Enquanto vivermos, acumularemos saudades de momentos, de pessoas queridas, de empregos, de comidas, cores, sabores, do que éramos, dos sonhos amortecidos pelo peso do cotidiano. Será necessário aprendermos a conviver com a falta do que e de quem se foi, ao longo de nossas vidas, transformando a dor da saudade em combustível aos recomeços que teremos pela frente. Agora, junto mais uma saudade à minha coleção: a da Kate, minha gata.
Há pouco mais de um ano, apareceu uma gatinha em meu quintal. Eu nunca tivera gatos, somente cães a minha vida toda. Deixei-a na minha garagem, enquanto procurava por um possível interessado em ficar com ela, mas ele nunca apareceu. E ela foi ficando, ficando e ficou. Estranhei, desde o início, o jeito de um gato, sua autossuficiência, seu olhar de altivez, sua calma, enquanto tudo à volta pode estar fervendo. E um comportamento que me fazia sofrer era a liberdade de ir e vir que ela possuía. Saía e voltava quando quisesse, bem como ficava na rua o tempo que fosse.
Uma semana antes de ser atropelada, ela saiu de manhã e não voltou o dia todo. Cheguei do trabalho e ela não aparecera, o que me deixou nervoso – ela nunca ficara mais de duas horas na rua. Coloquei sua foto no Facebook, numa página de proteção aos animais aqui de minha cidade, totalmente desolado. Saí a pé, de carro, pelas redondezas, à sua procura, e nada. Somente lá pelas nove da noite, ela apareceu, como se nada tivesse acontecido, e foi comer sua ração calmamente. Uma semana mais tarde, ela morreria atropelada.
Já perdi muitos cachorros ao longo da vida, mas perder a Kate me arrasou de uma forma cruel. Porque a gente lutou junto na construção de nosso amor: ela lutava de lá para que eu a amasse e, no início, eu lutava daqui para não amá-la. Ela venceu.
Dizem que o gato nos escolhe e a Kate me escolheu desde o primeiro dia. Eu a encontrei, enrolei-a num paninho e arranjei-lhe uma almofada. Dizem que gatos têm uma missão junto aos que amam, pois energizam os ambientes. Seu amor me confortou nesse um ano e meio, em que muitas dificuldades enfrentei. Então, num dos dias mais felizes de minha vida, em que meu filho se matriculou na faculdade, ela percebeu que a sua missão acabara e partiu.
Partiu pois percebeu que estávamos felizes e a sua partida não nos tiraria qualquer esperança. Partiu quando percebeu que conseguiríamos continuar sem ela. Kate deixou muito amor, muita lealdade e momentos que preencherão esse vazio que agora me consome.
Minha gata me ensinou muita coisa, principalmente em se tratando de relacionamentos e amor. Ela me amava e deixava claro isso quando dormia sob minha barriga, quando se esfregava em forma de um oito entre minhas pernas enquanto eu escovava os dentes, quando lambia minha mão com sua língua crespa. Ela me amava e sempre voltava: ela queria que eu entendesse que ela voltaria para mim. Todo dia. Para sempre. Ela voltaria. Ela acabou, um dia, não voltando fisicamente, mas ela voltou, sim, afinal, ela prometera que voltaria. Voltou porque, na verdade, nunca saiu do meu coração. Ela continua aqui dentro de mim, de onde nunca mais sairá.
Com ela aprendi tanto, inclusive que a gente se despede, todos os dias, de quem ama, nos gestos, nos dizeres, nos olhares, no carinho. O adeus está diluído em cada parte de nossos dias. E a Kate despediu-se lindamente de mim. Ela veio rápido e foi rápido. Na última semana juntos, ela vinha toda noite pular na minha barriga enquanto eu via televisão. Na última madrugada juntos, ela dormiu encostada na minha perna. Naquela última vez em que eu a vi viva, ela saiu e, parada na janela, olhou pra mim, encostando o focinho no meu nariz.
Levarei para sempre essa imagem. Ela foi tão boa, que sabia que não ficaria muito tempo conosco e se despediu aos poucos. Despediu-se quando quase morreu acidentada meses atrás e resistiu bravamente; despediu-se quando sumiu, uma semana antes de sua morte; despediu-se inspirando um texto meu publicado um dia antes de ela morrer e que ficará para sempre no mundo, e despediu-se na madrugada, dormindo comigo. Acho que ela começou a ir embora depois já daquele primeiro acidente. Ela sabia que estava morrendo, mas foi forte e continuou por mim, até não dar mais, até sua missão ser bem sucedida.
Outra lição que ela me deixou foi que, por incrível que pareça, a gente acaba sendo julgado até na dor, no sofrimento. Mas a gente não controla a dor e o sofrimento. O sentimento vem lá de não sei onde e transborda, mesmo que queiramos, a todo custo, calá-lo. E cada um sente de um jeito, não significando que sofre mais quem chora demais ou de menos. Por isso, não há coerência em se comparar ou se medir dor. É maldade menosprezar quem sofre, seja por um ente querido, por um animal, por um passarinho, seja por um peixinho dourado.
A morte traz raiva, dor e revolta, seja a morte de quem for. Dor não é para ser comparada, julgada, medida. Dor é para ser consolada. O tempo de luto de cada um diz respeito somente a ele. A dor há de amenizar, mas a tempestade que atravessamos, enquanto dói a alma, merece, no mínimo, respeito.
Há oito anos, minha mãe partia para sua próxima jornada. E, por mais que eu tenha fé, que eu creia em nosso reencontro, que eu racionalize esse sentimento todo e me equilibre por aqui sem sua presença, um vazio ainda me acompanha por dentro. Não adianta; em certos momentos, a gente quer ouvir a voz, abraçar, brigar que seja, sentir o cheiro daquela pessoa.
E a dor pela partida da minha gatinha Kate agora se junta à minha coleção de saudades doídas. A morte é a certeza mais óbvia de nossas vidas, mas também a dor mais duradoura dentre todas. E, irônico consolo, é suportável, porque a gente tem que continuar. Porque é isso que quem partiu espera de quem fica. E eles aguardam ansiosamente por nós – são lindos esses reencontros. Tem todo dia festa no céu.
Sim, descubro, às duras penas, que somos mais fortes do que imaginamos. Amor verdadeiro faz isso com a gente. Só o amor. Sempre o amor.
*Dedicado à Cleide e à Kate