Por Vera Rita da Costa
Ciência Hoje/ SP

Um dos grandes benefícios que as neurociências estão trazendo para a educação, principalmente para a educação na infância, é uma revisão da ideia de que o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem ocorrem em uma progressão ou em escala ascendente, em que estágios sucessivos e interdependentes são galgados passo a passo, como blocos de habilidades que se adquirem, se sobrepõem e se completam uns aos outros sucessivamente.
De maneira um tanto quanto diferente disso, o que se tem sugerido, com base nos resultados de pesquisas dessa nova superárea do conhecimento, é a ideia de que nascemos com mais capacidades inatas do que se imaginava.
Muitas habilidades, segundo os defensores dessa nova linha de interpretação do desenvolvimento cognitivo, já estariam disponíveis para nós ao nascermos. Entre elas, aquelas que justamente nos habilitam a adquirir conhecimentos e nos tornam exímios aprendizes na infância.
Dia após dia, acumulam-se evidências de pesquisa de que as crianças são mais capazes do que supomos
Já abordamos esse tema aqui em outra oportunidade, mas o que nos traz de volta a ele é outro aspecto importante da questão: até que ponto, apegados a modelos ultrapassados do desenvolvimento e desconhecendo o potencial real de nossas crianças, não estaríamos subestimando a capacidade de nossos alunos?
É claro que ainda não há respostas estabelecidas para essa pergunta. Aliás, ela, junto com a interrogação sobre quais são as habilidades cognitivas com que nascemos e como fazer melhor uso delas, compõe a fronteira das pesquisas atuais dessa área. No entanto, com base em resultados de variados estudos, já é possível ‘arriscar’ uma resposta – e os ‘palpites’, nesse caso, indicam a direção do ‘sim’.
Dia após dia, acumulam-se evidências de pesquisa de que as crianças são mais capazes do que supomos. E de que nossos currículos escolares, bem como nossas metodologias de ensino, precisam ser revistos, acompanhando os novos conhecimentos e a nova compreensão que se vem adquirindo sobre o desenvolvimento cognitivo.

Piaget revisitado
Se você é professor, sobretudo da educação infantil e das primeiras séries do ensino fundamental, conhece bem a realidade de que estamos falando. Em ciências naturais, o currículo, ou o que ensinamos a nossas crianças, costuma ser definido com base nos temas que o professor domina, julga importante ou considera ser do interesse dos alunos. E é claro que nessa escolha também pesam as ideias que o professor tem sobre aprendizagem e ciência de modo geral.
Conceitos científicos tidos como complexos ou difíceis, por exemplo, costumam ficar de fora da educação infantil e das séries iniciais do fundamental, pois considera-se que as crianças não são capazes de aprendê-los. Melhor deixar os conceitos e questões considerados difíceis para as séries finais do ensino fundamental ou, ainda, para o ensino médio, quando os alunos ‘entrarão no estágio operacional formal’ e saberão lidar melhor com conceitos abstratos.
Isso é o que reza a desatualizada e mal interpretada ‘cartilha piagetiana’ a que estamos apegados, apesar das recomendações contidas nas diretrizes curriculares nacionais que sugerem que não limitemos as escolhas temáticas a serem abordadas com as crianças.
Praticamente todo o conteúdo de física, química e geociências fica ausente do currículo de ciências no início da aprendizagem – relegado apenas ao ensino médio, quando se acredita que as crianças estarão mais ‘maduras’ para aprendê-lo.
O resultado é que praticamente todo o conteúdo de física, química e geociências fica ausente do currículo de ciências no início da aprendizagem – relegado apenas ao ensino médio, quando se acredita que as crianças estarão mais ‘maduras’ para aprendê-lo. Com isso, o ensino de ciências naturais, de forma geral, fica restrito à aquisição de umas poucas e repetitivas noções de biologia e saúde – as mais elementares possíveis – para “não sobrecarregar as crianças”.
Um exemplo? Aborda-se muito o corpo humano, hábitos de higiene e preservação ambiental. Mas, o que dizer do universo e de suas leis físicas? Você acha que são comuns currículos das séries iniciais que se dedicam a esses temas?

Certamente as crianças se interessariam por saber por que as coisas se movem, o que é a luz ou como o calor se transfere de um objeto para outro. Mas, sobretudo na visão dos professores e segundo o paradigma ainda reinante em nosso meio, esses temas envolveriam questões e conceitos muito complexos para serem abordados com elas. Melhor deixar pra lá!

Luz no fim do túnel
Na contramão dessa nossa tendência, no entanto, estudos têm demonstrado que mesmo bebês podem lidar (e lidam, independentemente de nossa intenção em relação a isso) com conceitos abstratos e complexos. Tudo depende da forma como estes lhes são apresentados.
Entre esses estudos, encontram-se os que vêm sendo desenvolvidos pelas equipes das psicólogas do desenvolvimento Elizabeth Spelke, da Universidade Harvard (EUA), e Alison Gopnik, da Universidade da Califórnia, em Bekerley (EUA) – e que podem agora, graças à internet, ser mais bem conhecidos por nós.
Criança em parquinho
Até que ponto, apegados a modelos ultrapassados do desenvolvimento e desconhecendo o potencial real de nossas crianças, não estaríamos subestimando a capacidade de nossos alunos?
Se você se interessar pelo tema e quiser se aprofundar nele, assista, por exemplo, à entrevista (em inglês) que Elisabeth Spelke deu ao The New York Times, na qual ela apresenta sua visão do que é a aprendizagem, de como adquirimos conhecimento e do potencial que as crianças têm para aprender, em especial, tópicos de ciências.
Uma das pioneiras no uso da técnica do olhar preferencial, que permite aos pesquisadores verificar para o quê e quanto os bebês dirigem sua atenção a objetos, pessoas e situações, Spelke coordenou numerosos estudos que a levaram a concluir que bebês já possuem um entendimento primitivo das leis básicas da física, sobretudo aquelas relacionadas ao movimento.
Ainda recém-nascidos, já seguimos com os olhos e a cabeça estímulos de movimento e preferimos olhar aquilo que se movimenta. Também já somos capazes (aos quatro meses de idade) de usar essas informações e decidir, por exemplo, se um objeto é coeso ou não, ou saber que objetos se movem ao longo de trajetórias contínuas; que só se movem se outros objetos entrarem em contato com eles ou, ainda, que objetos não podem atravessar outros objetos.
Segundo Spelke e seus colaboradores constataram em variados testes, já nascemos, ou pelo menos adquirimos muito cedo e a partir das experiências que nos envolvem, a capacidade de formar nossos primeiros conceitos físicos e matemáticos, entre os quais aqueles relacionados às noções de tempo, espaço e número.
O tema também foi abordado por Alison Gopnik em conferência para a fundação

Technology, Entertainment, Design (TED) – mais conhecida como TED Conference. Nela, a pesquisadora discute a importante ideia de que bebês e crianças já possuiriam ao nascer mecanismos de aprendizagem “poderosos”, “projetados” pela evolução para favorecer a aprendizagem.

Assista à conferência de Alison Gopnik (com opção de legenda em português)

A longa infância humana, defende Gopnik, é uma característica adaptativa que favorece a aprendizagem – ou uma imensa ‘janela de oportunidades’ que se abre sobre o mundo, para que se extraia dele, em uma época vital e na qual estamos protegidos pelos adultos, informações que nos serão imprescindíveis no futuro.
Bebês e crianças, entre zero e sete anos, são cientistas natos. Eles encontram-se naturalmente ‘habilitados’, tal como cientistas, a lidar com conceitos e ideias complexas, formular hipóteses, fazer experimentos e analisar evidências, elaborando explicações sobre o mundo em que vivem, embora nem sempre guardem memórias conscientes disso tudo, propõe Gopnik.
Se quisermos realmente ser criativos e inovadores, em especial na educação, o negócio é investirmos mais e mais nos estudos sobre o pensamento infantil

Além disso, como também discute a pesquisadora, o que diferencia adultos de bebês é o tipo de atenção que predomina em cada uma dessas etapas do desenvolvimento humano.
Os bebês, segundo ela, primam por ter um tipo de atenção não focada que os torna eficientes em receber e processar simultaneamente informações de muitas fontes diferentes. Nos adultos, por sua vez, predomina outro tipo de atenção, mais focada, que nos torna capazes de direcionar a atenção voluntariamente, mas nos restringe quanto à amplitude e ao processamento simultâneo das variadas e múltiplas informações que nos são enviadas pelo mundo.
Em suma e pegando carona na fala de Alison Gopnik, uma mensagem clara que fica quando se conhecem em detalhe as ideias que estão pipocando na fronteira das pesquisas em desenvolvimento cognitivo é básica: se quisermos realmente ser criativos e inovadores, em especial na educação, o negócio é investirmos mais e mais nos estudos sobre o pensamento infantil, de forma a nos tornarmos capazes não apenas de compreendê-lo mas também de imitá-lo.
A melhor aposta parece ser mesmo buscar pensar como as crianças, em vez de subestimá-las.

TEXTO ORIGINAL DE CIÊNCIA HOJE

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