Ela, desde pequena, costumava se apegar às pessoas, dando muita importância a tê-las por perto. Seus pais costumavam compará-la com as amiguinhas, dizendo que ela deveria ser mais estudiosa como a fulana, mais extrovertida como a beltrana. Então, ela foi achando que precisava dos outros para ser melhor, como se ela mesma fosse incompleta sozinha.
E assim continuou na adolescência, sendo a boazinha do grupo, aquela que tudo suporta, nada pede. Nada é. Sempre à margem das colegas, ficava ali ao lado meio despercebida, coadjuvante, olhando sem ser observada, sem ter voz alguma. Ela tinha vontade de falar umas verdades, de se revoltar e falar alto, mas não poderia lidar com a possibilidade de ver alguém com raiva dela ou magoada com ela. Ela precisava dos outros, ela não era completa sozinha.
Na faculdade, mais do mesmo. Classe imensa, sentou-se perto dos que pareciam menos populares e fortes, sentou-se perto de quem ela achava ser como ela: incompleto. Afundava a cabeça nos livros, pois não se permitia ir às festinhas, paquerar descaradamente, flertar com o gatinho da Engenharia. E permanecia ao lado das pessoas, coadjuvante, quieta. Incompleta.
Os professores talvez nem se lembrarão dela, quieta e estática no fundo da sala. Ela não podia levantar a mão e expressar tudo o que sabia perante os alunos. Eles iriam rir, caçoar, afastar-se dela. Isso ela não suportaria, porque ela não era completa sozinha.
Em seu primeiro emprego, obtido graças às suas notas altíssimas e não em razão da entrevista, onde se saiu mal, obviamente, permaneceu à margem, no canto. Terminava tarefas e cumpria metas como ninguém, mas nunca se colocava nas reuniões, engolia suas ideias, afinal, e se fosse passar vergonha? E se os colegas de trabalho ficassem com inveja e passassem a odiá-la? Ela precisava deles, porque não era completa sozinha.
E, então, um moço se interessou por ela, via aplicativo de celular, porque por ali ela conseguia se expressar com mais facilidade. Ali ninguém a encarava. E se encontraram e ele a encantou. Ela calada, ele falando e contando de si. Ela ouvindo, poucas palavras e sorrisos discretos. Deram-se as mãos, beijaram-se. Foram ao cinema, a bares, ele sendo bem mais do que ela, ele tomando as decisões, direcionando, agendando, liderando. Ela coadjuvante, ela consentindo, engolindo, permitindo. Ela não viveria sem ele, ela não era completa sozinha.
Mas ela deu muito espaço, ela se anulou por completo, e ele tomou conta de tudo, dos espaços, das imposições, das restrições. Ela já não tinha rede social, amigas, mal ia à casa dos pais. Nem sozinha saía. Ainda que ele não estivesse presente, ali ele permanecia dentro dela. Ele pôde começar a invadir cada pedaço da dignidade dela, e começaram as agressões. Primeiro os gritos, depois um empurrão, depois um tapa.
A dor física, então, como que acordou toda a dor emocional que ela guardara dentro de si. As lágrimas em profusão limparam seus olhos da escuridão em que ela se enfiara e lhe gritaram toda a miséria que ela vinha aceitando por medo de ser incompleta. Após mergulhar na dor da solidão acompanhada, ela acordou para si e, trêmula, fez as malas e partiu. Ao sair pela porta, ergueu a cabeça e começou a enxergar um mundo ali à sua frente, um mundo que a esperava de braços abertos.
Foi preciso que o sofrimento não mais lhe coubesse, para ela ter a ousadia de pensar em si mesma. Aos poucos, com a ajuda da terapia, ela começou a protagonizar a própria vida. Dizia o que sentia, como se sentia, o que queria e o que não queria. As pessoas a enxergavam como alguém que existe, que pensa, que sente. Como alguém que não se permitiria ser pisada. Demorou, mas foi lindo. Foi lindo quando ela teve a certeza de que ela era completa sozinha. E nunca mais ela deixou de tentar ser feliz, sendo feliz.
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Photo by Philippe Oursel on Unsplash
Texto publicado originalmente em Prof Marcel Camargo
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