Por Marsílea Gombata
Em 2002, o filme francês Irreversível trouxe às telas uma das cenas mais incômodas da história do cinema: em uma passagem subterrânea na noite de Paris, a personagem de Monica Bellucci volta sozinha de uma festa e cruza com o agressor, que a domina com uma faca, a joga no chão, abafa seus gritos ao tapar a sua boca, rasga sua roupa, a estupra e a espanca, com chutes no nariz e nas costelas e repetidos choques de seu rosto contra o chão. São 11 longos minutos em uma sequência de tensão, repulsa e dor.
Apesar do misto de perplexidade e revolta que a cena de um estupro causa, não se trata de um caso incomum. No Brasil são perto de 527 mil estupros ao ano, segundo o levantamento Estupro no Brasil: Uma radiografia segundo os dados da Saúde, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O crime, no entanto, é um dos mais subnotificados no País: estima-se que apenas 10% dos casos cheguem à polícia. Ou seja, 90% nem sequer são investigados.
No fim de maio, o País voltou a reviver o horror com o caso de uma jovem de 16 anos vítima de estupro coletivo. A tragédia ganhou repercussão porque um dos supostos agressores fez questão de postar um vídeo nas redes sociais e apresentar a adolescente desacordada, como um objeto utilizado e descartado por ele e outros homens presentes no recinto.
As investigações ainda não chegaram a um número certo de agressores, mas a vítima fala em 33 homens – alguns armados com fuzis, outros a violentando, outros a imobilizando em um quarto no Morro da Barão, na Praça Seca, zona oeste do Rio.
“A violência contra a mulher precisa ser entendida como um fenômeno social por duas razões: ela não se manifesta de forma pontual, mas segundo padrões amplamente presentes na sociedade”, observa Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da UnB e organizadora do livro Feminismo e Política: Uma introdução (Boitempo, 2014) ao lado de Luis Felipe Miguel.
“Por meio dele, os homens tornam concreto o entendimento de que têm direito de definir a vida das mulheres, isto é, de que elas não são os sujeitos de suas próprias vidas. O estupro é uma afirmação crua do domínio masculino sobre as mulheres e se impõe a elas como ameaça.”
O crime com a adolescente, que vivia em um apartamento na Taquara com a mãe, o pai, a avó e o filho de 3 anos, repercutiu. O presidente interino, Michel Temer, anunciou medidas vagas sobre políticas para mulheres – como a criação do Núcleo de Proteção à Mulher –, reconheceu que a sociedade brasileira se acanha diante de tais episódios e anunciou como secretária de Políticas para Mulheres Fátima Pelaes, aliás contrária ao aborto, mesmo em casos de estupro.
Uma semana após o ocorrido, o Senado aprovou projeto de lei que tipifica os crimes de estupro coletivo e de divulgação de imagens desse tipo de violência. A ideia é a pena para o crime de estupro praticado por duas ou mais pessoas ser aumentada de um a dois terços – atualmente, casos com maiores de 18 anos preveem de seis a dez anos de prisão, enquanto com menores varia de oito a 12 anos.
Na esfera local, a investigação começou com o chefe da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI), Alessandro Thiers, mas foi transferida para Cristiana Bento, titular da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima.
A troca deu-se após pedido da defesa da menina de 16 anos, que contou ter sido questionada por Thiers sobre sua versão. Ele perguntou, por exemplo, se a vítima do estupro coletivo tinha o hábito e gostava de fazer sexo em grupo.
Thiers ganhou projeção ao conduzir casos de grandes repercussões nos últimos anos, como a investigação de ações dos black blocs em 2013. No ano seguinte, poucos dias antes da Copa do Mundo, pediu a prisão preventiva de “responsáveis” por incitar violência em protestos, entre eles a advogada Eloisa Samy – a mesma que defendia a jovem de 16 anos até ela entrar para o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, após receber ameaças do tráfico do Morro da Barão. Na terça-feira 7, Thiers foi afastado do comando da DRCI.
Estupro
“O machismo não é algo que se expressa de forma solta no cotidiano das pessoas. Ele existe nas instituições e na forma como aqueles que operam essas instituições agem. As mulheres têm clareza de que são vulneráveis não apenas à violência sexual, mas também ao machismo institucional”, observa Flávia.
“Quando Thiers diz que estava investigando se houve consentimento da vítima, temos um caso típico de desconfiança da palavra da mulher. Desconfiança e recusa à palavra das mulheres incentivam a cultura do estupro.”
Corriqueira, a postura do delegado pode ser apontada, portanto, como uma das razões por trás da subnotificação do crime de estupro. Apesar do crescente número de vítimas, poucas mulheres têm estômago para levar a denúncia adiante. Parte disso pode ser explicada pela postura das instituições brasileiras, que fazem o estupro ser o único crime no qual a vítima precisa provar que não tem culpa.
“Do momento em que ela é estuprada em diante, a mulher continua sendo violentada pelo Estado”, define assim a dinâmica de revitimização Lívia de Souza, advogada feminista. “Sempre perguntam qual roupa ela vestia, se estava bêbada ou andando na rua tarde da noite. A mulher passa a ser humilhada pelo sistema criminal como um todo.”
Integrante do grupo ONU Mulheres Brasil e com experiência no atendimento de mulheres vítimas de violência, Lívia observa que, enquanto nas delegacias não há um espaço exclusivo para acolher essas vítimas, o atendimento geralmente é feito por homens na presença de outras pessoas, e a perícia – que só tem efeito quando realizada até dois dias depois do estupro – também costuma ser executada por peritos do sexo masculino.
Soma-se a isso o fato de a vítima ter de relatar diversas vezes o ocorrido e rememorar a vivência traumatizante. “A mulher, então, acaba desistindo de denunciar para não sofrer ainda mais”, explica Lívia.
A coordenadora do Núcleo da Mulher da Defensoria de São Paulo, Ana Paula Meirelles Lewin, lembra que muitas mulheres nem sequer procuram ajuda por medo e constrangimento. “Muitos casos são praticados por alguém de sua convivência. Então ou a mulher terá medo do agressor ou ela se sentirá culpada”, diz.
Professora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ, Joana Vargas afirma que, pelo fato de a investigação de estupro recair sobre a vítima, observa-se um “efeito funil” no âmbito de Justiça.
“Inicia-se com um grande número de casos reportados à polícia e termina, depois de seleções sucessivas, com um pequeno número de casos sentenciados”, observa sobre a pesquisa Análise Comparada do Fluxo do Sistema de Justiça para o Crime de Estupro, com base em Boletins de Ocorrência da Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas entre os anos de 1988 e 1992.
“O que mais chama a atenção nesses casos ainda é a grande filtragem operada na fase policial, quando 71% dos Boletins de Ocorrência são arquivados.”
Muitas das vítimas do crime descrito no Artigo 213 do Código Penal terão de enfrentar a ausência de profissionais capacitados para um tratamento mais sensível e individualizado. O primeiro passo é a vítima fazer o B.O. e manifestar por escrito a vontade de que o agressor seja processado.
Depois é encaminhada para o exame de corpo de delito. Caso o réu seja denunciado e processado, a vítima pode ser chamada para confrontar a versão do agressor. Se a decisão em fazer o B.O. e a representação ultrapassar o prazo de seis meses, não há investigação.
O próprio tópico sobre a submissão da vítima a exames de corpo de delito em busca de provas materiais é polêmico. O primeiro laudo da perícia realizado na adolescente de 16 anos não encontrou indícios de violência. O crime, no entanto, estava comprovado desde o momento em que no vídeo veem-se os agressores tocando a jovem desacordada.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, entende que “em se tratando de delitos sexuais, a palavra da vítima tem alto valor probatório”, o que coloca em xeque a necessidade incontestável de exames corporais como provas.
Heloisa Buarque de Almeida, professora de Antropologia da USP, questiona a eficácia de provas materiais, que muitas vezes se mostram um empecilho à vítima seguir adiante com a denúncia.
“Pode ter havido estupro, mas o exame dirá apenas se houve relação sexual, sem falar se foi consensual ou não”, observa ao ressaltar que a narrativa e a reconstituição dos fatos são igualmente importantes.
Nova Délhi
A docente, que montou no ano passado a Rede Não Cala para apoiar vítimas de violência sexual na universidade, observa que o medo de exposição e o desencorajamento por parte das próprias faculdades fazem mais de 90% dos crimes de estupro na USP se reduzirem a histórias e traumas, sem qualquer punição.
Na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), uma aluna denunciou ter sido vítima de estupro coletivo por oito colegas em 2002, mas foi desencorajada pela própria direção. Os agressores se formaram e deixaram o episódio no passado. A jovem convive com sequelas até hoje.
Em 2014, alunas da elitista Faculdade de Medicina da USP contaram terem sido violentadas sexualmente por veteranos, em casos que vão desde a tentativa forçada de sexo oral a uma manhã em que uma delas acordou nua com uma camisinha presa no ânus. As denúncias levaram à abertura de uma CPI na Assembleia Legislativa de São Paulo e a um inquérito tocado pelo Ministério Público.
Recentemente, a USP abriu uma sindicância para apurar a denúncia de estupro de uma estudante de Artes Cênicas durante os Jogos Universitários de Comunicação e Arte (Juca), no fim de maio em Sorocaba (SP), por um estudante de Física. O caso, no entanto, é exceção no mar de violência ao qual estão expostas as alunas. Heloisa conta que de dez casos de estupro que atendeu na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, apenas um virou denúncia formal.
O máximo que a universidade pode fazer é uma punição acadêmica, com a expulsão do aluno e a anulação de seu diploma, mas não o impedir de prestar vestibular e reingressar. “Existe uma cultura de negação do estupro”, diz Heloisa. “Muitos acham que, se a vítima não está desesperada e banhada em lágrimas, é provável que ela tenha feito sexo consensual e se arrependido.”
Por detrás do Brasil do Carnaval, portanto, o que se esconde é uma sociedade machista e conservadora. Afinal, conseguimos falar de sexo explícito em músicas, mas temos imensa dificuldade em reconhecer os problemas dentro de casa. “Existe um tabu muito grande em relação à sexualidade. O prazer e a sexualidade da mulher são sempre vistos como secundários e, de alguma forma, a serviço do homem”, analisa Lívia.
Encontre uma única mulher que nunca tenha tido medo de ser estuprada. Não há. Em 2013, pesquisa Chega de Fiu Fiu do Think Olga mostrou que 90% das mulheres já deixaram de usar roupa decotada por medo de sofrer algum tipo de assédio, enquanto 81% das entrevistadas disseram já terem deixado de fazer alguma coisa por medo de serem assediadas pelos homens.
Não é demais rememorar o dado assombroso trazido pela pesquisa Tolerância Social à Violência contra as Mulheres, feita pelo Ipea em 2014: mais de um quarto da população brasileira (26%) declara que “mulheres com roupa curta merecem ser atacadas”.
É no Brasil conservador que a cada 11 minutos uma mulher é vítima de estupro, de acordo com dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A radiografia do Ipea baseada nos dados do Ministério da Saúde de 2011, por sua vez, mostra que 15% dos estupros foram registrados como coletivos, 70% vitimizaram crianças e adolescentes, e em 32,2% dos casos com crianças e em 28% dos casos com adolescentes os algozes eram amigos ou conhecidos da vítima.
“A violência de gênero é um reflexo direto da ideologia patriarcal. Como subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita, coloca a mulher como objeto de desejo e de propriedade do homem, o que termina legitimando e alimentando diversos tipos de violência, entre os quais o estupro”, afirma Daniel Cerqueira, da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Ipea e um dos autores da pesquisa.
No perverso universo da violência contra a mulher, o número de vítimas mortas em condições violentas cresceu 21% entre 2003 e 2013, passando de 3.937 para 4.762, segundo dados do Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. O triste aumento representa uma média de 13 homicídios femininos por dia.
As cifras sobre violência de gênero assustam, mas são explicadas em parte por um histórico de legislações que por muito naturalizaram tais crimes. Até 1984, estupro no casamento não era considerado como tal, por ser visto como uma obrigação matrimonial da mulher.
Foi somente no século XXI que o Direito Penal reconheceu o status de sujeito às mulheres, com manifestação própria da sexualidade e direitos iguais aos dos homens. Em 2001, o assédio sexual (sofrido por ambos os sexos) passou a ser considerado crime e, em 2009, a Lei nº 12.015 reconheceu que esses crimes não ferem o pudor, mas sim os sujeitos.
Avanço institucional, a Lei Maria da Penha entrou em vigor em 2006 para combater a violência contra a mulher, mas não teve impacto na redução das taxas anuais de mortalidade por esse tipo de agressão, conforme mostra o Violência contra a Mulher: Feminicídios no Brasil, também elaborado pelo Ipea, em 2013.
Projeto de Lei 5069/2013
No horizonte próximo, outras ameaças em curso. É o caso do Projeto de Lei 5.069/2013, de autoria do parlamentar Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e aprovado em outubro na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. O texto dificulta a realização de aborto em casos de estupro e prevê pena a qualquer um que oriente a vítima sobre as possibilidades legais de aborto em casos de violência sexual.
Também exige B.O. e exame de corpo de delito para dar acesso à profilaxia para estupro, como pílula do dia seguinte, e orientação psicológica. Em geral, as vítimas recorrem aos serviços de saúde antes mesmo de ir à delegacia.
No fim de maio, o ministro interino da Educação, Mendonça Filho, recebeu o ex-ator pornô Alexandre Frota, que, além de advogar pelo “fim do comunismo na educação”, em prol do Projeto Escola sem Partido – proposta contrária ao que define por ideologia de gênero e em prol de um pensamento único –, foi aplaudido em um talk show, em 2014, por contar como teria estuprado uma mãe de santo.
“Quanto menos discutirmos as relações de gênero, mais oculta e naturalizada ficará a violência. A defesa da censura, da exclusão do debate sobre gênero nas escolas, corresponde à posição de que a violência sexual não deve ser combatida. Quem quer escola sem debate de gênero e um país com menos direitos para as mulheres escolheu seu lado, o da violência”, afirma Flávia.
A propósito do estupro no Rio, o jornal progressista francês Libération estampou o caso em sua primeira página: “Contra o Estupro, um Combate Mundial – Depois da Índia em 2012, o Brasil enfrenta um caso de estupro coletivo de uma violência rara.
O início de uma tomada de consciência mundial?” O Times of India, ao criticar a grande imprensa pelo “silêncio” inicial sobre o tema, afirmou que “o Brasil encara sua própria crise de Nirbhaya”, em referência ao episódio de 2012 em que uma estudante foi estuprada por uma gangue em um ônibus em Nova Délhi e morreu em decorrência de ferimentos internos.
O jornal do país, onde 92% das mulheres da capital contam terem vivenciado algum tipo de violência sexual em espaços públicos, lembrou outros casos emblemáticos daqui do Brasil, como aquele, de 2013, em que uma turista americana foi sequestrada por três homens em uma van no Rio e estuprada oito vezes na frente do namorado francês.
A barbárie perpetrada em uma favela no Rio suscitou um clima de indignação e obrigou o País a reaver-se com uma carga cultural que o amarga. Além da revolta nas redes sociais, com hashtags como #30contratodas, #nãoaomachismo, #EstuproNaoÉCulpaDaVitima e #MeuCorpoMeusDireitos, no domingo 29 cerca de 3 mil pessoas se reuniram em frente do STF, em Brasília, na Marcha das Flores – 30 Contra Todas.
Feminicídio
Na noite da quarta-feira 1º, milhares protestaram em diversas cidades brasileiras contra o abuso sexual. Em São Paulo, manifestantes reuniram-se no Masp com dizeres como “Machistas, golpistas, não passarão” e “O corpo é da mulher e ela dá para quem quiser”. No Rio, mais de 2 mil mulheres protestaram no Centro com cartazes que diziam “Não é não” e “O machismo mata”.
Protestos que refletem a ânsia da sociedade por mudanças não apenas legislativas, mas também culturais. “Quando usamos o corpo de uma mulher para vender na publicidade, estamos colocando-a como mais um produto, mais um objeto à disposição dos homens. Isso as deixa vulneráveis a todo tipo de violência”, observa Maíra Liguori, cofundadora da consultoria Think Eva.
“Ensinamos desde cedo às meninas que o valor delas está na aparência e que só serão desejadas se atenderem às expectativas dos homens. Que a principal realização da vida de uma mulher é o casamento e a validação masculina. Isso as coloca em uma posição em que muitas vezes nem percebem estarem sendo vítimas de violência.”
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