Por Rafael Sarto
Faz duas semanas que você começou uma dieta nova. Dieta não. Reeducação alimentar. Você tem horários plausíveis para a ingestão de determinados alimentos, o programa alimentar consegue se encaixar em sua realidade e rotina atribulada e você nem sente que ele tem sido tão difícil assim de se levar a cabo. Emagreceu um pouco mais do que o previsto, mas ainda dentro da normalidade, o que é um ótimo sinal. Melhor ainda: está com disposição melhorada, tem dormido um sono muito melhor e até a respiração melhorou.
Vez ou outra ainda dá um certo desânimo de ir para a academia ou fazer aquela caminhada, que antes eram o martírio em vida e você simplesmente dava um jeito de não ir. Mas isso se tornou exceção e, com um pouco de força de vontade, você se coloca no trajeto para lá e inclusive sai com a cabeça restaurada, sensação de dever cumprido e se sentindo a energia em pessoa. Voltou a ter desejo sexual num padrão condizente com aquilo que está de acordo com você, tem se sentido que pode ser novamente objeto de desejo de alguém. Tem se emburrado menos e está conseguindo levar a vida com mais assertividade.
A vida simplesmente parece fazer muito mais sentido agora, e, por incrível que pareça, uma mudança “pequena” restaurou o gosto de se viver. Se for para viver assim, daí é suficientemente legal e vale a pena. Vamos continuar. Deixou de ser uma “dieta” para ser um novo estilo de vida. E tudo aquilo que mexe sobremaneira com nosso estilo de vida, quando dá certo, gera resultados bastante amplos dessa forma: um novo hobbie, uma nova atividade física, um novo trabalho, um novo relacionamento, um novo grupo social de amigos, a mudança para uma nova cidade/cultura, etc. O ser humano é biopsicossocial, e qualquer alteração substancial em uma dessas grandes áreas tem esse potencial de melhora (da mesma forma que más escolhas nessas áreas tem grande potencial danoso).
O que esquecemos é que a própria mudança no estilo de vida envolve mudanças, e o processo de “estar mudando” é um grande motivador para esse novo “estilo de vida”. De fato, depois de um tempo, a não ser que nos falem, esquecemos os rótulos da rotina de nosso estilo de vida. Os “reeducados alimentares” esquecem-se que são “fitness” até que sejam caçoados por amigos. Os praticantes de yoga, pilates, etc esquecem-se que são “yoguins” e “pilateiros”. Os donos de gatos (novos relacionamentos) esquecem-se que são “gateiros”.
Os que descobrem na corrida, na musculação, etc, novos hobbies e círculos de amizade são “corredores”, “marombeiros”, etc. Os que já não estão em suas terras de origens passam a ser, em terras estrangeiras, o “mineiro”, o “capixaba”, o “baiano”, etc. São rótulos. Negativamente, reduzem as pessoas. Positivamente, recordam-nos de qual deve ser o nosso padrão de escolhas e, quando essas escolhas nos fazem bem, afirmamo-nos com peito cheio a alcunha: “sou mesmo!”. E isso é bom: identificarmo-nos. Sabermos de nós. Mas sempre lembrando-nos que não somos apenas aquilo e que a mudança é intrínseca.
Quando a rotina acaba, seja após alguns meses, numa época festiva, num final de semana, também os rótulos tendem a tornar-se mais enfraquecidos. Você é convidado para uma festa de criança, regada a doces, bolos, etc. O aniversariante é seu sobrinho, do irmão ao qual você é mais colado. Você está lá e simplesmente era inaceitável a opção de não estar. Não há fuga. Senão pela “obrigação social”, pelo seu próprio desejo de estar lá e compartilhar desse momento com seu irmão e seu sobrinho.
Você, milagrosamente, vive em um meio assertivo. Conhece um número suficiente de pessoas (nem muitas, nem poucas, mas o ideal para você) e essas pessoas te conhecem o suficiente para que saibam de suas novas metas e do quão “fitness” você agora é e o quão empenhado você está com a nova dieta. Assim, não há aqueles inconvenientes lhe oferecendo docinhos e bolos a todo momento. E nem os outros inconvenientes na sua cabeça dizendo: “uai, mas você não era fitness, vai comer agora? você não pode comer porque você é fitness”.
A mesa está cheia e as pessoas simplesmente estão comendo e lhe deixando em paz. Existem aqueles que você não conhece, os que você já viu de vista, ouviu falar, cumprimentou e inclusive os mais próximos que você conhece muito bem. Todos eles comem e se satisfazem. Dentre eles, você olha para seus corpos e pensa em seus estilos de vida: alguns são magros também; aquele eu sei que é ciclista; o outro foi exatamente quem me indicou a nutricionista com quem estou fazendo minha reeducação e sei que ele também está no processo. Todos eles comem sem culpa e estão felizes. Mesmo os que comem de modo regrado para manterem-se fieis aos seus hobbies e suas escolhas (o ciclista, o fitness, etc) comem regradamente sem culpa.
Esse novo modo de viver me faz muito melhor do que eu era antes. Mas será que dá para viver assim para o resto da vida? Será que não vou poder nunca comer um docinho? Será que não há um jeito de poder sentir esse prazer mais uma vez na vida sem voltar a desejá-lo todo dia? Ou será que nunca mais vou poder participar de eventos assim? Ou terei que sempre participar convivendo com esses pensamentos e essa angústia? Será que minha vida anterior com esses prazeres era realmente tão pior?
Eu dava muito mais atenção ao trabalho e meu rendimento era muito melhor naquele contexto quando eu não tinha que me preocupar com comer nos horários corretos ou dar aquela “fugidinha” para o spinning. Os horários que eu mais produzia eram após aquela barrinha de chocolate escondida na mesa e eu me sentia realmente foda com meu rendimento. Será que não dá para ser fitness experimentando de alguma forma esse prazer todos os dias em algum momento do dia? Eu já me adaptei a tantos estilos de vida e já dei conta de tantas coisas na vida, porque todo mundo consegue encontrar um meio termo para essa situação e apenas eu que não? Tenho certeza que consigo.
Enquanto essa novela se passa, ninguém percebe. Ninguém diz: coma. Ninguém diz: não coma. Todos dizem: você vai conseguir. Mas a questão se torna: conseguir o quê? Conseguir não comer? Conseguir comer de modo regrado e sem culpa? Inclusive no dia seguinte? Conseguir comer sem sentir desejo de comer mais quando a festa acabar? Quando te dizem: “você vai conseguir” você preferia que dissessem: “você não vai conseguir”. Porque o sentimento de poder, de conseguir sempre tudo com aparente tranquilidade através de seu esforço e coragem para atingir o que quer que seja é o que lhe mata. Não conseguir e ter a certeza de que não consegue seria o finalmente tão aceitado “assumir-se” e “aceitar-se”.
Você é doente. Diabético. Qualquer quantidade de açúcar lhe é potencialmente danosa. Você vive em uma sociedade que desconhece a doença, mas conhece a insulina. Os resultados clínicos e os laudos médicos que você mostra não possuem validade científica. E você pode, esporadicamente, comer e injetar-se. E, como essa diabetes não é validada cientificamente, existe a esperança que ela tenha cura e, um dia, você não precise nem sequer injetar-se. Comer moderadamente bastará.
Você não é diferente daquelas pessoas que comem na mesa em silêncio. Talvez elas sejam ou tenham sido diabéticas também e convivam perfeitamente com isso e com a mesa. Você não morre no dia nem no dia seguinte, mas sofre. O sofrimento das flutuações de glicose no sangue são fisiológicas e você lida bem com elas porque elas passam. As flutuações do desejo do prazer não tem data nem hora para passar nem para voltar. São autônomas, e brincam e caçoam da sua capacidade de controle diária ou semanalmente.
Você conhece diabéticos que há 20 anos estão sem uma gota de xarope de glicose na boca, mas com o discurso que há 20 anos sentem um desejo incontrolável e que quando completarem 80 anos já terão vivido o suficiente e pretendem, literalmente, se matar de comer. E não são poucos. E você, com poucas semanas do “novo estilo de vida”, já teme os 20 anos. E, muito mais: 20 anos de desejo para dizer “faltam 30 anos de desejo para eu ter o direito de me matar de comer”.
Se é para viver a vida toda com desejo, qual o mal de comer de vez em quando e conviver com o desejo das semanas posteriores à injeção? Como um desejo se diferencia do outro se ambos são incontroláveis? E como o controle do desejo se diferencia do controle da quantidade? E se tudo se resume a controle, e você tem certeza que pode controlar, pelo tanto de desafios que já superou na vida, qual será o argumento que lhe trará a certeza da auto-insuficiência? Para piorar você não acredita em verdade absoluta e, por isso mesmo, você não procura uma resposta, pois sabe que não existe e você poderia a contra-argumentar. Você procura por uma pergunta, que não sabe qual é nem de onde vem, mas que sabe que para ela não haverá resposta, e esse silêncio será a melhor resposta. Absoluta?
Talvez o termo “fissura”, enquanto desejo absurdo e incontrolável, decorra do outro significado de “fissura”: divisão, rompimento, separação. Alguém fissurado é alguém dividido, em que nenhuma centralidade e integridade é possível e que nenhuma escolha é possível. Mas a história de unidade (os momentos sem fissura) nos lembram e nos dão aquela esperança ingrata da possibilidade ínfima dessa centralidade e decisão consciente.
Nesses momentos, não é a assertividade que funciona, pois assertividade envolve negociação e tomada de decisão. Nesses momentos, apenas a agressividade pode ajudar. Enquanto sozinhos, resta-nos essa agressividade: a roleta russa de dizermos a nós mesmos “sim” ou “não” sem qualquer centralidade. A mesma agressividade que nos faz comer é a que nos faz ir embora da festa. Em termos de Habilidades Sociais, a única ajuda que podemos ter é a de um suporte social sólido e bem treinado, que não seja sempre assertivo, mas que possa ser agressivo por nós nos momentos de fraqueza e nos arrastar para fora da festa e ter a resiliência de sair junto conosco e bancar essa decisão. Ou, noutras situações (em que o nosso suporte social também não pode sair), nos expulsar da festa, aceitar a nossa ausência e bancá-la perante os outros.
Imagem de capa: Shutterstock/Demkat
Rafael Sarto é Graduando em Psicologia e Diretor no Centro Mineiro de Habilidades
Sociais: Paiva & Sarto (CMHS-P&S). Originalmente Analista de Sistemas,
direcionou-se para a área de Ciência e Gestão da Informação e do
Conhecimento, tornando-se apaixonado pela área de educação e, na
sequência, psicologia. Especialista em Inteligência, Pós-graduando em
Fisiologia Humana Aplicada e em curso de formação em Sexologia Clínica
com ênfase em Terapia Sexual, empreende e atua nas áreas de Formação
Profissional e Continuada e Habilidades Sociais.
A nova minissérie da Netflix apresenta o público a uma história engenhosa e surpreendente que…
O longa-metragem tem sido muito elogiado por críticos por sua capacidade de emocionar e educar,…
Por que temos tanta dificuldade em nos livrar de roupas que não usamos? Segundo especialistas,…
Segundo a mãe, a ação judicial foi a única forma de estimular a filha a…
Uma pequena joia do cinema que encanta os olhos e aquece os corações.
Uma história emocionante sobre família, sobrevivência e os laços inesperados que podem transformar vidas.