por Katia A. Kühn Chedid
Escola, esporte e um sem fim de atividades extracurriculares. Nem bem o ano inicia, a agenda de nossos filhos e alunos já está lotada! Família e escola se empenham em oferecer o maior número de oportunidades para o desenvolvimento de potenciais, atendendo às expectativas dos adultos. Antes de nos aprofundarmos no tema da agenda infantil, é interessante pensar em como o tempo era representado na Grécia antiga: pela figura de dois deuses, Cronos e Kairós.
Cronos era um velho cruel e tirano que controlava o tempo desde o nascimento até a morte. Era um ditador da quantidade de coisas que deviam ser feitas durante o dia e cuidava daquele tempo que parece nunca ser suficiente, que preocupa, escraviza e estressa. Kairós, ao contrário, era um jovem ágil que corria rapidamente, era impossível segurá-lo ou trazê-lo de volta; ele simbolizava a oportunidade, a ideia de que não havia uma segunda chance de viver esse tempo!
Uma infância produtiva deveria estar repleta de Kairós! Deveria transbordar de momentos que fluem e marcam o resto da vida, de tempo vivido que corre, que não volta, de tempo para brincar, usar a criatividade sem barreiras, usar a imaginação, de pintar e cantar. A infância deveria conter brincadeiras de faz de conta, cantigas de roda, joelhos ralados, roupa suja, além de muitas ocasiões envoltas em fantasias!
Hoje, percebemos tanto nas famílias como nas escolas a necessidade de preencher com atividades o tempo da criança, enchendo sua vida de Cronos, de horários, de agendamentos. Como disse um educador que conheço, “nossos alunos e filhos estão a menos tempo nesse planeta” e por isso, nós, os adultos, devemos mostrar como fazer, como aproveitar e como viver o tempo que temos por aqui.
“TRABALHO DA INFÂNCIA”
Sabemos que pessoas criativas fazem mais associações entre as informações. Todos concordamos que a criatividade é essencial para produzir ideias originais, inesperadas, e gerar adaptações úteis na resolução de problemas. A ciência mostra que não só os seres humanos brincam, mas os animais de todas as espécies fazem isso. Brincar seria um “treino” para a vida, imaginar algumas situações e vivê-las de modo fantasioso nos ajudaria a enfrentá-las e a resolver situações-problema. Segundo a Unesco, “quando uma criança experimenta diferentes maneiras de utilização dos objetos, como, por exemplo, um cabo de vassoura tornando-se um cavalo, ela evolui da imitação até o uso criativo de objetos à medida que busca expressar suas ideias de como vê o mundo a que pertence”.
Brincar, para os neurocientistas, é parte do desenvolvimento humano. Em seu livro O cérebro e a inteligência emocional: novas perspectivas (Objetiva, 2012), o psicólogo Daniel Goleman sugere que, por meio do brincar – e em estreita interação com o ambiente e seus semelhantes –, novos caminhos neurais se formam e distintas áreas do cérebro se tornam interconectadas. A neurociência já mostrou que o brincar tem papel essencial em vários processos cerebrais; ao proporcionar muitas e variadas experiências, provocaria a formação e consolidação de importantes circuitos neurais, tornando interligadas áreas do cérebro relacionadas a distintas competências ou conjuntos de habilidades.
Pesquisadores como Robert Fagen, autor de Animal play behavior (Comportamento lúdico em animais, sem tradução para o português), acreditam que o brincar tenha valor adaptativo, “uma vez que a atividade envolve riscos para a sobrevivência e desperdício energético para indivíduos em crescimento”, o que acontece também com os seres humanos. Muitos já escreveram sobre o brincar, entre eles Jean Piaget, que afirmava que “brincar é o trabalho da infância” e também que o “brincar livre e o brincar dirigido são essenciais para o desenvolvimento de habilidades acadêmicas”.
As psicólogas Kathryn Hirsh-Pasek, da Universidade Temple, e Roberta Golinkoff, da Universidade de Delaware, realizaram uma pesquisa para saber qual dos dois tipos de brincadeira, a dirigida ou a livre, promovia mais aprendizagem, e entre muitas reflexões fizeram algumas constatações importantes, baseadas em vários autores: “O brincar livre e o brincar dirigido são igualmente importantes para promover competência social e confiança, assim como autorregulação ou capacidade da criança para controlar seu próprio comportamento e suas emoções”.
Em artigo publicado on-line na Encyclopedia on early childhood development, escreveram que no “brincar livre, a criança aprende a negociar com os colegas, a esperar sua vez e a gerenciar-se e gerenciar os demais”. Chegaram à seguinte conclusão: “O brincar livre e o brincar dirigido oferecem um forte apoio para a aprendizagem acadêmica e social. De fato, comparações entre crianças em idade pré-escolar que utilizam abordagens lúdicas, centradas na criança, e entre aquelas que participam de abordagens menos lúdicas, mais orientadas pelo professor, revelam que o primeiro grupo apresenta melhores resultados em testes de leitura, linguagem, escrita e matemática.
Ambientes mais envolventes e interessantes para crianças favorecem o aprendizado no ensino fundamental”. Além disso, as autoras surpreenderam-se com o fato de as escolas terem diminuído seu tempo de brincar livre, de recreio ou intervalo, e também com a diminuição em mais de 50% do tempo que as crianças tinham para atividades ao ar livre em 1997 em comparação com o que têm agora.
Em pesquisa recente publicada no The Journal of American Medical Association, pesquisadores concluem que, no período de aquisição de linguagem, “(…) brincadeiras com brinquedos eletrônicos estão associadas à diminuição da quantidade e qualidade da linguagem adquirida em comparação com o brincar com livros ou brinquedos tradicionais. Para promover o desenvolvimento precoce da linguagem, brincar com brinquedos eletrônicos deve ser desencorajado. Os brinquedos tradicionais podem ser uma alternativa valiosa para o tempo que a criança tem para brincar, assim como a leitura de um livro feita por um adulto”.
A Academia Americana de Pediatria tem reiterado a recomendação de que as crianças não deveriam ser expostas a nenhuma mídia eletrônica antes dos 2 anos de idade e utiliza o seguinte argumento: “O cérebro da criança se desenvolve rapidamente nesses primeiros anos e crianças pequenas aprendem mais interagindo com pessoas do que com telas”. Por isso, mesmo servindo de “tranquilizante” para as crianças, vídeos e jogos não deveriam ser utilizados antes dos 2 anos, principalmente durante as refeições, nem como alternativa preferencial quando outro ser humano pode interagir com os pequenos. Ensiná-los a se acalmar e a comer com atenção focada dá trabalho e estamos optando pela distração, não pelo aprendizado.
Ainda de acordo com a Academia Americana de Pediatria, crianças entre 8 e 10 anos têm passado, em média, oito horas diárias em contato com mídias eletrônicas, o que causa efeitos negativos no comportamento, na saúde e no desempenho escolar. A recomendação é que crianças e adolescentes não passem mais de duas horas diárias em contato com essas mídias.
ESTRESSE E ANSIEDADE
O psicólogo educacional Anthony Pellegrini, da Universidade de Minessota, identificou: “Crianças do ensino fundamental que brincam livremente durante o recreio retornam às aulas com a atenção renovada em relação ao seu trabalho. Essas crianças apresentam melhor desempenho em leitura e matemática do que crianças que não participaram do recreio”. Em seu livro Recess: its role in education and development (Recreio: seu papel na educação e desenvolvimento, sem tradução para o português), escreve: “As habilidades conhecidas como funções executivas (atenção, resolução de problemas e inibição), desenvolvidas sob as condições do brincar dirigido, foram relacionadas ao melhor desempenho em matemática e leitura. Brincadeiras físicas foram também associadas com áreas de desenvolvimento do cérebro – lobos frontais – responsáveis pelo controle comportamental e cognitivo”.
Mau humor, irritabilidade, choro, dor de cabeça, de estômago e nas pernas e alergias podem ser sintomas de estresse na infância. Quando a criança fica exposta por muito tempo à liberação de cortisol, que é o hormônio envolvido diretamente na resposta ao estresse, pode apresentar diminuição na capacidade de aprendizagem. A falta de tempo livre para brincar sem ser dirigida pode estressar a criança. O uso excessivo de eletrônicos também pode desencadear estresse e depressão.
Hoje nem mesmo as festas infantis proporcionam tempo para o brincar livre: monitores, mágicos e outras atrações mantêm a criança “ocupada”. Os pais fazem o mesmo com a semana da criança e enchem sua agenda de atividades. Em que momento as crianças farão um graveto virar um avião ou um trem? Quando exercitarão sua imaginação e criatividade? Quando aprenderão?
Muitos pais ficam preocupados em capacitar seus filhos para as demandas de um mercado de trabalho de um futuro que desconhecem. Habilidades como a criatividade, a inteligência emocional e a resolução de problemas com certeza sempre serão um diferencial em qualquer profissional. Nada desenvolve mais essas habilidades na criança do que o lúdico. O brincar sozinho, o brincar com pares, o brincar livre e, às vezes, de forma dirigida serão de grande valia para o futuro e também para o presente de nossos alunos e filhos.
Para a aprendizagem precisamos de desafios e exigências, mas não precisamos de estresse, de sobrecarga. Sabemos que as respostas ao estresse podem variar da agressividade à fuga.
PAUSAS BEM-VINDAS
Uma escola na Inglaterra, nas proximidades de Newcastle, mostrou-se um verdadeiro laboratório de aprendizagem ao testar o mesmo conteúdo em turmas diferentes com métodos completamente distintos. Em uma delas, a matéria do dia foi formatada em sessões de 8 minutos, seguidas de uma pausa de 10 minutos, com brincadeiras que não tinham nada a ver com a disciplina. A retenção do conteúdo foi muito maior nessas turmas do que nas que utilizaram o método comum. Sabemos que o cérebro não fixa a atenção por longos períodos. Quem sabe a resposta não seja a escola ter pequenos períodos de aula intercalados com brincadeiras?
Renata Proetti, da Associação Internacional pelo Brincar (IPA, www.ipabrasil.org), que tem como principal objetivo a defesa do direito do brincar e à cultura, como preconiza o artigo 31 da Convenção sobre os Direitos da Criança, afirma que a exposição infantil às telas (TV, games, computadores, tablets e celulares) está ultrapassando o tolerável e aceitável do ponto de vista da saúde. “Os pais trabalham fora mais e mais horas por dia, fazendo com que as crianças estejam sujeitas às telas como um recurso para o uso do seu tempo livre, que, em tese, deveria ser usado para outras atividades. As grandes cidades, além de muito urbanizadas e com extrema escassez de áreas livres e parques, hoje são vistas como uma zona de risco às crianças devido à violência. Juntos, esses fatores acabam levando as crianças ao sedentarismo, ao abuso da tecnologia. Esse abuso faz com que a criança não brinque.
Quando ela não brinca, deixa, entre outras coisas, de se socializar. A socialização cria mecanismos importantíssimos no desenvolvimento da aprendizagem, como ter empatia. A não socialização pode desencadear mecanismos ligados à violência e à depressão. O índice de crianças deprimidas e fazendo uso de medicações no Brasil nunca foi tão alto. Um dos resultados imediatos da falta do brincar é a depressão infantil; os efeitos disso nesse indivíduo adulto, ainda não sabemos quais serão”.
Em um momento em que adultos pensam em desacelerar, por que não ensinar as crianças a fazer o mesmo? Por que gerar ansiedade desde tão cedo? Não estamos deixando que nossas crianças sintam que a infância é confortável. Achávamos as tardes muito longas na nossa própria infância, mas, com a vida adulta e a agenda lotada, elas começam a passar mais rápido. A maioria das crianças de hoje reclama que o tempo passa rápido e não têm tempo! Como adultos, estamos retirando o tempo de nossos filhos e alunos. Essa responsabilidade é nossa e temos de repensar muito o que proporcionar a essas gerações mais novas. Que qualidade de vida estamos oferecendo a essas gerações de crianças irritadas, agressivas, agitadas, desanimadas, ansiosas? Para quê? Por quê?
VANTAGENS DO ÓCIO
Em 2012, a Academia Americana de Pediatria lançou um documento que chamava atenção para os impactos negativos do estresse tóxico, que trazia prejuízos para a aprendizagem, o comportamento e o desenvolvimento físico e mental. O relatório sugeria que parte dos problemas mentais que ocorriam nos adultos deveria ser vista como transtornos de desenvolvimento com início na infância. Desde 2012, o que foi feito para deter a evolução desses transtornos? Nas escolas encontramos muitas crianças com diagnóstico de depressão, pânico e outros problemas relacionados ao encurtamento da infância.
A brincadeira é antes de tudo um direito, e todas as crianças do mundo brincam, mas nossas expectativas quanto ao futuro e ao desempenho delas estão roubando o que elas têm de mais bonito: a espontaneidade, a fantasia e a imaginação. Segundo Fernanda Marques e Helenise Ebersol, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), “(…) uma criança que não consegue brincar deve ser objeto de preocupação. Disponibilizar espaço e tempo para brincadeiras, portanto, significa contribuir para um desenvolvimento saudável. É importante também que os adultos resgatem sua capacidade de brincar, tornando-se, assim, mais disponíveis para as crianças enquanto parceiros e incentivadores de brincadeiras”.
No livro Einstein teve tempo para brincar (Guarda-Chuva, 2006), Hirsh-Pasek e Golinkoff escrevem que “brincando mais livremente, as crianças terão mais chance de desenvolver a inteligência emocional”. Afirmam ainda que a inteligência emocional vem com a maturidade, não em brinquedos passivos, e muito menos na pressa das atividades diárias. Os pais devem buscá-la na forma como interagem com seus filhos, no respeito construído pelo que eles dizem e fazem.
Para a pesquisadora em desenvolvimento humano Elvira Souza Lima, que está introduzindo em muitas cidades brasileiras o currículo que chama de Viver a Infância, “(…) o tempo para vivenciar essa fase da vida é essencial para a criança. Já sabíamos disso pela antropologia, que revela que brincar faz parte da história da evolução da espécie humana. Hoje, com a neurociência, temos a comprovação de que brincar desenvolve áreas importantes do cérebro, que serão base para aprendizagens futuras. Pelo brincar, a criança se insere na cultura, desenvolve os sistemas expressivos, a empatia e a comunicação humana. O impacto da atividade de brincar no desenvolvimento infantil é maior e mais significativo do que às vezes seguir um ‘currículo’ de cursos e atividades para ocupar o tempo da criança”.
Pesquisadores e educadores concordam com os benefícios do brincar e, principalmente, do brincar livre, que estimula a troca entre os pares e o desenvolvimento de habilidades importantíssimas para a vida. Ao iniciar o ano, vamos procurar deixar espaços livres na agenda de nossas crianças para o brincar! Os gregos sabiam das coisas, sabiam que aquela ideia criativa, o insight, pode fugir rapidinho se não deixamos tempo para Kairós! Nada como o dolce far niente!
TEXTO ORIGINAL DE REVISTA NEURO EDUCAÇÃO
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