Por Michele Müller
Todos os distúrbios neurológicos afetam a concentração e muitos deixam de ser identificados com uma frequência lastimável, mascarados pelo popular diagnóstico de “déficit de atenção”. Até o final da década de 90, a sigla TDAH, do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, era pouco conhecida fora da área da saúde e drogas como metilfenidato (Ritalina) eram raramente prescritas. Em cerca de duas décadas, o termo entrou para o vocabulário corriqueiro de pais, professores e qualquer profissional que trabalha com crianças.
Os americanos iniciaram uma falsa epidemia de TDAH, que veio acompanhada do uso muitas vezes desnecessário e irresponsável de medicação psicotrópica por crianças. E o Brasil logicamente logo se espelhou no modelo norte-americano de criar e resolver problemas, posicionando-se em segundo lugar da lista dos maiores mercados mundial de metilfenidato.
Atualmente, nada menos que 11% das crianças americanas em idade escolar são diagnosticadas com o transtorno, sendo que mais da metade desses (6,1%, em 2011) não vão à escola sem o estimulante, segundo dados do Center for Disease Control and Prevention (órgão federal americano de controle e prevenção de doenças). No Brasil não há dados do percentual de crianças medicadas, mas não devemos estar muito longe dos americanos, já que a venda de estimulantes como Ritalina cresceu 775% entre 2003 e 2012, segundo levantamento do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Há quem afirme que antes da popularização do termo essas crianças ficavam sem tratamento e muitas acabavam largando os estudos. Mas estudantes podem largar os estudos por muitos outros motivos e medicar uma quantidade absurda de crianças para não deixar escapar a minoria que talvez se beneficiaria do tratamento fármaco, como muitos médicos fazem, é uma lógica que desconsidera o mal que o uso da droga pode trazer a um cérebro ainda em desenvolvimento e que provavelmente não precise dela.
O aumento dos índices de TDAH foi impulsionado por uma mudança discreta na definição do distúrbio, apresentada com o lançamento, em 1994, da quarta revisão do manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, o DSM-IV – referência mundial da saúde mental.
Entrevistado por mim recentemente, o psiquiatra líder da equipe que redigiu o manual, Allen Frances, contou que não imaginava que uma mudança tão pequena, visando facilitar a identificação entre as meninas, fosse causar essa explosão no diagnóstico. A expectativa era de que a incidência se mantivesse entre os 2% e 3% da população infantil, sendo que apenas os casos mais severos dentro desse percentual se beneficiariam da medicação – ao menos em curto prazo.
O problema é que a indústria farmacêutica não deixa escapar as oportunidades que são criadas com os afrouxamentos de critérios ou inclusão de novos distúrbios no manual da psiquiatria. Existem também mudanças culturais e educacionais envolvidas nesse fenômeno da impulsividade e falta de foco das crianças. Mas certamente o marketing da indústria, dirigido a médicos, psicólogos e mesmo aos pais (no caso dos Estados Unidos, onde essas empresas podem anunciar diretamente ao consumidor) cumpriu um papel fundamental na popularização do diagnóstico.
Muitos pais resistem à solução farmacológica, especialmente ao perceber no filho o comportamento muitas vezes apático e agressivo ou irritadiço – reações comuns ao uso dos estimulantes, assim como a insônia e perda de apetite (para citar as mais frequentes). Para as escolas, no entanto, um aluno mais quieto e capaz de se manter focado em atividades repetitivas pode ser um alívio. Isso explica a pressão que muitas instituições de ensino – especialmente as mais competitivas e inflexíveis – vêm fazendo sobre as famílias das crianças que não “se encaixam”, muitas vezes exigindo medicação.
Frances, em seu livro Saving Normal – traduzido para 16 idiomas e com lançamento previsto para março no Brasil, pela editora Versal – destaca que todos os distúrbios neurológicos afetam a concentração e muitos promovem hiperatividade. Alguns são bastante comuns e infelizmente deixam de ser identificados com uma frequência lastimável, mascarados pelo popular diagnóstico de “déficit de atenção”, geralmente feito em uma única consulta e com critérios bastante subjetivos. Entre eles estão os transtornos de aprendizagem – como dislexia -, que poderiam ser trabalhados com estímulos e metodologia adequados para resultados seguros, eficazes e definitivos.
Outra ótima evidência de como a inadequação às exigências acadêmicas muitas vezes é respondida com distração e hiperatividade está na alta incidência de TDAH entre crianças mais novas da sala. Frances revela em seu livro que um estudo canadense envolvendo cerca de 940 mil crianças, concluído em 2012, constatou que meninas nascidas mais perto da data de corte de cada nível escolar (que no Brasil seriam as crianças de final de ano) apresentavam 77% mais chances de serem medicadas com estimulantes e entre meninos esse índice aumentava em 41% “É ridículo tornar a imaturidade na infância uma doença e medicá-la”, lamenta.
A solução rápida e prática oferecida pelos estimulantes tem sua eficácia reduzida e segurança desconhecida quando usadas em longo prazo. Para se certificar se o uso das drogas para déficit de atenção compensa em longo prazo, uma equipe de 18 pesquisadores, com apoio do Instituto de Saúde Mental americano (NIMH), investigou, no decorrer de oito anos, o desempenho de 579 crianças diagnosticadas com o transtorno. Publicada em 2009, foi a maior pesquisa já realizada com essa finalidade. Concluíram que depois de um ano e meio, mesmo com o aumento contínuo de dose, as crianças medicadas não apresentaram melhor desempenho em nenhum aspecto com relação às que não receberam medicação.
Depois de um tempo, portanto, restam apenas as reações indesejadas do desequilíbrio provocado pela droga. Reações que em curto prazo são conhecidas e estudadas, mas ainda ignoradas por pesquisas que investigam a segurança em longo termo do uso do estimulante na infância. Com poucas evidências de que vale a pena e pouco conhecimento do efeitos da droga no futuro, o que estamos fazendo, ao medicar com poucos critérios, é muito bem definido por Allen Frances: “é uma experiência mundial descontrolada com as crianças, usando-as como ratos de laboratório sem seu consentimento e sem que seus pais sejam devidamente informados antes de concordar”.
Imagem de capa: Shutterstock/Jan H Andersen
TEXTO ORIGINAL DE BRASILPOST
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