COMPORTAMENTO

Em 2017, nossa revolução no mundo pode vir de dentro

Por Amanda Mont’Alvão Veloso

O astro de cinema engajado em causas sociais foi acusado de violência doméstica.

A autora de políticas públicas de inclusão das pessoas com deficiência é uma ativista contra o aborto por conta de suas visões pessoais.

O sensato e conciliador da família declarou seu voto no candidato mais conservador.

O defensor da transparência nas contas do governo foi visto esculachando uma atendente no supermercado.

São situações fictícias, mas inspiradas no contato com a realidade. Com a grande inclinação em separar os sujeitos em certo ou errado, segundo nosso olhar julgador, para onde vai o contraditório de cada ser humano em um ano que não aceitou qualquer tipo de nuance? Como afirmar categoricamente sobre identidades e condutas em meio a tantas maneiras peculiares de estar no mundo?

Basta olhar para nós mesmos para perceber o contraditório – ele existe em nós, o tempo todo, e surge na nossa fala, pensamentos ou atitudes sem aviso prévio. “Nem parecia eu.” Ainda assim, qualquer atitude “fora da curva” se torna o pretexto perfeito para uma separação entre eu e o outro. E que o outro fique bem, bem longe.

“Ninguém precisa ser isso ou aquilo, porque ninguém é só bom ou só mau, do mesmo modo que não existe um lado certo e outro errado. Ou seja, é olhando para si, para as próprias contradições, que podemos valorizar e dar espaço para um outro caminho”, recomenda ao HuffPost Brasil o psicanalista e professor do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) Danilo Marmo.

Em 2016, a polarização ditou nosso olhar. E preocupados que estivemos em separar as pessoas por grupos, panelas, movimentos, bandeiras ou partidos, fomos abrindo mão do diálogo, da escuta do que o outro tem a dizer – sobre qualquer assunto. Como se tudo, absolutamente tudo que o outro pudesse dizer, fosse imprestável. Como se aquela pessoa não pudesse nos afetar positivamente em algum sentido.

Se vem de você, não vou prestar atenção.

Nem vou clicar, que é pra não dar audiência. Mas vou criticar.

Peraí que tenho uma opinião certeira sobre este título absurdo. Nem preciso ler.

“O embate político brasileiro se tornou uma discussão FlaxFlu num domingo de feijoada, onde todo mundo tem razão, ‘meu time é o melhor’ e ninguém escuta ninguém”, lamenta Marmo. Mas nem o maior grau de pessimismo anula a chance de mudança:

“Podemos aprender com este ano, então, que estivemos imaturos nas discussões, ensimesmados no próprio ponto de vista.”

Redes da discórdia?

No 2016 das redes sociais, choveram reclamações, desabafos, julgamentos, acusações e disseminações de notícias sem a preocupação com sua veracidade. Nos tribunais informais do Facebook, não faltaram juízes “capacitados” para qualquer tipo de decisão – que envolvesse o outro, claro.

Para Marmo, talvez o que tenhamos descoberto seja o alcance das mídias sociais, que nos revelaram como cada um pensa.

“Postagens no Facebook adquiriram o status de ‘publicação’, dando a impressão de que qualquer textão bem escrito seria um argumento válido e consistente por si só. Mas a verdade é que muitas vezes são opiniões pessoais, superficiais e emocionais deveras, o que favorece a polarização e paranoia perante o diferente.”
Uma das grandes perdas em 2016 foi a do psiquiatra e psicoterapeuta Flávio Gikovate, que morreu em outubro, aos 73 anos. Com linguagem simples e tom acolhedor, Gikovate falava da complexidade da vida em seus detalhes mais cotidianos, mostrando a importância do cuidado nas relações. Na nota Quando falar é agredir, ele discute algumas consequências de sair falando tudo o que se pensa:

“Sermos honestos e sinceros não nos dá o direito de dizer tudo que pensamos. A franqueza pode ser prejudicial. Por exemplo, se uma pessoa, ao encontrar um amigo de rosto abatido, falar: ‘Puxa, como você está pálido! Até parece doente’, estará sendo sincera, mas tremendamente insensível. A verdade não subtrai o caráter agressivo da afirmação; pelo contrário o acentua. Na prática, acredito que uma boa forma de avaliar uma ação é pelo resultado. Se o efeito for destrutivo, a ação será nociva, independentemente da ‘boa intenção’ daquele que a praticou.”
Diferente, não inimigo

Em 2017, seria bom que nosso olhar para quem está ao nosso redor – seja virtual ou fisicamente – fosse mais afetuoso, ou menos taxativo, com mais espaço para a empatia e para o inusitado de cada um.

Dias difíceis virão, e a solidariedade pode ser um suporte decisivo. Quem imaginaria que, diante da tragédia do voo da Chapecoense, a Colômbia fosse dar ao Brasil e ao mundo uma das maiores lições de compaixão na História recente?

Nossa existência no mundo exige que nos relacionemos com as outras pessoas, participando, cooperando, discutindo, construindo e desconstruindo. Ou seja, fazendo laço de um lado, desfazendo nós de outro.

Para um 2017 mais amistoso, podemos calibrar a paranoia e entender que o outro não é inimigo, sugere Marmo.

“Quem pensa diferente de nós não está errado. Só está diferente. Por que eu preciso convencer o outro? Esse tipo de postura [a exclusão do diferente] empobrece as experiências humanas, enclausura por nossas primeiras identificações na vida e é alienante, pois cria um universo de iguais dentro de uma bolha político-ideológica.”
Uma maneira de acolher a subjetividade do outro é descobrindo nossa própria singularidade e dando espaço para o estrangeiro que existe em cada um de nós, recomenda o psicanalista. Faz um bem danado para nossa saúde mental e para a vida em sociedade.

“Em outras palavras, sendo nem isso nem aquilo; abrindo espaço para nossa própria autenticidade, descobrindo e permitindo nosso traço mais singular, não caindo em massificações maniqueístas.”
Ano tumultuado

Oficialmente, 2016 terá tido 366 dias, mas a impressão é de que transcorreram 983 dias de tretas, zicas, absurdos, palhaçadas, zoeiras, perdas, desencontros, invasões, crises, abusos e conflitos.

O Brasil e o mundo viveram mudanças cujos impactos serão sentidos muito além do tempo atual. Foi um ano de guerras, atentados, ameaças, acidentes, doenças, mortes, xenofobia, tragédias naturais, impeachment, Brexit, protestos, escândalos, revelações, punições, impunidades, disputas olímpicas, intolerâncias. Boas ou ruins, foram novidades que invadiram nossa rotina e que pedem reflexão e digestão, principalmente quando chegam à queima-roupa.

Dificilmente saímos desafetados de situações como essas. E elas certamente sacudiram – até comprometeram – algumas de nossas certezas mais preciosas. Como sustentar a admiração pelo político x ou y diante de denúncias múltiplas de corrupção? Rever nossas próprias crenças não é fácil. O melhor a fazer é aproveitar estas situações, explica Marmo.

TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST

Imagem de Capa: Shutterstock/SergeyIT

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