Por David Robson
Silvano viajava em um cruzeiro quando a maldição familiar bateu à porta. Elegante ruivo de 53 anos que gostava de trajar smoking em toda ocasião possível, ele buscava se apresentar como as estrelas de cinema que admirava. Mas na pista de dança do navio naquele dia, ele ficou envergonhado ao notar sua camisa empapada de suor.
Preocupado, ele se examinou no espelho, para descobrir que suas pupilas haviam encolhido ao tamanho de dois pequenos pontos negros. Era o mesmo olhar estatelado que havia afetado seu pai e duas irmãs nos primeiros sintomas de suas misteriosas doenças.
Ele sabia que era apenas o começo. Tremores, impotência e constipação viriam em seguida. Mas o sintoma mais terrível seria o fim do sono – quase insônia total por meses, uma espécie de coma acordado que acabaria em morte.
Silvano eventualmente procuraria o centro de estudos do sono da Universidade de Bolonha (Itália) para mais exames, mas não tinha ilusões. “Ele disse: ‘Vou parar de dormir, e estarei morto em oito a nove meses'”, afirmou à BBC Pietro Cortelli, um de seus médicos.
“Respondi: ‘Como você pode ter certeza?’ Ele então me contou sua árvore genealógica desde o século 18, tudo de cor.” Em cada geração, Silvano podia nomear um parente que sucumbira ao mesmo destino.
Como Silvano havia previsto, ele morreu menos de dois anos depois, mas deixou seu cérebro para a ciência na expectativa de trazer alguma revelação sobre a estranha enfermidade que atormenta sua família.
O que acontece dentro dos cérebros e corpos de pessoas com essa estranha doença? É um mistério que só agora pesquisadores estão começando a entender, e possivelmente tratar com uma nova e promissora droga.
No entanto, como a Insônia Familiar Fatal (IFF) envolve um histórico genético transmitido por gerações, essa pesquisa também levanta uma questão difícil e eticamente complexa: se os genes de sua família indicam que você pode ser afetado pela inabilidade para dormir, você gostaria de saber seu futuro?
Paciente zero
A família de Silvano manteve silêncio sobre a luta contra a IFF, mas há cerca de 15 anos compartilhou a história com o escritor DT Max, cujo livro The Family Who Couldn’t Sleep (A Família que não Conseguia Dormir, em tradução livre) traz um retrato dessas pessoas, com medo dos próprios genes.
Na busca pelo “paciente zero”, Max descobriu que a doença poderia ser rastreada até um médico veneziano que caiu em um torpor contínuo e paralisante no final do século 18. Logo depois, um sobrinho chamado Giuseppe teve o mesmo destino, e a doença passou a seus filhos Angelo e Vincenzo até seus filhos e bisnetos, até alcançar o pai de Silvano, Pietro, que morreu na 2ª Guerra Mundial.
Apesar dessa cadeia de perdas, a família tentou não falar sobre a doença por medo de estimular o destino, mas isso mudou nos anos 1980, quando Silvano começou a desenvolver sintomas. Sua sobrinha havia se casado com um médico chamado Ignazio Roiter, que convenceu o tio da mulher a visitar a famosa clínica do sono de Elio Lugaresi na Universidade de Bolonha, onde Cortelli trabalhava.
Juntos, eles começaram a desvendar o mistério da doença. Embora os esforços não tenham conseguido salvar Silvano e outros dois parentes, alguns testes encontraram o culpado: uma proteína disforme no cérebro chamada príon, causada por uma pequena mutação genética.
Por alguma razão, os príons começam a se proliferar na meia-idade, formando bolsões que envenenam os neurônios. Isso faz dessa enfermidade uma parente da Doença de Creutzfeldt–Jakob (DCJ) e da Doença da Vaca Louca – outros males causados por príons que atraíam a atenção da ciência na época.
Mas enquanto a DCJ deixa o cérebro parecendo um queijo suíço, a condição de Silvano parece afetar partes do tálamo, bem no centro do crânio. Normalmente do tamanho e forma de uma noz, o tálamo no cérebro de Silvano parecia tomado por vermes.
Após anos de pesquisas adicionais, cientistas hoje podem explicar como danos a essa pequena protuberância de tecidos nervosos podem desencadear sintomas tão intrigantes. Sabemos, por exemplo, que essa parte do cérebro organiza toda nossas respostas “automáticas” ao meio ambiente – coisas como temperatura corporal, ritmo cardíaco e liberação de hormônios para manter o corpo funcionando de forma confortável.
Quando esse sistema falha, é como se o seu ar-condicionado quebrasse, os canos vazassem, as janelas se escancarassem e os alto-falantes começassem a vibrar em volume máximo – um caos. Daí o suor em excesso e as pupilas contraídas, a impotência e a constipação.
Desligando a consciência
Esse controle autônomo defeituoso também pode contribuir para a insônia dos pacientes: seus corpos não conseguem se preparar para uma noite de sono. Quando a pressão sanguínea normalmente baixa antes de dormir, nesse caso ela estaria alta, dando a sensação de alerta máximo ao organismo.
“Se o sistema nervoso simpático está desequilibrado, claro que você tem insônia”, diz Cortelli, que apresentou suas ideias em edição recente da revista especializada Sleep Medicine Reviews.
Compondo esse cenário, os ritmos do cérebro estão agora em desordem total. Durante a noite, costumamos ter ciclos periódicos de sono REM (ou movimento rápido dos olhos, na sigla em inglês), pontuados por um sono mais profundo de “ondas lentas”. Durante essa fase, oscilações elétricas de baixa frequência se movem pelo córtex – o tecido retorcido e em forma de casca da superfície do cérebro.
Isso parece acalmar a agitação da atividade consciente e coordenada que normalmente teríamos quando acordados, e também executa tarefas de manutenção importantes, como a consolidação das memórias. E qual ponto de tecido nervoso nas profundezas do cérebro faz a orquestração desses delicados ritmos? O tálamo.
Sem esse interruptor, os pacientes de IFF ficam sempre “ligados” e nunca podem atingir o sono profundo e restaurador, diz Angelo Gemignani, da Universidade de Pisa, que demonstrou que as pessoas com IFF não possuem esse importante padrão de atividade cerebral.
Sem essas ondas lentas, o máximo que se aproximam de um sono normal é um tipo de estupor inconsciente – nem adormecido, nem consciente, no qual acabam reproduzindo rotinas diárias.
Para Cortelli, esse é um remanescente frágil da fase REM que marca os estágios mais profundos do sono; de certo modo, parece que estão atuando em seus sonhos. Ele lembra de uma mulher, Teresa, que inconscientemente reproduzia o movimento de pentear o cabelo de alguém; ela tinha sido cabeleireira antes de a doença se manifestar.
Lento declínio
Um paciente notável, contudo, deu a entender que há maneiras diferentes de aliviar o problema. Psicóloga na Faculdade Touro, de Nova York, Joyce Schenkein conheceu Daniel em um programa de bate-papo no rádio (um precursor dos chats da internet, na década de 1990). “Ele era muito inteligente, um cara brilhante, extremamente engraçado”, diz ela. Eles acabaram se tornando amigos à distância. (O nome de Daniel foi alterado para preservar a privacidade de sua família).
Numa conversa anos depois, ele começou a soar confuso e vago. “Em um momento ele disse, ‘Desculpe-me se estou sendo incoerente, mas não durmo há cinco dias'”, afirma Schenkein. Exames revelaram que ele tinha a mutação genética da IFF (sua mãe aparentemente sabia do problema na família do pai, mas decidira não preocupar o filho com detalhes). Pior ainda, era a forma mais grave da doença.
Em vez de cair no desespero, a reação de Daniel foi construir um trailer e sair viajando pelos EUA. “Ele tinha espírito aventureiro – não ficaria esperando a morte sentado”, diz Schenkein. À medida que os sintomas pioraram, ele contratou um motorista, e depois uma enfermeira, para assumir o volante quando ele não estava bem.
Enquanto isso (e às vezes com conselhos de Schenkein), Daniel estava determinado a tentar o maior número possível de tratamentos, de suplementos vitamínicos e exercícios a anestésicos como ketamina e óxido nitroso, passando por remédios para dormir como diazepam – qualquer coisa que desse pequenos momentos de sono. Ele até comprou um tanque de isolamento, após descobrir que suas frágeis sonecas eram interrompidas pelo menor som ou movimento.
Flutuando nesse casulo em forma de ovo em meio à água quente e salgada, ele encontrou o descanso tão esperado, e experimentou quatro horas e meia de sono profundo. Ao acordar, porém, teve que encarar alucinações terríveis, incluindo uma estranha incerteza sobre estar vivo ou não.
Apesar desses (relativos) sucessos, Daniel ainda sofria recidivas regulares, que se tornaram mais intensas com o progresso da doença. “Quando os sintomas apareciam, ele não podia fazer nada”, diz Schenkein.
“Havia ocasiões em que ele perdia o dia inteiro – isso toma a sua consciência. Ele ficava sentado sem iniciativa para se mover; ficava congelado no tempo.” Ele chegou a tentar terapia eletroconvulsiva, com choques, mas depois sofria amnésia muito forte. Após alguns anos nessa luta, ele finalmente se foi.
Limpando os destroços
Embora nenhum tratamento tenha oferecido alívio de longo prazo, Daniel viveu por mais tempo do que seus diagnósticos indicavam. Schenkein cita evidências recentes de que o sono de ondas lentas aciona correntes de fluido cerebroespinhal para enxaguar os canais entre os neurônios, limpando detritos e resquícios da atividade do dia, como uma praia limpa após uma maré alta.
Talvez, ao aliviar a insônia, seja possível estimular essa limpeza e interromper a desintegração cerebral. Juntamente com o neurologista italiano Pasquale Montagna (que trabalhou em outros casos de IFF), Schenkein descreveu o caso em revista especializada na expectativa de que outros tomem medidas para estender a vida desses pacientes.
“Ao menos isso abre a possibilidade para dizermos que há algo a ser feito”, afirma Cortelli. Ele ressalva que as conclusões vieram do estudo de apenas um caso – não está claro se ações semelhantes ajudariam outros pacientes.
As esperanças da família veneziana seguem em outra direção. Lugaresi morreu em dezembro de 2015 após décadas de trabalho com pacientes de IFF, mas Roiter e colegas em Milão e Treviso acreditam estar próximos de uma sonhada cura. No ano passado, eles anunciaram testes clínicos de uma nova droga que esperam que possa prevenir (ou ao menos retardar) a formação dos venenosos príons.
A droga em questão, a doxiciclina, já mostrou efeitos promissores em testes contra a DCJ. Originalmente um antibiótico, ela parece interromper a formação de blocos de príons e favorecer a dissolução deles por enzinas naturais do cérebro. Em um pequeno teste clínico com pessoas com sintomas da doença, 21 pessoas que tomaram a droga viveram duas vezes mais (cerca de 13 meses) do que outras 78 pessoas de um grupo de controle.
Por outro lado, um estudo posterior não identificou efeitos da droga em pacientes com sintomas mais agressivos de DCJ. Roiter e seus colegas estimam que nesse ponto talvez seja muito tarde para algum efeito. Por isso, querem agora verificar se a doxiciclina ainda pode funcionar como um tratamento preventivo para pessoas com risco de IFF, antes que os príons comecem a se agrupar.
“A droga poderia adiar ou interromper completamente o desenvolvimento da doença”, diz Gianluigi Forloni, do Instituto Mario Negri de Pesquisa Farmacológica de Milão, que ajuda a coordenar o projeto.
Montar um teste confiável, e ainda estar atento às preocupações da família, envolveu tarefas complicadas. Primeiro, os cientistas tiveram que fazer testes genéticos em cada membro para verificar quem tinha a mutação e deveria receber a droga. Depois, selecionaram dez membros de 42 a 52 anos, com maior chances de desenvolver a doença na década seguinte.
Medo de saber
O problema foi que muitos integrantes da família não quiseram saber os resultados do teste: mesmo com a promessa da droga, o medo obscurecia todos os momentos de suas vidas. Por isso, outros 15 membros da família, fora de risco para a doença, também receberão um tratamento com placebo. Isso significa que cada membro não deverá ter como saber o resultado de seu teste: até onde sabem, há menos de 50% de chances de um resultado positivo ou não.
Sem tratamento, Forloni prevê que ao menos 4 de 10 pacientes com a mutação deverão desenvolver a doença na próxima década. Então se a equipe descobrir que mais de seis pessoas escaparam da enfermidade no final desse período, eles considerarão o teste um sucesso – o que talvez justificaria um uso mais ampliado.
Apesar do fio de esperança que traz, o teste ainda desperta controvérsia entre alguns dos médicos que acompanham o caso da família. Cortelli, por exemplo, decidiu não se envolver no projeto por questões éticas.
Alguns dos efeitos colaterais dos antibióticos podem revelar os diagnósticos dos pacientes, causando sofrimento desnecessário, ele avalia. (Em sua defesa, as equipes de Roiter e Forloni irão oferecer apoio psicológico durante os testes). De qualquer maneira, ele duvida se a droga seja tão efetiva para justificar um período tão longo de tratamento.
E até se membros da família escaparem da doença ao final do tratamento, Cortelli diz que haverá a possibilidade de terem sido apenas sortudos; algumas pessoas com a mutação ainda terão vivido até os 80 anos, embora ninguém saiba por que o gene ficou adormecido.
Mas com a ansiedade e a incerteza em torno de qualquer coisa que decidam, não é difícil entender o motivo pelo qua a família está disposta a apostar no tratamento: é uma chance de revogar a sentença de morte escrita por séculos em seu DNA.
A sobrinha de Silvano uma vez comentou que entrava no quarto da mãe à noite para checar se ela estava realmente dormindo ou com sinais de insônia. Era uma “espiã na própria casa”. Se a droga realmente funcionar, pode ser o fim desse pesadelo acordado – e o começo de um futuro onde a primeira luz após uma noite de sono pode ser encarada sem medo de ser a última.
TEXTO ORIGINAL DE BBC