Diante dos pós-modernos imperativos sociais: saúde, beleza, felicidade, sucesso profissional, riqueza, etc. os ideais de eu, hoje, praticamente também podem ser comercializados. Imperativos de toda ordem se tornam verdadeiras aspirações egóicas. Trabalhar não é mais visto como coletivo, que une uma população e classe social, nem como sobrevivência. Trabalhar agora recebe um peso no sentido de ter uma carreira de sucesso, de reunir poder de consumo, de construção de uma imagem perfeita para os padrões. As aspirações coletivas foram substituídas pelas aspirações individuais.
Essa estrutura social, dentre várias transformações nos aparelhos psíquicos dos sujeitos, uma delas, foi a de evidenciar traços e posições narcísicas de relação objetal. Gostaria de levar o leitor à imaginar como deve ser frustrante – e como deve levantar mecanismos de defesa -, quando uma pessoa de cultura média/alta, totalmente narcisista, descobre a efemeridade de suas atividades, por não trazer, sequer, uma contribuição para a sociedade – o outro.
Não se trata do velho moralismo “ser útil para a sociedade”, pois esse sentido se revela: “ser útil para os que dominam a sociedade”. Se trata, na verdade, de um “ser útil, por ter o privilégio do acesso à cultura e informação, transmitindo saberes, discutindo políticas públicas e empoderando oprimidos a fim de reconstruir a estrutura social num modelo de sociedade, no mínimo, equitativo”.
No plano social, o triunfo do individualismo narcísico e da boa imagem de sucesso guarda no âmago, o fracasso da empatia, da cidadania e do reconhecimento do sujeitos outros como desejantes.
O intrigante é que esse triunfo, no plano individual, também é um fracasso, por ter dois tempos:
No primeiro, narciso te protege da realidade e te coloca como ser onipotente que adquire sucesso pessoal e cumpre metas próprias; os outros não muito interessam, a não ser para cumprir convenções sociais e expor a própria imagem – festas, “bom dia para o porteiro” – ou seja, uma sociabilidade não genuína que só existe para reafirmar a onipotência ilusória e se manter incluído em grupos sociais; uma sociabilidade com segundas intenções, poderíamos dizer. Não há um reconhecimento genuíno do outro, por isso a boa sensação de triunfo.
O segundo momento, por sua vez, é quando esse sujeito se olha no espelho – tanto literalmente, quanto no sentido imaginário especular de se ver através do outro – e toda a construção ilusória de negar a realidade de sua efemeridade, cai por terra. O momento de olhar para o próprio olhar, sustentado num sentido de vida completamente narcísico, revela essa frustração que citei no inicio.
Narciso se apaixona pelo próprio reflexo, não sem antes lembrar que esse reflexo, num certo momento, era visto como não sendo seu reflexo. O bebe não se reconhece no espelho. Ele vê seu reflexo como sendo um outro ser. Portanto, narciso para amar seu reflexo, precisa reconhecer sempre que em algum momento ele experimentou primeiro a alteridade, ele viu um outro; ele reconheceu um outro antes de reconhecer a si mesmo.
Não é fácil ter um ideal de eu completamente voltado para o eu ideal e sustentar a culpa de saber que o outro existe e que nada se faz por ele.
Não é fácil sustentar um mundo que não existe o outro quando a primeira experiência especular revela esse outro.
É preciso uma mudança na estrutura social para que os imperativos deixem de atuar como uma espécie de criadores de subjetividades, como as narcísicas. Para essa mudança, o discurso do consumo precisaria ser repensado junto com a publicidade e a mídia, que são os grandes formadores de opinião e discursos na sociedade do atual contexto. A industria cultural se torna mercado de ideais de eu, e a noção de individuo, criação do capitalismo, cada vez mais se justifica e cada vez mais coloca os sujeitos num beco sem saída onde Freud já discorria em relação aqueles que fracassam ao alcançar o sucesso.
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