Análise de Filmes

Intocáveis: Somos todos humanos tocáveis, por Elienae Maria Anjos

Por: Elienae Maria Anjos

“Somos ambos “intocáveis” em diversos aspectos. Abdel, de ascendência do Norte da África, sentiu-se marginalizado na França. Não se pode “tocar” nele sem o risco de levar um soco, e ele corre tão rápido que os tiras – repetindo sua palavra – conseguiram pegá-lo apenas uma vez em sua longa carreira de delinquente.

Quanto a mim, atrás dos altos muros que cercam minha mansão em Paris, abrigado da necessidade graças à minha fortuna, faço parte dos “extraterrestres”; nada pode me atingir. Minha paralisia total e a ausência de sensibilidade me impedem de tocar o que quer que seja; as pessoas evitam até roçar a minha pele, tamanho o medo que lhes causa minha condição física, e ninguém pode me tocar o ombro sem desencadear dores lancinantes. “Intocáveis”, portanto.”

Phillipe Bozzo Di Borgo

Intouchables (2011) é um drama/comédia francês, que, desde o seu ano de lançamento até hoje, tem feito diversos países serem grandemente tocados pela história alegre sem exageros, dramática nos pontos certos e vibrantes de tal modo que não conseguimos senti-la cansativa por ter quase duas horas de duração.

O escritor e diretor Olivier Nakche e Éric Toledano basearam-se no livro O Segundo Suspiro de Philippe Bozzo Di Borgo para fazer o filme. Fazendo-nos conhecer a vida de Philippe Bozzo Di Borgo e Abdel Sellou juntamente com outros elementos marcantes que fizeram surgir a comunhão entre eles. Um encontro que abalou as estruturas mentais e preconceituosas, trazendo desabamentos necessários em suas vidas para que novas reconstruções prosseguissem em tantas outras vidas, como a minha, por exemplo. Através de imagens copiadas de alguns fatos existentes, mostraram que podemos, queremos e seremos seres tocáveis. Não importando a cor da pele, a diferença social ou se somos pessoas portadoras de alguma deficiência.

No início do filme, encontramos Philippe (François Cluze), um milionário que se tornou tetraplégico após um salto de parapente, novamente sem acompanhante. Através de uma entrevista, recomeçou mais uma nova escolha, dentro de um grupo bem comum de pessoas munidas de máscaras e seus diplomas de cuidadores, com mais formações em outras áreas da medicina do que na sensibilidade profissionalizante de serem humanos conhecedores e participantes da vida de uma pessoa altamente dependente. Imagino que esta foi uma estressante tarefa de dialogar com pessoas repetitivas, embriagadas de autopiedade, com suas visões distorcidas, tentando entrar no intelecto perspicaz daquele homem.

As pessoas empilhadas na sala daquela mansão juntamente com Philippe e sua secretária, Magalie, viveram o momento marcante que foi o inapagável encontro dos intocáveis! Driss (Omar Sy) já assentado entre os outros entrevistados, com reações um tanto diferentes deles, ele era uma luz-pessoa, um tanto grosseiro em seus modos e com um olhar tenso que mostrava seu nervosismo e pressa. Andando pela sala, observando cada detalhe naquelas pessoas ou no lugar. Vivendo simplesmente sua forma de ser, ele hipnotiza aquelas pessoas através de seus modos naturais com lampejos de olhares cheios de autodefesas, tentando se impor com falas irônicas, mentirosas e viscerais para não ser julgado como mais um “qualquer”. Philippe, então, se encanta com aquela casa-pessoa em construção de si mesmo… inicia-se a afinidade e necessidade de um pelo outro. Uma improvável e marcante amizade.

Sou como muitos chamam: uma pessoa “especial”, porém, obviamente não é somente por esta razão que escolho dramas que em seus enredos contam histórias de pessoas portadoras de deficiência. Sou também uma dessas pessoas que espera que a mídia num todo, mostre nosso potencial, porque é assim que eu quero ser vista. Como paraplégica, acredito piamente que fatos verídicos ou não, tendo a presença de dEficientes no cinema ou teatro, não deveriam ser escritos ou filmados para provocar um forte abalo emocional com lágrimas ininterruptas carregadas de piedade, nem também incitar discriminações grotescas em um público que não convive de perto a realidade que é o contato com uma pessoa portadora de necessidade especial.

Quando dou minha atenção a esses filmes, estou na verdade procurando outras pessoas com vidas semelhantes a minha e com pensamentos e ações que os fazem serem mais notados do que suas cadeiras, muletas ou outro corpo estranho que precisamos fazer uso dentro de nossas rotinas de vida. Tive a sorte de ter meu intelecto desenvolvido por pessoas que estiveram desde cedo ao redor de minhas realidades e necessidades pessoais. Alguns agentes familiares que não cultivaram sementes atrofiadas na terra fértil de meus pensamentos. A única atrofia que há em mim, está somente no físico, por isso resumo minha vida da seguinte maneira:

“Agora sou uma extraterrestre (cadeirante)

penso… muito…

sou resolvida e me encaro no espelho da vida todos os dias

então, logo existo.”
Atualmente esse magnífico filme continua a ter um número de admiradores crescendo cada vez mais. Eles estão sendo curados de suas visões distorcidas sobre a deficiência e se permitindo o surgimento de grandes reflexões pessoais. Intocáveis deu certo! Mas quero também falar sobre a fonte que fez nascer o filme: O livro O Segundo Suspiro, o qual foi para mim tão poético quanto o filme. Em uma das passagens, observei algumas características e uma delas me fizeram pensar porque estas duas pessoas se nomearam por: “intocáveis” .

Segundo as palavras de Adbel, ele nos fez saber que Philippe mesmo sendo um afortunado e conhecedor de muitos assuntos e lugares por onde passou, após o acidente se tornou nada mais do que uma pessoa: habitando dentro de uma gaiola de ouro. Quanto a Abdel, pela rejeição, permitiu habitar dentro de si muros de alta proteção, por isso, suas reações foram sempre de agressividade, orgulho, teimosia, mas, ainda assim, essas reações fizeram também dele um amoroso cuidador. Com um forte extinto protetor que provavelmente ele mesmo não teve, por isso Philippe o chama de meu Diabo Guardião.

Provavelmente você, assim como eu, já deve ter lido vários textos profundos explanando com maestria a emoção que o efeito da amizade realizou na vida de ambos. Fora, é claro, a nossa mais íntima e emocionada reflexão ao estar diante de uma tela acompanhando as muitas diferenças que eles têm e a cura da acepção que ambos se permitem, dando a chance de cada um adentrar em seu mundo particular e viver trocas de experiências incríveis.

Diante de tantas comprovações lindas, escritas e vistas sobre afetos, ajudas mútuas e amizade, o que, na verdade, fizeram-me escrever sobre o filme/livro, foram as referências pouco visíveis, mas que eu as enxergo no primeiro plano, por ser também uma “extraterrestre”. O pouco visível a que me refiro, está no recebimento do intelecto de uma pessoa dEficiente, diante de alguém que se propõe a ser muito mais que um ajudante de vida para ela. Fazendo por nós muito mais do que lavar o corpo, ajudar em nossas necessidades fisiológicas, administrar medicamentos, fazer exercícios em nossa atrofia, guiar uma cadeira, dentre tantas outras ações. Não que tudo o que citei não tenha a sua importância, muito pelo contrário, mas no meio disso tudo, é difícil encontrar alguém disposto a tentar se movimentar para realizar certos sonhos, vontades ou simples desejos que temos, daí entra o amigo discriminado pela sociedade, que se esforça para fazer Philippe simplesmente viver.

Esse ser humano não colocou seu principal foco de visão nos aparelhos que seu patrão usa, nas escaras que ele constantemente enfrentou, nas febres, nas dores-fantasma, na cadeira de rodas, em sua paralisia física, tampouco em sua falta de sensibilidade. Ou seja, ele cuidou, mas não priorizou as fragilidades físicas e emocionais naquele homem. Ele só queria fazê-lo experimentar as coisas tão simples da vida. Tirando os obstáculos de olhares preconceituosos, preocupados ou desrespeitosos nos caminhos que passavam. Ele conseguiu tirá-lo de dentro daquela gaiola de ouro.

“Ele é insuportável, vaidoso, orgulhoso, brutal, inconstante, humano. Sem ele, eu estaria morto por decomposição. Abdel cuida de mim sem cessar, como se eu fosse um bebê de colo. Atento ao menor sinal, presente em todas as minhas ausências, ele me liberou quando fiquei preso, me protegeu quando eu estava fraco. Ele me fez rir quando eu não aguentava mais. Ele é meu diabo guardião.”

Philippe Bozzo Di Borgo

O que muitas vezes se passa na mente que é ligada a um corpo deficiente é a seguinte verdade: nossa liberdade é vivida através de nossas teorias e práticas sobre como encarar os vários obstáculos que muitas vezes tentam nos parar ou atrapalhar. Podemos ser paralisados fisicamente, dependentes para sempre de ajuda, mas em nossas cadeiras ou outro objeto de apoio, não existem vidas dentro de gaiolas mentais. Precisamos urgentemente de loucos capazes a nos levar a viver momentos improváveis. Um louco que pensa: “minha liberdade de movimentos pode ser repartida com outro corpo, sem ser pesada, cansativa ou impossível. Eu serei suas pernas, braços e até sua fala sem te privar de continuar a pensar e escolher quais destinos quer experimentar.”

Alguns extraterrestres ou matrixilianos (portadores de deficiência) encontram com facilidade portas difíceis de atravessar dentro de pessoas, isso talvez explique porque muitas construções estão sem acessibilidade. Porque a palavra acessibilidade precisa nascer primeiro nas almas. Precisamos da contra mão, que é a existência de uma humanidade andante que nos aceite com naturalidade e simplicidade, e nos ponha dentro do mundo de forma que mesmo que haja escadas, caminhos acidentados ou carros altos, nós teremos a certeza que alguém mesmo sabendo dos obstáculos, estará lutando para nos inserir na sociedade indiferente às nossas necessidades.

Porque queremos caminhar no mesmo ritmo que todos. Queremos saltar de tirolesa, de parapente… queremos nadar, queremos “tocar” nossas rodas sobre areias molhadas ou secas, não importa… Queremos dançar, queremos conversas e sexo, queremos love story com ou sem sofrimento.. Queremos mais diversão e nenhum negativismo… Queremos um haxixe (rsrs), porque como diz Abdel “Um pouco de haxixe não faz mal a ninguém”… Queremos um louco que nos faça acreditar que a insanidade mesmo sendo chamada de irresponsabilidade por alguns, para aquele que é deficiente, sempre será uma chance de ser pessoa… independente de nossas aparentes fragilidades, porque não somos invisíveis, muito menos um conjunto de ferros, dores e outros problemas, somos humanos tocáveis.

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