbal, por modificarem a intensidade ou a direção do comportamento do ouvinte, negando ou fazendo alguma asserção com relação ao tato que o acompanha (Borloti & Hübner, 2010).
Três das pesquisas citadas[3], duas sendo originais (Hübner, 2003; Hübner et al, 2008) e uma sendo uma replicação (Sheyab et al, 2014), tiveram como comportamento alvo a leitura. Após sessões de modelagem do comportamento verbal do participante, modelando-os a dizer “ler é gostoso”, “ler é bom”, “ler é importante”, todos aumentavam a taxa de resposta de ler, o que nos evidencia o poder do comportamento verbal sobre o não verbal.
Modificar o que uma pessoa diz sobre uma coisa pode modificar a forma como ela age em relação a essa coisa. Modelar discursos de ódio por meio da mídia e de cargos considerados de autoridade (como cargos públicos, políticos, religiosos, etc) e quaisquer outros que sejam considerados “formadores de opinião” pode ser o mínimo necessário para que se odeie o objeto alvo do discurso.
Quando pensamos por esse lado, ainda mais entendendo que grande parte do que é cultural deriva também do comportamento verbal (Skinner, 1953), não se torna mais exagero atribuir o discurso de ódio como uma das variáveis que causam a morte de determinadas pessoas e o extermínio de determinados grupos.
Olhar para atitudes terroristas como do Estado Islâmico que, por meio de discursos de ódio associados aos pressupostos de uma agência religiosa e aos reforçadores atrasados da vida pós-morte persuadem um indivíduo, dentre outras coisas, se explodir para matar outrem fazendo-o acreditar que tal ato é bom, desejável e, sobretudo, necessário, temos outra evidência de como a modelagem do comportamento verbal torna-se um fator importante na compreensão de comportamentos terroristas, suicidas, homicidas etc.
É dito que os efeitos da persuasão podem ser transitórios e momentâneos (Hübner, 2013), mas não é preciso mais que um momento para que consequências irreversíveis se sigam a uma atitude tomada sob controle de um verbal modificado. E, se houver tempo e disposição de qualquer tipo de agência controladora para manter tais comportamentos ocorrendo, talvez esse efeito possa ser menos transitório do que se concluiu até então.
As evidências históricas de que pessoas com grande autoridade podem modificar o comportamento não verbal por meio da modificação do verbal de seus seguidores estão aí: Sidarta Gautama, Adolf Hitler, Dalai Lama, Osama Bin Laden, entre outros, modificaram a forma como pessoas se comportam não verbalmente por meio do estabelecimento de doutrinas, máximas, regras, instruções, persuasão e outros aspectos que são, por excelência, verbais.
Hoje, no Brasil, vive-se um momento político conturbado em que o discurso de ódio pode ser efetivamente perigoso e pode vir de todos os lados. A modificação do comportamento não verbal por meio da modelagem do comportamento verbal pode ser silenciosa, rastejante e praticamente imperceptível. Criticar tudo que se ouve e se lê, ponderar, entender os princípios comportamentais que regem tal discurso e nossa postura ante tais fenômenos talvez seja crucial para que não caiamos em ódio e intolerância gratuitos e, em última instância, cometamos crimes e atos ilícitos.
O discurso de ódio parece ferir quase todos (senão todos) os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos[4], servindo como munição para destruir aspetos culturais e interferir na sobrevivência dos grupos. O que se pretendeu com tal texto foi entender o poder do comportamento verbal sobre o comportamento não verbal, ainda que a nível conceitual; isso pode nos dar luz para entender que os efeitos de parlamentares enaltecerem possíveis criminosos em sessão da Câmara e de atentados como o da Boate Pulse (em Orlando, nos EUA) não são “mimimi” e não dependem de posições e ideologias políticas.
Imagem de capa: Shutterstock/ImageFlow
TEXTO ORIGINAL DE COMPORTE-SE
[1] Acessado em <http://www.artigo19.org/centro/files/discurso_odio.pdf>
[2] Acessado em <http://www.amperj.org.br/store/legislacao/constituicao/crfb.pdf>
[3] Pela questão da limitação do tamanho do texto, recomenda-se a leitura das pesquisas na íntegra para melhor compreensão.
[4] Acessado em <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf
Referências
Borloti, E.; Hübner, M. M. C. (2010) O Autoclítico e a Construção Verbal. In Hübner, M. M. C.; Garcia, M. R.; Abreu, P. R.; Cillo, E. N. P.; Faleiros, P. B. (orgs). Sobre Comportamento e Cognição: Análise Experimental do Comportamento, Cultura Questões Conceituais e Filosóficas. Santo André: ESETec Editores Associados.
Catania, A. C. (1999) Aprendizagem – Comportamento, Linguagem e Cognição. 4 ed. Porto Alegre: Artmed.
Faleiros, T. C.; Hübner, M. M. C. (2007) Efeito do reforçamento diferencial de resposta verbal referente à leitura sobre a duração da resposta de ler. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. v. IX, n. 2, pp. 307-316.
Gomes, F.; Lovo, L. A.; Rolim, S.; Callonere, A.; Hübner, M. M. C. (2011) O efeito de histórias contextualizadas e descontextualizadas com autoclíticos sobre o comportamento não verbal. Trabalho não publicado, apresentado à disciplina de Comportamento e Aprendizagem. Departamento de Psicologia Experimental, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, primeiro semestre de 2011. Fonte: Tese de Livre Docência da prof.ª Dr.ª Maria Martha Costa Hübner.
Hübner, M. M. C. (2003) Comportamento verbal e não-verbal: efeito do reforçamento de tactos com autoclíticos referentes ao ler sobre o tempo dispendido com leitura. In Sadi, H. M.; Castro, N. M. S. (orgs). Ciência do Comportamento: Conhecer e Avançar. Vol. 3. Santo André: ESETec Editores Associados.
Hübner, M. M. C.; Austin, J; Miguel, C. F. (2008) The Effects of Praising Qulifying Autoclitics on the Frequency of Reading. The Analysis of Verbal Behavior. v. 24, n. 1, pp. 55-62.
Hübner, M. M. C. (2013) Comportamento verbal de ordem superior: análise teórico-empírica de possíveis efeitos de autoclíticos sobre o comportamento não verbal. Tese de Livre Docência apresentada ao Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP.
Sheyab, M.; Pritchard, J.; Malady, M. (2014) An Extension of the Effects of Praising Qualifying Autoclitics on the Frequency of Reading. The Analysis of Verbal Behavior. v. 30, n. 1, pp. 141-147.
Skinner, B. F. (1953) Science and Human Behavior. New York: The Free Press.
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