O contato com a loucura e a queda de um mito: a experiência de alunos do curso de psicologia
Por Rodrigo Rocha Vilasbôas*
O ingresso no curso de psicologia é acompanhado de uma série de expectativas que sustentam a ideia de uma profissão que de alguma forma irá habilitar a pessoa a dar conta da dor do mundo, salvar vidas, resgatar almas… Instigante expectativa simbólica, antes de tudo intimamente conectada com a busca singular que cada um traz. Ao longo do curso, creio que uma das experiências mais impactantes seja a queda dessa imagem super poderosa, talvez um dos momentos mais transformadores que o curso proporciona. Existe uma imagem do senso comum acerca de um serviço de psicologia que difere do objetivo e trabalho dessa ciência, e os alunos que ingressam no curso, na maioria das vezes, estão com essa imagem impregnada em seus olhares. O teor emocional característico dessa formação é intensificado quando as expectativas do aluno em relação ao potencial que lhe seria conferido enquanto profissional de psicologia é desmistificado. Essa queda é um marco no rumo da identidade profissional que está em processo e na relação do sujeito com diversas facetas de sua subjetividade. Não é mais possível manter a imagem heroica que alimentou as perspectivas do aluno durante um tempo, e isso o afeta amplamente e não se restringe a um fenômeno acadêmico (como em tantas outras páginas da jornada dessa formação, que é definitivamente tão emocional quanto técnica, se não mais).
Muitas angústias são exploradas durante a formação em psicologia, mas talvez em especial o contato com esquizofrênicos tenha uma papel fundamental na construção dessa identidade profissional. Durante minha formação, na supervisão do estágio da disciplina de psicopatologia, que desenvolvíamos em comunidades terapêuticas, pude compartilhar da mesma angústia de vários colegas de turma, que durante os estágios se deparavam com a limitação e frustração de não serem aptos a resgatar as pessoas de seus sofrimentos psíquicos. Isso nos confrontou com a ideia romântica que permeou nosso contato inicial com a psicologia, e dentre diversos aspectos singulares (que cada aluno se deparava ao entrar em contato com a loucura) nos sentimos incapazes de salvar as vidas que queríamos, como se todo o propósito perdesse o sentido, e uma crise existencial ampla se instalasse. Ainda fomos acompanhados de um constrangimento diante da dor do outro, de uma sensação de impotência por não poder saná-la, e ainda nossas próprias dores foram ganhando figura na cena. Tudo aconteceu junto num emaranhado de emoções. Nas supervisões do estágio tivemos a chance de nomear alguns fenômenos que nos acometeram nesse contato, e aos poucos fomos construindo ferramentas que não nos deixaram esquecer qual nosso objetivo diante da dor do outro ( no mínimo é preciso saber o que ainda somos nesse encontro, e não se perder diante da dor que aflora diante de nós). Há muito o que dizer a respeito do quanto é significativo experimentar o ensino da disciplina de psicopatologia em conjunto com o estágio em comunidades terapêuticas e supervisão, a formação ética é totalmente tocada e amplificada com essa modalidade de ensino que a universidade oferece. Seriam necessárias muitas linhas para destrinchar o que foi essa experiência. Voltemos ao tópico em questão.
E o desejo de salvar vidas e extinguir a dor? Ele se transforma e pode tomar vários caminhos. A ideia que pode se mostrar de inicio nessa narrativa é um pessimismo intenso em relação a prática profissional em psicologia, mas o objetivo é exatamente o oposto. A superação de uma imagem idealizada é algo possível depois que permitimos cair do lugar de herói. Há uma luz transformadora e concreta em nossa atuação, uma possibilidade que se revela se tivermos ferramentas para desconstruir a idealização e der espaço ao que está ao nosso alcance, ao que podemos de fato fazer diante da dor alheia. O olhar de respeito e compreensão diante dessa dor, a dedicação de um tempo para “estar” com o outro que sofre, compreender seu universo disponível, ou até mesmo as ações que tenham alguma função egóica e facilitem pequenos momentos de seu cotidiano ganham figura e novo olhar. As ferramentas interventivas disponíveis a nós, estagiários de psicologia, podiam parecer simples e pouco diante da expectativa heroica que nos consumia, mas não eram. Ao passo que nos retiramos da necessidade de sucesso espetacular (que vem de tantas vozes em nossa sociedade) nos tornamos capazes de notar a grandeza do “simples”. Um sensível e maduro conhecimento das possibilidades interventivas psicológicas deve superar a ideia de fracasso que pode permear um aluno durante a formação, porque pode não ser possível salvar todos os aspectos da vida do outro que sofre, mas o valioso, terapêutico e transformador está justamente nos detalhes que soam despercebidos quando estamos cegos querendo resolver tudo e trazer o outro para o nosso mundo ideal, que deve ser obrigatoriamente infalível, eficaz, triunfante, sem dor nenhuma e feliz (feliz…?). Possivelmente o nosso mundo,”moderno e liquido”, que insiste no sucesso, no espetáculo e em todos os imperativos de consumo, influa inclusive em nossos desejos e idealizações profissionais durante a formação. Mas o sucesso de que o mundo fala é muito rápido, espetacular, gigantesco, assustador, vazio. A aparente simplicidade de certas intervenções e o grande significado que isso tem para um esquizofrênico, por exemplo, não tem espaço em nosso tempo, não é algo amplamente visto ou considerado no imperativo de sucesso total que rege nossa época, assim como rege nossos olhares de alunos, porque nos imperativos só é sucesso o que extingui o sofrimento (créditos aos antidepressivos). Poder notar o que não é possível em um contexto e deixar o que é possível ganhar cor e chance de mostrar-se é um rumo que permite encontrar novamente uma identidade profissional na psicologia após a queda do mito. Mais que isso, é a possibilidade de um reencontro com a condição mais humana de todas: A limitada, que é barrada em muitos termos, mas que pode continuar sendo tão bonita, digna e potencializadora quanto à idealização perdida. Mergulhar no “dolorido” parece nos tirar tudo, mas no fundo é a única coisa que pode nos entregar um contato digno com o que nos é mais intimo, mais próprio.
Quando o aluno de psicologia sai de um lugar mítico e permite uma desconstrução/construção que lhe lance na angústia, mas que lhe apresente possibilidades mais autênticas e plenas de atuação, há uma transformação ampla, que toca facetas dos imperativos mais duros que todos os dias são plantados nos meios de comunicação e relação social, o famoso “seja um sucesso, seja perfeito, seja feliz todo o tempo, você não precisa (não pode!) sofrer”. Enquanto acharmos que “todos são obrigados a gozar” (incluindo nós e os esquizofrênicos) não seremos capazes de sair do “circo” e vislumbrar a condição mais humana de todas, em que a dor faz parte, e a impossibilidade de gozar e ser-sucesso-sempre também. Esses relatos são fragmentos da experiência de alunos de psicologia no contato com a dor da loucura, mas a mesma busca cega pelo sucesso e aniquilação da experiência de sofrer, aprender e evoluir psiquicamente com o sofrimento está presente na experiência humana de nosso tempo. Talvez a questão seja permitir-se mergulhar em terrenos não tão felizes ou confortáveis, que revelem as quedas, mas que permitam possibilidades mais autênticas, criativas, livres e transformadoras.
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Rodrigo Rocha Vilasbôas é psicólogo. Durante sua graduação desenvolveu uma pesquisa a respeito das transformações subjetivas experimentadas pelos alunos de psicologia durante o curso. Fascinado por arte, diverte-se enquanto artista plástico. Acredita que a arte sempre pode ser uma saída.
E-mail: rodrigorvilasboas@gmail.com
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Publicado originalmente em NICPPS
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