O conceito de família tem passado por revisões profundas, diante do número crescente de separações e novas uniões, da multiplicidade dos lares monoparentais e do alto índice de famílias chefiadas por mulheres, especialmente nas camadas mais economicamente menos favorecidas. Quem se dedica ao estudo e ao trabalho com famílias percebe que, em qualquer tipo de organização familiar, encontram-se lares estruturados e desestruturados. Organizações familiares não convencionais podem funcionar harmonicamente, atendendo bem aos seus membros, enquanto o “modelo ideal” dos pais casados criando seus filhos pode ser uma familia desarmônica, com graves conflitos e relacionamentos violentos.
São inúmeros os motivos pelos quais as pessoas querem ou não ter filhos. O filho pode trazer a promessa de dar continuidade à existência dos pais, conservando as raízes e o “nome da família”; por outro lado, no Brasil, milhares de bebês crescem sem registro civil, portanto não existem como cidadãos. O filho pode ser a oportunidade de aprofundar a relação de amor entre o casal, embora muitas vezes traga rompimento e desencontro; além disso, milhares de bebês são gerados sem desejo nem planejamento, fora dos vínculos de amor e de cuidados, vivendo nas ruas ou em condições de extrema precariedade.
Para muitas pessoas, o filho é a esperança de realizar desejos e aspirações que os próprios pais não conseguiram realizar, mas, por outro lado, o filho também pode ser visto como um fardo a ser carregado e que atrapalha a vida dos pais. Pessoas emocionalmente carentes ou solitárias muitas vezes projetam no filho a esperança de ter companhia, preenchendo o vazio. E, em muitas famílias, o filho é encarado como um objeto a ser utilizado como sustento, como mão-de-obra na lavoura ou nas ruas da cidade.
São os casos em que os pais se sentem proprietários das crianças, achando-se no direito de usá-las como bem entendem, seja no abuso ou na exploração sexual, no trabalho infantil ou no uso das crianças na rua como meio de ganhar dinheiro despertando a piedade dos que passam pela imagem da miséria familiar exposta nas calçadas.
Essas crianças estão privadas de seus direitos fundamentais de abrigo, de cuidados adequados, de atividades indispensáveis ao desenvolvimento saudável. Essas famílias precisam ser chamadas energicamente para sua responsabilidade e consciência da lei que protege os direitos das crianças, mas também ativamente trabalhadas pelos recursos das políticas públicas e das parcerias já existentes com diversas ONGs para abrir novos caminhos e possibilidades.
A “pergunta-bússola” para os profissionais que lidam com as famílias de alta complexidade é: “Onde estão os recursos que podem melhorar essa situação? Quais são as prioridades, as possibilidades?” Os caminhos estão nos recursos da comunidade, dos projetos sociais, de pessoas externas à família e também dentro da própria família.
Os recursos amorosos e a competência de cuidar encontram-se, em muitos casos, soterrados por um acúmulo de sofrimentos e sentimentos de desesperança, desespero, desilusão, descrença, falta de perspectiva de “sair do atoleiro” ou de “enxergar a luz no fim do túnel”. No trabalho com essas famílias, é preciso ir fundo, com sensibilidade e dedicação, para cavar e trazer à luz do dia, esses recursos preciosos.
Um entre muitos exemplos deste tipo de trabalho da Associação Brasileira Terra dos Homens que promove a reintegração familiar de crianças e adolescentes em situação de risco. Há um trabalho intensivo da equipe com as famílias no sentido de mapear suas dificuldades e descobrir as competências desenvolvidas na luta pela vida.
O trabalho da equipe mostra o poder de acreditar na competência, propiciando recursos básicos para que esta se manifeste. Com a recuperação da auto-estima, despertada pela importância da escuta sensível, da atitude de colocar em destaque as experiências bem sucedidas no decorrer da luta pela vida, do esforço em superar obstáculos, torna-se possível olhar para a situação difícil de outras formas e, a partir daí, buscar novos caminhos e novas forças para enfrentar os problemas, reencontrar a capacidade amorosa que parecia perdida e conseguir reintegrar crianças e adolescentes às suas famílias de origem.
Nos estudos sobre prevenção da violência, a melhoria da qualidade dos vínculos familiares é considerada uma das medidas mais importantes. Todas as formas de organização familiar, mesmo as menos convencionais, são importantes como “ninho acolhedor”. Ações coordenadas em múltiplas parcerias que consigam tecer redes solidárias com essas famílias, utilizando os recursos das escolas, dos postos de saúde, da comunidade, dos centros de voluntariado, de programas de habitação, de projetos de geração de renda e tantos outros poderão estimular, de modo eficiente, a competência e a auto-estima dessas famílias que vivem em situação de extrema precariedade.
Com essa perspectiva, a direção do trabalho se afasta, cada vez mais, das propostas assistencialistas que remediam temporariamente, mas não resolvem o problema. Mesmo o programa de renda mínima está associado à inserção no mercado e não à ociosidade: sendo oferecida por tempo limitado, atua como um importante ponto de partida para desenvolver habilidades e competências. Desta forma, o trabalho focalizado no fortalecimento da competência e na tecelagem da rede de apoio permite recuperar vínculos rompidos ou maltratados, abrindo novos caminhos de esperança e de transformação da qualidade de vida.
Projetos como esses precisam se multiplicar e serem amplamente divulgados, pois representam caminhos necessários para trabalhar com a população de risco no sentido de desenvolver condições mais razoáveis de vida e de proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes.
* Este artigo aborda temas contidos no livro “Nós Estamos Grávidos ” (Integrare Editora).
Imagem de capa: Shutterstock/View Apart
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