Ela preferia ser autêntica, correndo o risco de magoar uns e outros, do que ser legal o tempo todo, ferindo a si mesma

Ela não conhecia o significado da expressão “Epifania”. Seu tempo era escasso; seus hábitos, comuns. Porém, naquela tarde, um tropeção sem importância, enquanto saía do supermercado com as compras nos braços, fez com que enxergasse o mundo e sua própria vida com outra percepção. A nova revelação, que agora vinha à tona com a força perigosa do que não pode mais ser negado, emergia violenta, sem chance de ser reprimida.

À semelhança de Ana, do conto “Amor” de Clarice Lispector, Cassandra também sobrevivia dia a dia à “hora perigosa”: o momento em que todos os afazeres cessavam e ela se encontrava disponível para refletir sobre si mesma, divagando sobre seu momento e os caminhos que percorrera até ali. Porém, nunca ocorrera de, num gesto inesperado, ter uma percepção intuitiva tão forte quanto aquela que experimentava agora, ao tropeçar no meio fio e deixar rolar pelo chão as batatas e limões do jantar de terça feira.

Seus joelhos doíam com a queda, mas era a visão dos limões rolando pelo estacionamento que desacomodavam seus pensamentos, e rompiam sua bolha protetora. A vida a desafiava, e percebia agora que seu desejo de controlar tudo era infundado, uma ilusão para proteger-lhe da própria existência.

A necessidade de uma ordem externa, de algo que aterrasse seus pés ao chão, eximindo-a de bancar o próprio desejo, agora já não tinha tanta importância. Quebraria copos e regras, definiria as próprias leis, e defenderia sua felicidade com a fúria dos que se descobrem tão dignos dela quanto àqueles que gozam a vida sem culpa. Não desejava magoar aqueles que amava, mas, acima de tudo, não se acorrentaria em prol da alegria alheia.

Seria autêntica no querer e no não querer, desafiando o desejo de ser aceita a qualquer custo, rompendo o hábito de agradar aos outros se desagradando, se permitindo oscilar entre o arrebatamento e a renúncia sempre que invadissem sua alma.

O mundo se tornara um novo espanto. Não sabia lidar totalmente com a liberdade que a invadia, mas os limões que corriam para longe de seu alcance a lembravam que a vida a desafiava, com ou sem o seu consentimento. A nova existência doía, mas também inquietava, transformava e empurrava adiante. A serena compreensão dava agora lugar ao prazer intenso de não saber nada. Era uma mulher que acabara de ter uma epifania. E mesmo sem saber o significado da palavra, voltou para casa menos atrelada à terra mas, surpreendentemente, mais consciente de si mesma…

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Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.